Em decisão proferida no julgamento do REsp 1.960.026/SP (2021/0293416-6), no último dia 11 de outubro, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) cassou parcialmente um acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), em um caso que envolveu a possibilidade de penhora de um bem em construção. O TJSP havia considerado que o imóvel em construção não poderia ser caracterizado como bem de família, pelo fato de o devedor não residir no local com seus familiares. Esse entendimento traz à discussão a controvérsia sobre o alcance da proteção de que trata a Lei 8.009/90.

O tribunal de origem concluiu pela penhorabilidade do bem, sob a alegação de que a proteção legal estabelecida na Lei 8.009/90 somente pode ser deferida se ficar comprovado que o devedor possui apenas um único imóvel e, ainda, que este imóvel sirva efetivamente de residência à entidade familiar ou seja utilizado como fonte de recursos destinados à subsistência da família (bem de família indireto, Súmula 486/STJ).

A Lei 8.009/90 estabelece que o imóvel residencial próprio do casal ou da entidade familiar é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida contraída pela entidade familiar (cônjuges, pais ou filhos) que sejam seus proprietários e nele residam.[1]

Em seu voto, o relator, ministro Marco Buzzi, defendeu que a finalidade da lei não é proteger o devedor contra as suas dívidas, mas sim proteger a entidade familiar e amparar direitos fundamentais, como a dignidade da pessoa humana e a moradia, razão pela qual as normas protetivas desses direitos devem ter as suas exceções interpretadas de maneira restritiva.

Dessa forma, a interpretação mais alinhada à finalidade da Lei 8.009/90 é a de que o fato de o devedor não residir no único imóvel de sua propriedade, não basta para impedir que esse imóvel seja considerado um bem de família.

A decisão da Quarta Turma do STJ baseia-se, ainda, no REsp 1.417.629/SP, julgado em 10 de dezembro de 2013 pela Terceira Turma do STJ e relatado pela ministra Nancy Andrighi. O julgado menciona que “(...) embora nua a terra, é possível considerá-la impenhorável se comprovado que a família tem a intenção concreta de nela se instalar – por exemplo, se houver um projeto de construção, compra de materiais e o início da obra (...)”. Ou seja, embora não exista ainda uma moradia habitável, o imóvel está sendo construído para esse fim.

No caso em análise, a dívida contraída pelos devedores não decorreu de obrigação relativa à própria construção da unidade habitacional, o que poderia enquadrar a penhora nas exceções previstas na lei.

Além disso, os devedores, por serem idosos, contam com a proteção do Estatuto da Pessoa Idosa contra o possível desamparo à entidade familiar, situação que poderia se concretizar, caso a penhora fosse mantida.

Como o TJSP não havia feito a análise dos demais requisitos para que o imóvel fosse considerado bem de família (por exemplo, a confirmação da inexistência de outros imóveis de propriedade dos devedores), determinou-se o retorno dos autos ao tribunal de origem para novo julgamento.

Com os argumentos trazidos pelo ministro relator, o STJ reforça a necessidade de interpretar leis protetivas de direitos fundamentais – como ocorre com o bem de família – de acordo com o caso concreto. As restrições aplicáveis devem ser respeitadas, sem, porém, deixar de cumprir o objetivo de proteção estabelecido pela norma.

 


[1] Salvo se o processo de execução for movido:

  • pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato;
  • pelo credor da pensão alimentícia, resguardados os direitos, sobre o bem, do seu coproprietário que, com o devedor, integre união estável ou conjugal, observadas as hipóteses em que ambos responderão pela dívida;
  • para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar;
  • para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar;
  • por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens; e
  • por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.