A declaração de situação de emergência no município de São Paulo (Decreto nº 59.283/20), no dia 17 de março, lança luz sobre um aspecto determinante da crise global desencadeada pela pandemia do coronavírus (covid-19): seus pervasivos efeitos nas mais diversas áreas do direito brasileiro e internacional.

Entre os variados desafios impostos à análise jurídica, incluem-se a inviabilidade de cumprimento de obrigações contratuais e a consequente perda da funcionalidade de contratos comerciais, a eventual responsabilização de empregadores e/ou prestadores de serviço por infecções contraídas em suas dependências ou o aumento do risco de insolvência e de insustentabilidade de dívidas corporativas.

Há também uma série de implicações da pandemia para o direito público no Brasil decorrentes, sobretudo, (i) da emergência de um corpo normativo específico para o enfrentamento desta calamidade pública; (ii) do eventual conflito entre, de um lado, as medidas propugnadas para a prevenção do contágio e, de outro, direitos individuais ou outros aspectos do ordenamento jurídico do país; e (iii) das repercussões desta crise para serviços públicos, setores de infraestrutura e seus eventuais prestadores privados.

O subsistema normativo concebido para enfrentar o coronavírus tem origem na Portaria 188 do Ministério da Saúde, de 3 de fevereiro de 2020, responsável pela declaração de emergência em saúde pública de importância nacional (nos termos do Decreto nº 7.616/11). O regulamento ministerial buscou, inicialmente, emitir orientações às autoridades de saúde e sanitárias para a contenção da epidemia.

Logo após a declaração de emergência, em 6 de fevereiro de 2020, foi sancionada a Lei nº 13.979 (a Lei do Coronavírus, posteriormente regulada pela Portaria MS nº 356, de 11 de março), a qual prevê medidas relacionadas ao combate do surto de covid-19, como: (i) a determinação de isolamentos, quarentenas, exames e testes compulsórios ou o fechamento temporário das fronteiras do país; (ii) a dispensa de licitação para aquisição de bens e serviços destinados ao enfrentamento da emergência e a autorização para requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas (notadamente de hospitais privados, sem a necessidade de celebração de contrato administrativo, e profissionais de saúde, sem a formação de vínculos empregatícios), assegurada a justa indenização; e (iii) a obrigatoriedade, mesmo para pessoas jurídicas de direito privado, de divulgação de informações que possam colaborar com a identificação de pessoas infectadas ou com suspeita de infecção por covid-19, caso demandado por autoridade sanitária.

Após a declaração oficial da pandemia de coronavírus pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 11 de março, uma série de decretos estaduais (e até mesmo municipais, como a recente declaração de situação de emergência no município de São Paulo) se somou ao regramento federal. Entre os estados que dispuseram sobre medidas emergenciais de prevenção estão: (i) Minas Gerais (Decreto nº 47.886, de 12 de março de 2020); (ii) São Paulo (Decreto nº 64.862, de 13 de março de 2020); (iii) Rio de Janeiro (Decreto nº 46.970, de 13 de março de 2020); (iv) Rio Grande do Sul (Decreto nº 55.115, de 13 de março de 2020); (v) Espírito Santo (Decreto nº 4.593-R, de 13 de março de 2020); e (vi) o Distrito Federal (Decreto nº 40.520, de 14 de março de 2020).

Entre as previsões dos decretos estaduais mencionados estão desde a mera internalização, nos respectivos ordenamentos estaduais, das disposições e instrumentos constantes da Lei do Coronavírus; a emissão de comandos vinculantes a órgãos e entidades das administrações públicas estaduais, até a suspensão de eventos, atividades coletivas e aulas por prazo determinado. Alguns dispositivos, no entanto, ganham destaque, particularmente nos decretos do Distrito Federal e do Rio de Janeiro. O instrumento brasiliense, em seu art. 5º, declara que será considerado abuso do poder econômico a elevação de preços, sem justa causa, com o objetivo de aumentar arbitrariamente os lucros sobre insumos e serviços relacionados ao enfrentamento da covid-19 (tanto na forma da Lei nº 12.529/11 quanto do Decreto nº 52.025/63). O decreto carioca, por sua vez, determina, em seu art. 6º, que as “pessoas jurídicas de direito privado que prestam serviços à população em geral deverão observar as boas práticas fornecidas pela Organização Mundial de Saúde”.

No entanto, a despeito da gravidade do surto que assola o país (em termos sociais, econômicos e políticos), conflitos podem surgir com relação às intervenções propostas para a contenção da covid-19 – especialmente quanto aos remédios mais severos de enfrentamento, como a internação compulsória de contaminados ou o fechamento obrigatório de estabelecimentos comerciais.

De um lado, há quem defenda que, mesmo diante de tais circunstâncias, restrições tão rigorosas a direitos individuais – como a liberdade de ir e vir ou a livre iniciativa – demandariam a decretação de estado de defesa, com vistas a “preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza” (nos termos do art. 136 da Constituição Federal). Por outro lado, pode-se argumentar que, no cotejo entre direitos individuais e direito coletivos à saúde, proteção, segurança e assistência, prevaleceriam os últimos – sobretudo em contexto tão crítico quanto o de uma pandemia.

Outro aspecto jurídico a ser considerado envolve a normatividade das recomendações divulgadas por diversas autoridades públicas no atual contexto (como o próprio ministro da Saúde, governadores, prefeitos e centros de operações de emergência em saúde em diversos níveis), além dos efeitos jurídicos decorrentes da sua inobservância, especialmente quanto aos regimes de responsabilidade, ao menos na esfera civil.

Da perspectiva do direito público nacional, o surto de coronavírus traz, ainda, profundos desafios relacionados à prestação de serviços públicos e ao provimento de infraestruturas públicas essenciais por parceiros privados. Entre os exemplos, destacam-se riscos como (i) a frustação de projeções de demanda em contratos de concessão, seja pela queda espontânea na circulação de pessoas, seja pela determinação compulsória de toques de recolher para a prevenção do contágio; (ii) as agudas variações cambiais decorrentes da volatilidade dos mercados financeiros nacional e internacionais – tanto mais acentuadas pela simultânea crise do petróleo; ou (iii) o aumento generalizado de riscos identificados por agências de rating que afete a bancabilidade de projetos estratégicos. Um exemplo latente desses riscos é o plano de medidas emergenciais atualmente cogitado pelo governo federal para socorrer financeiramente as companhias aéreas.

Embora o tratamento de cada caso dependa umbilicalmente da forma como tais riscos foram abordados nos respectivos contratos, alguns institutos ganharão relevância especial e deverão ser levados em breve à apreciação de órgãos judiciais e administrativos. As cláusulas de força maior (em relação às quais só a China já emitiu mais de US$ 38 bilhões em certificados para eximir seus exportadores da culpa por inadimplementos contratuais), as áleas extraordinárias e os pleitos de reequilíbrio econômico-financeiro deverão ter papel fundamental na acomodação dos contratos e na viabilização da continuidade dos serviços atingidos.