Em acórdão publicado recentemente (29.6.2021), oriundo do Recurso Especial 1.851.692/RS, a Quarta Turma do STJ decidiu que o titular de crédito não arrolado pela recuperanda ou pelo administrador judicial na lista de credores sujeitos à recuperação judicial poderá optar por habilitar ou não seus créditos de forma retardatária, podendo, caso a decisão seja pela negativa, perseguir seus créditos em execução individual em face da devedora após o encerramento da recuperação judicial desta.

No caso, os credores deram início à cumprimento de sentença e recorreram contra decisão que determinou a retificação do cálculo dos seus créditos até a data do ajuizamento da recuperação judicial, para que fosse expedida certidão para habilitação do crédito no juízo da recuperação judicial. O TJ do Rio Grande do Sul manteve o entendimento do juiz singular e a questão foi levada ao STJ, que ficou com a incumbência de definir "se o crédito que não foi incluído no plano de recuperação judicial deve ser obrigatoriamente habilitado, ainda que de forma retardatária, ou se a faculdade de o credor preterido requerer a posterior retomada da execução individual do seu crédito", tal como mencionado no acórdão.

Concluiu a Quarta Turma que o titular de crédito voluntariamente excluído da recuperação judicial detém a prerrogativa de decidir se irá habilitar ou não seu crédito e, caso opte por não apresentar habilitação, poderá seguir com a execução da sentença que consubstanciou seu crédito finda a recuperação. A princípio, não haveria qualquer irregularidade em tal entendimento, na medida em que não faria sentido obrigar o credor a habilitar seu crédito, podendo este cobrar posteriormente seu crédito tal como novado pelo plano de recuperação judicial. Contudo, o acórdão mencionado em que pese deixar claro que se está diante de crédito concursal contém uma ressalva que poderá gerar insegurança jurídica, qual seja: "se a obrigação não for abrangida pelo acordo recuperacional, ficando suprimida do plano, não haverá (que) falar em novação, excluindo-se o crédito da recuperação, o qual, por conseguinte, poderá ser satisfeito pelas vias ordinárias (execução ou cumprimento de sentença)."

Quanto ao ponto, em seu voto-vista, a Min. Isabel Gallotti registrou em seu voto que se o credor optar por aguardar o desfecho da recuperação judicial "terá como benefício a incidência de todos encargos legais durante o período, assim como a possibilidade de exigir a totalidade dos valores postulados, benesses que os demais credores habilitados e que se submetem ao processo de recuperação nem sempre terão."

Lendo estes votos, vem à mente uma questão: É razoável permitir que os credores concursais que não foram arrolados poderem seguir com a execução de seu crédito integral, ou seja, sem a novação prevista no plano de recuperação judicial (PRJ)?

No nosso entendimento, permitir que credores cujo crédito possuem fato gerador anterior à data do pedido persigam seus créditos originais, ignorando as disposições do PRJ, ainda que após o término da recuperação judicial, viola o princípio do "par conditio creditorum".

Além disso, o novo entendimento também vai de encontro ao já decidido pelo STJ, inclusive em sede de recurso repetitivo - que, registre-se, foi tirado da mesma recuperação judicial do acórdão sob análise, uma das maiores do país, seja em termos de endividamento, seja em termos de credores-, no intuito de privilegiar o princípio da igualdade entre credores. No âmbito do Tema Repetitivo 1.051/STJ, que tinha por objetivo fixar entendimento quanto à interpretação do art. 49, caput, da lei 11.101/05, "de modo a definir se a existência do crédito era determinada pela data de seu fato gerador ou pelo transito em julgado da sentença que o reconhece", o STJ considerou que "para o fim de submissão aos efeitos da recuperação judicial, considera-se que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o seu fato gerador."  Tal tese com efeitos vinculantes a todas as cortes nacionais apenas consolidou o entendimento do STJ quanto à data da ocorrência do fato gerador da obrigação ser o marco eleito pelo legislador no art. 49 da lei 11.101/05, e não a data do trânsito em julgado da sentença, no processo de conhecimento.

Adotar premissa diversa, como a perpetuação do entendimento contido no acórdão referente ao Recurso Especial nº 1.851.692/RS, implicará esvaziamento do instituto da recuperação judicial, até porque, em regra, as obrigações contidas no plano de obrigação se prolongam muito além da data de seu encerramento, de modo que os credores que optarem por não habilitar seus créditos de forma retardatária poderiam, por exemplo, pedir a falência da recuperanda em caso de não pagamento dos valores - integrais e sem qualquer novação - cobrados em demandas individuais.

Ademais, a previsibilidade em relação ao passivo da companhia é de interesse de todos os envolvidos. O devedor precisa apurar seu passivo para apresentar um plano de recuperação condizente com sua realidade econômica, os credores precisam avaliar em assembleia geral de credores se as premissas de soerguimento apresentadas pela recuperanda são plausíveis e se, em consequência disso, irão aprovar ou não o plano de recuperação, bem como possuem interesse em verificar se a isonomia entre os credores está sendo mantida. A discussão também ganha contornos relevantes sob a ótica dos investidores, a previsibilidade é essencial para que seja avaliada a chance de sucesso da recuperação judicial e se eventual financiamento à devedora é viável.

Logo, conclui-se que a LRF, ao aludir a créditos existentes na data do pedido, pretendeu submeter aos ditames da Recuperação Judicial os débitos que especifica e que se refiram a fatos anteriores ao Pedido de Recuperação Judicial, logo, ainda que não vencidos, não sendo razoável que créditos abrangidos por tal marco não estejam sujeitos à novação e ao previsto no plano de recuperação aprovado pelos credores e homologado judicialmente.

Permitir tal cenário - que credores que foram arrolados espontaneamente pela recuperanda estejam sujeitos à novação e ao plano e credores concursais que não foram arrolados fiquem livres para seguir com demandas individuais - cria distorções em relação aos credores que deveriam ser enquadrados na mesma classe e não foram, as quais não podem ser admitidas no âmbito recuperacional, no qual vigora o princípio da igualdade entre os credores "par conditio creditorum.

Dessa forma, entende-se que a não inclusão de créditos existentes na data do pedido de recuperação judicial não poderá tornar tal credor indiferente aos efeitos do plano de recuperação. Ainda que exista uma faculdade quanto à apresentação ou não da habilitação de crédito, isso não significa que tal crédito estará alheio aos efeitos do plano aprovado e homologado. Eventual entendimento diverso irá colocar determinados credores em situação de privilégio, o que não admite a lei 11.101/05.

Assim, confia-se que tal entendimento contido no Recurso Especial 1.851.692/RS será oportunamente refinado para que, ainda que se reconheça que cabe ao credor a faculdade de habilitar ou não seus créditos, isto não significará que os efeitos do plano de recuperação não irão lhe atingir. Entendimento diverso irá desnaturar os objetivos do instituto da recuperação judicial, prejudicando todos os envolvidos.

(Migalhas - 13.07.2021)