Por Ana Karina Souza, Roberta Danelon Leonhardt e Thiago Cantareli

A política governamental que resultou na concessão de descontos nas tarifas de uso do sistema de transmissão (TUST) e de distribuição (TUSD) para projetos de geração com fonte solar, eólica, biomassa e cogeração qualificada, foi um dos principais fomentadores para o desenvolvimento do setor de energias renováveis brasileiro. De acordo com os dados do Balanço Energético Nacional do Ministério das Minas e Energia (MME), a participação da energia renovável na matriz elétrica brasileira saltou de aproximadamente 80% em 2005 para 84,8% em 2020, com a eólica atingindo 8,8%, solar 1,7% e biomassa 9,1%.

Entretanto, em março de 2020, foram extintos os descontos de 50% sobre a TUST e a TUSD para futuros projetos renováveis, com certas regras de transição detalhadas na Lei 14.120/2021. O objetivo dessa lei foi racionalizar os subsídios às energias renováveis para estancar o crescimento dos encargos na Conta de Desenvolvimento Energético (CDE).

Apesar dos questionamentos sobre o momento e ritmo da transição energética, bem como o fim dos incentivos tarifários, a inovação legislativa trazida pela Lei representa uma perspectiva de criação de um mercado de benefícios ambientais como contraponto à extinção dos descontos para projetos de energia incentivada.

Segundo a Lei nº 9.427/1996, bem como a de nº 14.120/2021, caberá ao Poder Executivo federal estabelecer as diretrizes para a implementação, no setor elétrico, de mecanismos para a consideração de benefícios ambientais até março de 2022, levando em conta a segurança do suprimento e a competitividade.

Contudo, ainda há diversos obstáculos para a real aferição de tais benefícios. A falta de sinalização dos custos das emissões de gases de efeito estufa (GEE), por exemplo, é uma das maiores dificuldades do controle das emissões no setor energético mundial e no Brasil. O resultado é a ineficiência econômica e a dificuldade de operacionalizar políticas que busquem a neutralidade climática. A valoração dessas emissões poderá permitir uma melhor aferição das externalidades produzidas pelo setor de energia.

Para apoiar os trabalhos do Poder Executivo rumo à criação de mecanismos para aferição de benefícios ambientais no setor elétrico, a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) publicou recentemente Nota Técnica e realizou workshops para discutir riscos e oportunidades no mercado de carbono. Dentre as alternativas para valoração dos benefícios ambientais, destacam-se os mecanismos de precificação, as políticas públicas e instrumentos não mercadológicos em geral.

Na frente da precificação, parte da problemática aponta para a conveniência da implantação de um mercado de carbono brasileiro, à luz da Partnership of Market Readiness (PMR), liderada pelo Banco Mundial, sendo no Brasil capitaneada pelo Ministério da Economia. Sistemas de comércio de emissões (SCE) geralmente seguem o racional de cap-and-trade, isto é, definem um limite (cap) para as emissões de gases de efeito estufa permitidas a cada agente regulado e gradativamente reduzem esse cap para levar o agente a reduzir as próprias emissões e/ou adquirir no mercado (trade) com outros agentes que tenham permissões sobressalentes.

Inicialmente previsto com um mercado de emissões voluntário, a proposta de criação do Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE), com escopo, metas e mensuração, encontra-se em discussão no Congresso Nacional. Devido à proporção de renováveis na matriz elétrica brasileira, o setor elétrico poderia, em tese, contribuir no SBCE com a oferta de direitos de emissões para setores mais intensivos em carbono.

Cumpre destacar também o princípio da cooperação voluntária entre países, previsto no Acordo de Paris, o qual possibilita a criação de mercado internacional de carbono.

De outro lado, a adoção de mecanismo de precificação por intermédio de tributação de atividades e produtos emissores de GEE pode gerar controvérsias, dado que o sistema tributário brasileiro já é demasiadamente complexo, e eventual impacto na competitividade da indústria nacional também deve ser levado em consideração.

Na frente das políticas públicas, foi considerada a inserção do preço do carbono na formação do Índice de Custo Benefício (ICB) nos leilões de energia, o que tornaria a contratação de fontes renováveis mais atrativas.

Outra possibilidade discutida foi à atribuição de benefícios para usinas com combustíveis menos poluentes, ao promover a substituição do carvão mineral pelo gás natural, por exemplo, o que reduz as emissões de GEE, e/ou incrementar o custo variável unitário (CVU) de geração de usinas termelétricas mais poluentes. A alteração dos critérios da ordem de mérito de despacho para priorizar o acionamento de usinas com menores emissões também foi aventada.

Um desafio ainda a ser avaliado, sob a perspectiva de políticas públicas, são os atributos das fontes de energia, em particular quanto aos benefícios ambientais e à segurança energética. Conciliar a contribuição para a segurança do suprimento, para a qual as fontes despacháveis contribuem de forma relevante, e os atributos ambientais trazidos pelas fontes renováveis, é um ponto chave.

Sob a perspectiva de instrumentos mercadológicos, uma importante iniciativa em andamento é o RenovaBio. A Política Nacional de Biocombustível estimula a produção de biocombustíveis, prevendo incentivos e metas para redução da emissão de gases do efeito estufa, e estabelece metodologia para a emissão dos Créditos de Descarbonização (CBIOs). Em 2020, de acordo com dados do MME, a negociação de 14.896.273 CBIOs na B3 movimentou mais de R$ 650 milhões.

O papel da iniciativa privada também mereceu destaque nas discussões, em especial os Certificados de Energia Renovável (REC), que consistem em um importante instrumento voluntário em que empresas compram eletricidade com garantia de origem certificada. O Selo "REC Brazil", do Programa de Certificação de Energia Renovável, por exemplo, utiliza a plataforma do International REC Standard, portanto, seguem os mesmos padrões dos RECs emitidos em outras regiões do mundo, com o diferencial do atendimento a 5 ou mais objetivos dentre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU).

Ainda há muito por fazer e não está clara a direção que o MME tomará na definição das diretrizes para a consideração dos benefícios ambientais no setor elétrico. O bom resultado, no entanto, deverá passar por incentivos adequados e focados em aprimorar processos produtivos e comportamentos, e em promover investimentos em energias renováveis. Para que o setor acompanhe a transformação, o caminho deve ser trilhado passo a passo, gradualmente, com previsibilidade de rota, regras e objetivos.


*Ana Karina é sócia de energia do Machado Meyer Advogados e escreve periodicamente para a Coluna Legal, do Broadcast Energia. Este texto foi escrito em parceria com Roberta Danelon, sócia da área ambiental, e Thiago Cantareli advogado do Machado Meyer Advogados.

Este artigo representa exclusivamente a visão dos autores.


(Broadcast Energia - 07.10.2021)