Até o advento da Lei 13.874/19 (Lei da Liberdade Econômica), muito se debatia sobre a natureza jurídica dos fundos de investimento e a extensão da responsabilidade de seus cotistas por passivos não saldados desses fundos.

À exceção dos fundos imobiliários – única espécie de fundo de investimento que era regulamentada por lei específica e que limitava a responsabilidade de cotistas[1] – a doutrina majoritária, baseada nos normativos editados pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), entendia que os fundos de investimento:

  • apresentavam natureza condominial (ainda que revestidos de características especiais que os diferenciavam do condomínio civil), sem personalidade jurídica própria; e
  • se sujeitavam – diante da lacuna legislativa sobre a limitação de responsabilidade dos cotistas (à exceção dos fundos imobiliários) – suplementarmente às regras sobre o condomínio geral. Como consequência, entendia-se que o cotista respondia por todos os passivos não saldados do fundo (respeitada apenas a sua cota-parte no condomínio).[2]

Com a edição da Lei da Liberdade Econômica, os fundos de investimentos foram finalmente regulamentados e inseridos no ordenamento civil (via inserção do novo capítulo X no Código Civil) e tiveram sua natureza jurídica definida como um “condomínio de natureza especial”. Pela nova lei, as regras do condomínio geral estabelecidas nos artigos 1.314 e seguintes do Código Civil não são aplicáveis aos fundos de investimentos. A responsabilidade ilimitada de condôminos, portanto, ficou expressamente afastada.

A lei também facultou expressamente que o regulamento de um fundo de investimento preveja a limitação de responsabilidade do cotista (por passivos do fundo) ao valor das cotas subscritas por esse cotista.[3]

Atualmente, está em discussão a minuta de resolução CVM que disporá sobre a constituição, o funcionamento e a divulgação de informações dos fundos de investimento, assim como a prestação de serviços para os fundos. A mesma resolução regulamentará a Lei da Liberdade Econômica e os contornos da natureza jurídica dos fundos de investimento e da limitação de responsabilidade de seus cotistas.

Sem prejuízo desse avanço regulatório, ainda pendente, pode-se concluir que a responsabilidade de cotistas passou a ser regrada e pode ser limitada.

A questão que se coloca é: como o Judiciário interpretará essa limitação e quais as hipóteses em que ela poderá ser derrogada para que credores de um fundo de investimento possam acessar o patrimônio dos cotistas desse fundo? Valerão os mesmos argumentos utilizados para a desconsideração da personalidade jurídica de sociedades? Serão aplicadas as regras sobre solidariedade por grupo econômico utilizadas em matéria trabalhista? Ou, ainda, a responsabilidade subsidiária será aplicada em matéria tributária?

Responsabilização civil do cotista

Embora a Lei da Liberdade Econômica tenha conferido aos fundos de investimento a natureza de condomínio, as caraterísticas especiais desse condomínio fazem com que os cotistas não apresentem as mesmas prerrogativas que os condôminos detêm em relação ao patrimônio comum, em especial de “usar da coisa conforme sua destinação, sobre ela exercer todos os direitos compatíveis com a indivisão, reivindicá-la de terceiro, defender a sua posse e alhear a respectiva parte ideal, ou gravá-la” (art. 1.314).

Diferentemente do que ocorre no condomínio civil, os cotistas de um fundo de investimento têm direitos apenas sobre as frações patrimoniais do fundo proporcionais à aplicação feita (representado por cotas), incluindo os respectivos rendimentos, direito de resgate e direito de participar da liquidação do patrimônio comum.

Os ativos do condomínio especial denominado fundo, não são, a rigor, ativos diretos dos seus cotistas nem estão disponíveis para serem penhorados para satisfazer credores desses cotistas.

Dessa forma, as cotas de um fundo de investimento não podem responder por dívidas ou passivos do próprio fundo de investimento, salvo se o regulamento do fundo não limitar a responsabilidade do cotista.

Cada cotista detém direitos exclusivamente sobre as cotas representativas do investimento feito por ele para a consecução do patrimônio comum do fundo e, portanto, as cotas pertencentes aos outros coinvestidores não podem ser atingidas por dívidas contraídas por um cotista.

Decisão do STJ

Recentemente, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu[4] que fundos de investimento podem ser objeto de desconsideração inversa da personalidade jurídica caso sejam utilizados para blindar patrimonialmente os seus cotistas com a clara intenção de lesar credores.

Apesar de os fatos de que trata o acórdão serem anteriores à promulgação da Lei da Liberdade Econômica, a decisão mostra que a limitação de responsabilidade, ainda que consignada em regulamento e agora respaldada por lei, não será absoluta e haverá casos em que poderá ser relativizada ou derrogada.

As regras projetadas para a proteção do patrimônio do investidor (cotista) perderão a aplicabilidade quando houver comprovação inequívoca de que o próprio fundo de investimento foi constituído de forma abusiva, seja com intuito de fraudar credores ou de servir a fins não adequados à natureza e aos objetivos dos fundos de investimento. Um exemplo seria afastar os ativos do fundo (caixa, recebíveis, imóveis, ações) do universo de ativos disponíveis à penhora e, consequentemente, lesar credores do cotista.

Essa intenção fraudulenta não está relacionada às atividades do fundo – as quais são conduzidas por prestadores de serviços profissionais devidamente cadastrados na CVM (como determinado na Instrução CVM 555/14) –, mas sim a interesses de seus cotistas (pessoas naturais ou jurídicas), que utilizam do seu guarda-chuva para ocultar patrimônio.

A decisão do STJ foi proferida nesse contexto. No caso analisado, um fundo de investimento em participações (FIP) tinha duas empresas do mesmo grupo econômico como suas cotistas. Ambas – diante do valor irrisório do repasse de cotas do FIP entre elas (extremamente destoante do valor de mercado) – agiram com desvio de finalidade e confusão patrimonial para ocultar o verdadeiro patrimônio do grupo econômico do qual fazem parte – com o claro intuito de prejudicar credores.

Ou seja, diante do abuso da finalidade da entidade e da ausência de terceiros (cotistas) de boa-fé, tornou-se possível aplicar a desconsideração inversa da personalidade jurídica dos cotistas (em paralelo com o art. 50, § 3º, Código Civil), atingindo diretamente o patrimônio líquido do FIP.

Parece, portanto, que a tendência é o Judiciário adotar as hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica (nas modalidades direta ou inversa) contidas no art. 50 do Código Civil para casos de abuso similares envolvendo fundos de investimento e seus cotistas. Diante da utilização abusiva do veículo de investimento, as normas aplicáveis à proteção patrimonial dos cotistas não deverão prevalecer, sob pena de esvaziamento do propósito característico da entidade.

Casos de desconsideração de personalidade jurídica de sociedades investidas de fundos de investimento que levem passivos dessas sociedades a ser atribuídos a seus sócios, inclusive fundos de investimento, poderão eventualmente também atingir os cotistas desses fundos, especialmente sob os argumentos de “grupo econômico” utilizados em matéria trabalhista.

Sob a perspectiva tributária, os fundos de investimento têm sido recorrentemente objeto de autuações pela Receita Federal do Brasil. Como regra, a legislação atribuiu ao administrador de fundos a responsabilidade pelos tributos incidentes sobre os rendimentos auferidos pelos cotistas ou pela própria carteira dos fundos que administra – nesses casos, o administrador é o sujeito passivo da obrigação tributária na qualidade de responsável.

Nesse contexto, há casos de autuação no âmbito administrativo (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – Carf) contra o administrador de fundos de investimento. Com relação aos cotistas, já há também casos de autuações decorrentes de planejamento tributário abusivo, como o que envolveu a decisão do STJ.

Com base nessas considerações, os contornos da responsabilização de cotistas de fundos de investimento ainda dependerão de um exame mais aprofundado, por parte do Judiciário, dos conceitos trazidos pela Lei da Liberdade Econômica e da regulação CVM que ainda está por vir.

 


[1] Nos termos do inciso II do art. 13 da Lei 8.668/93, o cotista “II - não responde pessoalmente por qualquer obrigação legal ou contratual, relativamente aos imóveis e empreendimentos integrantes do fundo ou da administradora, salvo quanto à obrigação de pagamento do valor integral das cotas subscritas”.

[2] Vide artigos 1.315 e 1.320 do Código Civil.

[3] Vide artigo 1.368-D do Código Civil.

[4] Vide acórdão ao Recurso Especial 1965982 – SP, de 5 de abril de 2022.