O Decreto nº 10.306/20, promulgado em 2 de abril, estabelece a utilização do Building Information Modelling (BIM) na execução direta ou indireta de obras e serviços de engenharia pelo governo federal. Embora não tenha relação imediata com a crise de covid-19, a publicação do decreto no contexto da pandemia merece destaque não só pela importância do tema para as contratações de obras públicas e outros serviços de engenharia, mas também pela premente necessidade de construções em caráter emergencial.

Nosso escritório – representado pelos autores deste artigo – contribuiu formalmente para as análises técnico-jurídicas que fundamentam o texto do decreto durante os trabalhos de cooperação do antigo Ministério do Desenvolvimento (MDIC) com a Unesco. Isso nos permite cogitar a aplicação do BIM desde logo, seja para a edificação mais eficiente de hospitais e outros equipamentos de saúde pública – possivelmente como importante instrumento de combate à pandemia – seja para acelerar um conhecimento com potencial verdadeiramente transformador dos usos e costumes nos mercados de engenharia e construção.

O que é BIM e qual sua relevância jurídica

Na definição do decreto, o BIM, também denominado Modelagem da Informação da Construção, consiste em um “conjunto de tecnologias e processos integrados que permite criação, a utilização e a atualização de modelos digitais de uma construção, de modo colaborativo, que sirva a todos os participantes do empreendimento, em qualquer etapa do ciclo de vida da construção”.

A aplicação e exigência do BIM não inaugura novos conceitos e regimes de contratação existentes. A Modelagem da Informação da Construção representa, na verdade, um modo integrado de conceber e gerir a construção em todas as suas fases. Ela impede a segregação de informações produzidas, por exemplo, pelos projetistas e gestores da implantação, ampliação e reabilitação de obras. O BIM promove a comunicação entre os ciclos de vida da construção, desde a concepção do projeto, substituindo as formas tradicionais de elaboração de projetos de engenharia e arquitetura e tornando mais eficiente, no longo prazo, a implantação de obras públicas.

A implementação do BIM no Brasil foi idealizada pelo Poder Executivo há dois anos, com a instituição da Estratégia Nacional de Disseminação do BIM (Decreto nº 9.377/18) e do Comitê Gestor da Estratégia do BIM (Decreto 9.983/19). Embora se torne vinculante para alguns órgãos e entidades da Administração Pública federal – e mesmo de estados e municípios contemplados com repasses de recursos desses mesmos órgãos e entidades, como se verá abaixo – o decreto permite disseminar, desde logo, conhecimentos e, sobretudo, segurança para que os gestores façam uso imediato da ferramenta sem o receio de serem questionados pelos órgãos de controle.

Órgãos e entidades inicialmente vinculados

O decreto fundamenta-se no valor da segurança jurídica: além de respaldar as decisões de agentes públicos sobre contratações de obras e serviços de engenharia com a utilização do BIM, o governo federal sinaliza aos atores do setor de engenharia e construção cenários escalonados e de longo prazo, uma vez que o BIM será exigido gradualmente, com paulatina expansão de seus usos para os fins de execução direta e indireta de obras e serviços de engenharia. Assim, os mercados e as próprias entidades da Administração Pública vinculados terão praticamente oito meses para se adaptarem aos possíveis efeitos da determinação, evitando surpresas.

A primeira fase da disseminação do BIM começa a ter força vinculante em 1º de janeiro de 2021, alcançando apenas alguns órgãos e entidades. O decreto estabelece a efetiva exigência de adoção do BIM para: (i) o Ministério da Defesa, por meio das atividades executadas nos imóveis jurisdicionados ao Exército Brasileiro, a Marinha do Brasil e a Força Aérea Brasileira; e (ii) o Ministério da Infraestrutura, por meio das atividades coordenadas e executadas pela Secretaria Nacional de Aviação Civil (para investimentos em aeroportos regionais) e pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), para reforço e reabilitação estrutural de obras de arte especiais.

Além dos órgãos e entidades da Administração Pública federal diretamente vinculados, a utilização e a exigência gradual do BIM terão efeitos também sobre órgãos e entidades de quaisquer esferas de governo, consórcio público ou entidade sem fins lucrativos que celebrem, com os órgãos e entidades vinculados, instrumentos de repasse de recursos oriundos do orçamento fiscal e da seguridade social da União. Assim, órgãos e entidades estaduais e municipais que recebam repasse de recursos do Ministério da Defesa ou do Ministério da Infraestrutura (e respectivos órgãos vinculados) também deverão começar a usar o BIM no início de 2021.

Além desses órgãos e entidades vinculados, e sem prejuízo de que futuros decretos venham a alargar tal classe de destinatários das respectivas normas, o decreto faculta a qualquer órgão ou entidade da Administração Pública a aplicação do BIM, em qualquer de seus usos, independentemente das fases da disseminação da metodologia.

Usos obrigatórios do BIM e escalonamento

Os órgãos e entidades inicialmente vinculados deverão publicar, em 90 dias, um ato para qualificar os empreendimentos, programas e iniciativas de média e grande relevância para a disseminação do BIM, detalhando suas especificações e as demais características necessárias à sua aplicação nas três fases de disseminação do BIM.

A primeira fase – cuja obrigatoriedade se iniciará em 1º janeiro de 2021 – abrangerá apenas alguns usos do BIM, especificamente relacionados à elaboração dos projetos de arquitetura e engenharia e matérias correlatas referentes a construções novas, ampliações ou reabilitações consideradas de grande relevância para a disseminação do BIM. Essa fase envolverá: (i) disciplinas de estruturas, instalações hidráulicas, instalações de aquecimento, ventilação e ar condicionado e instalações elétricas; (ii) a detecção de interferências físicas e funcionais entre as diversas disciplinas e a revisão dos modelos de arquitetura e engenharia, para fins de compatibilização; (iii) a extração de quantitativos; e (iv) a geração de documentação gráfica, extraída dos modelos a que se refere o inciso I do art. 4º do decreto.

Em 1º de janeiro de 2024 terá início a segunda fase, em que será obrigatória a utilização do BIM na execução direta ou indireta de projetos de arquitetura e engenharia e na gestão de obras referentes a construções novas, reformas, ampliações ou reabilitações, quando consideradas de grande relevância para a disseminação do BIM. Abrangerá, no mínimo, (i) os usos previstos na primeira fase; (ii) a orçamentação, o planejamento e o controle da execução de obras; e (iii) a atualização do modelo e de suas informações como construído (as built) para obras cujos projetos de arquitetura e engenharia tenham sido realizados ou executados com aplicação do BIM.

A terceira fase, a ser iniciada em 1º de janeiro de 2028, passa a abranger também os empreendimentos considerados de média relevância para a disseminação do BIM. Aos usos previstos nas fases anteriores, serão adicionados o gerenciamento e a manutenção do empreendimento após a sua construção, cujos projetos de arquitetura e engenharia e cujas obras tenham sido desenvolvidos ou executados com aplicação do BIM.

O decreto e as contratações de projetos e obras

A exigência da utilização do BIM em uma ou mais etapas do ciclo de vida das construções, conforme o decreto, visam a alcançar (i) a execução direta de obras e serviços de engenharia, isto é, feitas pelos órgãos e entidades da Administração Pública, por seus próprios meios (art. 6º, VII da Lei nº 8.666/93); e (ii) a execução indireta de obras e serviços de engenharia, em que o órgão ou entidade contrata terceiros (art. 6º, VIII da Lei nº 8.666/1993). Na hipótese de contratação de terceiros, o respectivo edital e/ou contrato imporá ao contratado a obrigação de aplicar o BIM, conforme os requisitos do decreto. Além disso, o instrumento convocatório deverá esclarecer o nível de detalhamento da obra que se espera com a aplicação do BIM.

O decreto estabelece deveres contratuais mínimos para os terceiros contratados já usualmente exigidos, sobretudo em matéria de serviços de engenharia. A preocupação foi deixar claro que a adoção da metodologia não rarefaz as obrigações dos contratados, além de demandar que os usos do BIM sejam efetiva e exclusivamente seguidos na execução dos trabalhos.

As disposições do decreto refletem o conteúdo normativo das principais leis de licitações e contratos administrativos, desde as obrigações dos contratados nos usos do BIM até a utilização das nomenclaturas e o nível exigido de detalhamento e informação para elaboração dos projetos de engenharia e arquitetura. Esse cuidado revelado pelas disposições do decreto contribui para sua exequibilidade. Aperfeiçoa também a aplicação das leis de direito público em matéria de elaboração dos projetos de arquitetura e engenharia, de execução das obras e de gerenciamento e manutenção dos empreendimentos concluídos, na medida em que define e padroniza a metodologia, tecnologia ou processo exigível ao gestor público nessas atividades.

Além dos documentos de engenharia reconhecidos pela legislação vigente (anteprojeto, projeto básico e projeto executivo), o BIM passará a alcançar todos os demais documentos de engenharia passíveis de elaboração por essa metodologia. Isso significa que as disposições do decreto poderão ser implementadas em outras etapas ou níveis de detalhamento de obra ou projeto reconhecidos pelas melhores práticas de engenharia e especialmente pela aplicação do BIM – denominadas por arquitetos e engenheiros, entre outros especialistas, como estudo preliminar, estudo de viabilidade, projeto legal, entre outros. Considerando a falta de tratamento legislativo em tais casos, o decreto previu que esses outros níveis de desenhos, quando contratados, deverão atender aos parâmetros mínimos estabelecidos no decreto, às melhores práticas para a execução de fluxos de trabalho com o uso do BIM e ao disposto nas normas técnicas pertinentes.

A fim de possibilitar uma transição para um novo modelo, quando ela for necessária, o decreto permite que os órgãos e as entidades a ele vinculados possam contratar serviços de engenharia para adaptar ao BIM os projetos de arquitetura e engenharia (em qualquer nível de detalhamento), antes elaborados com o emprego de outros processos ou tecnologias.

As externalidades positivas do BIM paras as obras públicas

A utilização do BIM permite criar virtualmente um ambiente capaz de simular a construção em toda sua complexidade: arquitetura, fundações e estrutura, telhados e coberturas, instalações hidráulicas, elétricas, entre outras. O componente de interação e coordenação ajuda a prevenir e corrigir potenciais problemas antes da etapa de obra. Em outras palavras, as atividades de interação dos agentes envolvidos permitem que as eventuais inconsistências sejam identificadas e corrigidas antes da apresentação dos documentos necessários e, sobretudo, da execução dos trabalhos de implantação.

Por isso, no desenvolvimento de projetos com a metodologia BIM, a concentração das decisões acontece na fase anterior à etapa de obra. Esse processo demanda maior atuação dos projetistas complementares (de instalações, estruturas, interiores etc.), montadores, fabricantes e fornecedores nos estágios iniciais dos projetos, o que, somado à capacidade de simulação virtual por meio da plataforma BIM, possibilita maior coesão e consistência depois das etapas iniciais. Estas, por sua vez, podem exigir maior alocação de recursos e investimentos com o BIM do que com as técnicas atuais. Essa característica facilita, sobretudo, as alterações qualitativas dos contratos e os processos de reequilíbrio econômico-financeiro, automatizando os cálculos pertinentes e conferindo maior segurança e proteção contra desvios e malfeitos nesses processos.

Assim, a concentração de esforços nas fases iniciais permite maior definição do projeto, reduzindo incertezas, interferências e retrabalhos, de um lado, e aumentando a precisão do empreendimento, por outro. Na metodologia BIM, portanto, transferem-se os esforços para as etapas iniciais, antecipando riscos que poderiam surgir depois, na etapa de execução obras. A visualização prévia de possíveis inconsistências no desenvolvimento da obra permite otimizar o cronograma e o planejamento da obra, reduzindo a celebração de termos aditivos, além de esforços e custos (desperdícios) nas fases posteriores.

O decreto reconhece que a obsessão da Administração Pública pelo menor preço como critério de seleção da melhor proposta em licitações deve ser superada. Propõe-se uma análise mais complexa do custo-benefício, que vai além do desembolso econômico-financeiro no instante da contratação do projeto para abranger a responsabilidade em todo o ciclo de vida do empreendimento contratado. Nessa nova acepção de economicidade, o BIM concorre para permitir que a Administração Pública alcance uma relação custo-benefício melhor nas contratações de obras e serviços de engenharia.

Em resumo, a eficiência agregada com a utilização do BIM vem contribuir para enfrentar esse momento de crise, em que as obras públicas ganham uma relevância particular: de um lado, poderão ser executadas em caráter emergencial, o que gera ônus e cautelas adicionais para os gestores públicos e até mesmo para os contratados, e, de outro, têm vocação para alavancar a retomada da economia, no momento em que o Estado exerce seu poder de compra para gerar empregos e disseminar novas tecnologias e conhecimentos.

O BIM incrementa também a transparência, a segurança e o compliance nas relações contratuais do Estado com particulares, podendo servir como base de procedimentos de reequilíbrio, reprogramação de investimentos e repactuações, os quais, se já são naturais em tempos normais nos mercados de engenharia e construção, devem aumentar com os efeitos da pandemia de covid-19.