É da natureza humana a capacidade de se superar e se adaptar diante de situações adversas. A Primeira e a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, desencadearam transformações drásticas na sociedade, com impactos na geografia, economia e política globais.

Esses conflitos acabaram impulsionando criações revolucionárias na área da tecnologia, como o rádio e o computador, e na saúde, caso da penicilina. Mais recentemente, durante a pandemia de covid-19, a sociedade experimentou uma nova situação devastadora que, pela intensidade e letalidade, alterou (e vem alterando) os hábitos e as pretensões da população em geral.

Nos últimos anos, o mundo vive na era da economia compartilhada, baseada na valorização do consumo colaborativo e no compartilhamento de serviços e bens. No campo imobiliário, mesmo antes da pandemia, já era possível perceber alterações no perfil dos consumidores, tanto os mais jovens, que não desejam mais investir grandes quantias para realizar o (talvez antigo) sonho da casa própria, como os mais velhos, que quebram barreiras sociais antigas para morar sozinhos e compartilhar novas experiências em uma etapa avançada da vida.

Não é por acaso, inclusive, a clara diminuição gradual de metragem dos apartamentos lançados, uma situação cada vez mais comum em grandes cidades. A redução se deve tanto à escassez de terrenos em grandes centros urbanos e ao alto custo do metro quadrado em regiões de melhor localização, quanto à boa aceitação do público, que já se acostuma a morar em pequenos apartamentos e utilizar mais espaços comuns nos condomínios.

Em São Paulo, por exemplo, é possível encontrar ofertas de apartamentos cada vez menores, voltadas para um tipo de público interessado em imóveis com mais espaços compartilhados de lazer e serviços, próximos aos centros urbanos, do que por grandes apartamentos.

A Lei de Zoneamento de São Paulo (Lei Municipal 16.402/16), entre outros objetivos, visou aproximar núcleos residenciais e comerciais, ao aumentar a oferta de apartamentos mais próximos aos eixos de transportes públicos, em áreas mais afastadas do Centro, justamente para que moradores tivessem mais acesso a esses serviços.

Esse movimento urbanístico parece estar em sintonia com o coliving, prática mais recente no Brasil, porém já comum e difundida em outras partes do mundo. O objetivo principal é compartilhar experiências e facilitar a concentração de moradia, lazer e comércio num único polo.

Nascido na década de 1970, na Dinamarca, o então cohousing (caracterizado por unidades individualizadas em torno de espaços coletivos) abrangia uma vizinhança que buscava vivenciar certo senso de comunidade, com espaços de convivência e atividades compartilhados.

A ideia foi aplicada e adaptada nos Estados Unidos na década seguinte e se manteve como uma opção viável e em constante adaptação até os dias atuais. No conceito de coliving, alguns espaços, geralmente salas, cozinha e lavanderia, de um único imóvel são compartilhados e há um quarto para cada residente.

Muito confundido com as repúblicas universitárias, a ideia do coliving é agregar e dar acesso a experiências compartilhadas, com condições que provavelmente não seriam possíveis caso as facilidades fossem dispostas em unidades individuais. Trata-se do conceito de dividir para multiplicar.

Cidades como Nova York, Londres e São Paulo têm, cada vez mais, moradores interessados em usufruir desse senso de comunidade em relação à moradia, para conseguir residir em regiões centrais badaladas (em Nova York, Staten Island; em Londres, Old Oak; e em São Paulo, Jardins, Higienópolis e Pinheiros) e ter acesso a serviços de lazer e comércio concentrados nessas áreas, com expressiva redução de custos.

No Brasil, a aceitação do coliving pelo público também parece crescer. Em maio de 2019, apenas 30% dos brasileiros aceitavam o coliving como uma opção. Em março de 2020, esse percentual já era de 55% entre os paulistanos.

Com a pandemia, houve uma sensível alteração na forma de utilização dos escritórios, dos espaços urbanos e residenciais. A maneira como a cidade é ocupada mudou e, consequentemente, os hábitos de seus cidadãos. O modelo do coliving foi posto em xeque, já que ele incentiva o uso dos espaços compartilhados, o que torna mais difícil manter o distanciamento social. Ainda assim, a proposta vem se adaptando e buscando a consolidação e aceitação no mercado.

No campo legal, a Constituição Federal assegura como direito social a moradia, ao lado de direitos como o lazer, o transporte e a segurança, conceitos próximos às características do coliving. No entanto, da mesma forma, o direito à propriedade também é garantido pela Constituição como direito inviolável.

A instrumentalização jurídica do coliving geralmente ocorre por meio de contrato de locação padrão, regido pela Lei de Locações (Lei Federal 8.245/91), com previsões severas em relação à obrigatoriedade de se respeitar a convenção condominial e regras gerais de convivência.

No entanto, o modelo não tem resguardo específico em lei que trate de questões como período mínimo de estadia, características dos moradores, responsabilidade de cada um perante o condomínio, limitação de atividades, entre outras.

A falta de previsão acaba por dificultar a aplicação do coliving em prédios estritamente residenciais, que, em geral, adotam uma postura mais conservadora, especialmente em função do perfil dos moradores do coliving. Em geral, pessoas que adotam esse modelo de moradia não intencionam fixar residência no local por períodos muito longos, o que gera desgaste e conflitos de interesses entre os moradores.

A discussão aumenta quando se tenta estabelecer o limite do exercício ao direito de propriedade daquele que deseja locar seu imóvel para instalar uma unidade de coliving em prédio residencial, no qual não haja outros apartamentos que adotem o modelo. A dificuldade pode se dar tanto pelo desinteresse dos proprietários quanto pela proibição expressa (cuja validade é questionada por aqueles que buscam a aplicação do modelo) na convenção do condomínio.

Do descompasso do direito diante do rápido avanço da tecnologia e dos novos negócios, surgiram os primeiros debates sobre a validade do coliving no ordenamento jurídico brasileiro. O modelo enfrenta a resistência do sistema de locação tradicional à locação short stay (airbnb). Também se depara com a dificuldade de aceitação por parte de condomínios ocupados – e preocupados – com questões como segurança, circulação de pessoas, rotatividade, perfis dos moradores e aumento do uso da área comum.

Enquanto a pandemia parece ter sido controlada e a sociedade começa a incorporar as alterações culturais e sociais por ela trazidas, as discussões sobre o coliving vão tomando forma no Judiciário.

De um lado, startups, investidores e empresas que buscam desenvolver e aplicar a economia compartilhada em novos (ou talvez nem tão novos assim) modelos de negócios. De outro, moradores, síndicos e proprietários apreensivos com as grandes mudanças de utilização dos apartamentos e dos espaços comuns de seus imóveis em tão curto espaço de tempo e, ainda, sem clareza ou regras de uso bem definidas, o que pode impactar na concepção original do empreendimento como residencial típico.

Assim, é necessário aguardar o desfecho das primeiras discussões nos tribunais brasileiros sobre o tema, considerando, inclusive, o aparente conflito entre princípios constitucionais.

Apenas com o passar do tempo e o desenrolar dessas decisões judiciais será possível aferir se o colivig é uma realidade que veio para ficar no Brasil, o que possivelmente demandará ainda certa flexibilização e ajustes de normas, ou se será necessário mais um salto de desenvolvimento para outro modelo jurídico que atenda aos anseios de uma sociedade que vive um processo de constante mudança e adaptação.