Ao julgar o recurso especial 1.937.548/MT, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que a alienação de imóvel antes de sua execução, ainda que por instrumento particular e sem registro no Registro de Imóveis, afasta a caracterização de fraude à execução. O recurso especial foi interposto contra decisão que manteve penhora sobre imóvel objeto de instrumento particular de dação em pagamento anteriormente ao ajuizamento da ação de execução.

O julgado consolidou e ampliou entendimento jurisprudencial já formado no STJ em relação à aplicação do instituto da fraude à execução. Para entender melhor o tema, cabe lembrar brevemente o contexto de aplicação e o conceito do instituto.

No sistema legal brasileiro, com base no princípio da responsabilidade patrimonial, todos os bens de uma pessoa (física ou jurídica) estão sujeitos a serem usados para satisfazer as obrigações às quais essa pessoa está submetida. Em respeito ao preceito da boa-fé, a pessoa não pode simplesmente dispor de seus bens quando a soma de suas obrigações (existentes, futuras ou decorrentes de ações ajuizadas) for superior ao valor total deles. Para satisfazer dívidas decorrentes das suas obrigações, em caso de insolvência, os bens do devedor poderão ser alienados em juízo – de acordo com ordem de preferência e concurso de credores.

Para as pessoas físicas, conforme o art. 1.052 do novo Código de Processo Civil – Lei 13.105/15 (CPC/15) –, instaura-se o chamado procedimento de insolvência civil previsto nos artigos 748 e seguintes do Código de Processo Civil de 1973 – Lei 5.869/73 (CPC/73). No caso das pessoas jurídicas, instauram-se os procedimentos de recuperação judicial ou de falência de acordo com as disposições da Lei 11.101/05 (Lei de Falências).

Na ausência da instauração desses procedimentos típicos de concurso de credores para expropriação dos bens do devedor com vistas à satisfação dos créditos em juízo e na ocorrência da alienação de bens pelo devedor insolvente na pendência de ação ajuizada, temos uma das possibilidades tipificadas pelo CPC/15 (e também pelos códigos anteriores ao novo CPC) de proteção à boa-fé e controle da disponibilidade de bens – que dá origem ao instituto da fraude à execução.

De forma resumida, na hipótese prevista no inciso IV do art. 792 do CPC/15, a fraude à execução objetiva declarar a ineficácia, perante o credor, da alienação ou oneração de bens quando praticadas na pendência de ação ajuizada capaz de reduzir o devedor à insolvência[1] (exceto pelos casos de execução de créditos tributários previstos no art. 185 do Código Tributário Nacional). A finalidade é possibilitar o prosseguimento à satisfação do crédito, como se o bem alienado tivesse retornado à esfera de patrimônio do devedor. A alienação não se desfaz, mas mediante a declaração da fraude à execução – incidental ao processo relacionado à obrigação para a qual se busca satisfação – não tem eficácia perante o credor que a requereu, como se o bem anteriormente alienado voltasse a pertencer ao devedor.

Nesse contexto, destaca-se a importância da decisão do STJ.

Segundo o inciso IV do art. 792 do CPC/15, é considerada praticada emfraude à execução a alienação ou a oneração de bem “quando, ao tempo da alienação ou oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência”. Ao mesmo tempo, o Código Civil, Lei 10.406/02 (CC/02), em sua Seção II do Capítulo II do Título III (“Da Aquisição pelo Registro do Título”) e mais especificamente em seu art. 1.245, estabelece que se transfere (adquire) a propriedade imobiliária entre vivos mediante “o registro do título translativo no Registro de Imóveis”. Dessa maneira, em uma interpretação literal e positivista do texto legal, seria possível entender que a alienação a que se refere o CPC/15 se dá com o registro do título translativo; mas não é essa a interpretação demonstrada na decisão do STJ.

De acordo com a súmula 84 do STJ, é possível opor embargos de terceiro para desconstituir a penhora sob alegação de posse decorrente de compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que esse compromisso não tenha sido registrado. Segundo a jurisprudência consolidada nessa súmula, na hipótese de penhora de imóvel anteriormente compromissado pelo devedor cuja posse tivera sido antes transmitida, como tanto o direito do credor diante do devedor como também o direito do promissário comprador diante do devedor (nesse caso, anteriormente na posição de promitente vendedor) são pessoais, deve prevalecer o direito do possuidor e promissário comprador em razão da boa-fé e anterioridade.

E não poderia ser diferente: para os ministros que sedimentaram essa jurisprudência, o patrimônio do devedor deve ser entendido como um todo que compreende os bens, os direitos e, também, as obrigações – entre elas, a obrigação pessoal e anterior de outorgar escritura de compra e venda ao promissário comprador do bem penhorado, à qual – obviamente – corresponde valor pecuniário em igual montante ao valor do bem.

A decisão do STJ trouxe como novidade a extensão dessa interpretação para a dação em pagamento manejada por instrumento particular. Segundo a decisão do REsp 1.937.548/MT, “conquanto se tenha uma dação em pagamento e não um compromisso de compra e venda é possível aplicar o mesmo entendimento” com base nas disposições do art. 357 do CC/02, o qual aplica as regras da compra e venda à dação em pagamento de forma subsidiária. Dessa maneira, o registro imobiliário do título translativo somente se tornaria imprescindível para a oposição de direitos diante de terceiros que pretendessem reivindicar direitos juridicamente incompatíveis com a pretensão aquisitiva do promissário comprador – no caso, incompatíveis com a pretensão de outorga de escritura definitiva em favor de quem recebeu a dação em pagamento. Esse não é o caso do credor que ajuizou ação posteriormente à celebração do negócio.

Apesar do entendimento do STJ, a recomendação continua a ser de que, além de realizar a auditoria jurídica prévia do imóvel, do atual proprietário e de seus antecessores nos últimos 15 anos para avaliar a existência de dívidas e/ou ações judiciais que possam tornar o vendedor insolvente, seja providenciado o registro dos títulos translativos de propriedade tão logo possível nos termos do art. 1.245 do CC/02. O registro do título (escritura de compra e venda, de dação em pagamento, de doação etc.) é a maneira mais segura de evitar os riscos e custos de eventual constrição sobre imóveis adquiridos. É também a melhor forma de dispensar o adquirente de boa-fé da necessidade de apresentar defesa, caso venham a alegar que a alienação foi realizada em fraude à execução.

 


[1] Nesse ponto, vale observar que a alteração introduzida pela Medida Provisória 1.085/21 no art. 54 da Lei 13.097/15, ao que parece, não foi capaz de alterar o entendimento a respeito dos requisitos para a caracterização da fraude à execução tipificada pelo inciso IV do art. 792 do CPC/15. Mesmo que a medida provisória tenha introduzido “a averbação [na matrícula do imóvel], mediante decisão judicial, da existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência, nos termos do disposto no inciso IV do caput do art. 792” do CPC/15 como uma das restritivas exceções à validade dos negócios jurídicos que tenham por objeto imóveis, a redação do art. 792 foi mantida no CPC/15 – não sendo permitida a sua alteração (ainda que de forma indireta) por meio de medida provisória nos termos da Constituição Federal (cf. alínea “b” do inciso I do §1º do art. 62). Para alterar os requisitos do art. 792 do CPC/15, seria necessário procedimento legislativo próprio, já que o CPC/15 constitui lei especial no que se refere às normas processuais.