Perto do fim do terceiro trimestre e após quase seis meses de distanciamento social, já é possível identificar, ao menos preliminarmente, alguns dos impactos causados pela pandemia de covid-19 na prática de fusões e aquisições.

Até o fim de maio praticamente todas as operações estavam suspensas em virtude da falta de visão sobre a progressão do coronavírus e seus impactos sociais e econômicos, mas agora o mercado de fusões e aquisições passa a acompanhar o mercado de capitais e já começa a mostrar forte movimento de recuperação ainda em meio a incertezas sobre a pandemia.

Fusões e aquisições em números

O mês de abril apresentou o maior declínio em transações anunciadas, de acordo com os dados mais recentes do Transaction Impact Monitor, publicado pela Transactional Track Record. Maio e junho seguiram com números baixos, e julho registrou a maior quantidade de transações no ano. Em dados consolidados para 2020, as cerca de 750 operações de M&A anunciadas no Brasil até agosto (inclusive) representam uma queda de 18% em comparação com o mesmo período de 2019.

A indústria com o maior número de transações foi a de tecnologia, seguida pelo setor financeiro e de seguros. Esses dados indicam que grande parte das operações que haviam sido suspensas foi retomada em ritmo acelerado. Isso contraria as expectativas iniciais de que as operações de M&A durante a pandemia se concentrariam em distressed assets (ativos em situação de estresse financeiro) e indica que os agentes de mercado estão atentos aos ativos que representam alto potencial de apreciação em virtude das novas tendências de comportamento e organização social no durante e pós-pandemia.

Novos desenvolvimentos

Enquanto os agentes de mercado seguem procurando oportunidades de negócios diante das novas condições impostas pela pandemia, cabe fazer um balanço parcial e preliminar de novos desenvolvimentos na prática de fusões e aquisições verificados nas negociações ocorridas durante a pandemia.

  • Due diligence: do ponto de vista do mapeamento de contingências, a pandemia afetou os agentes econômicos de maneiras distintas, dificultando análises e conclusões que possam ser aplicadas de maneira genérica a todos os negócios.

Nesse contexto, a atenção à diligência tem sido redobrada. Os assessores dos compradores revisaram suas listas padrão de solicitações de auditoria para incluir questionamentos sobre os impactos causados pela pandemia nas atividades, vendas, expansão, contratos e perspectivas futuras das sociedades-alvo de um modo geral. O peso atribuído ao ano de 2020, em termos de crescimento e expansão das sociedades-alvo, tem sido relativizado pelos potenciais compradores em suas avaliações e modelos.

  • Earn-out: mecanismos nos quais parte do preço de aquisição depende do desempenho do negócio durante um certo período após o fechamento têm se mostrado instrumentos eficientes de construção de pontes e alocação de riscos entre compradores e vendedores no momento em que, muitas vezes, as expectativas das partes não estão inteiramente alinhadas com a precificação do ativo na atual situação de incertezas.

Com efeito, em um cenário de instabilidade e de maior exposição a diversos tipos de risco, como é o caso da pandemia de covid-19, as cláusulas de earn-out se tornaram poderosas alternativas à redução do valor dos ativos desde já, permitindo que os negócios capturem os benefícios da retomada econômica esperada para o futuro próximo.

Como de costume, as partes devem definir de forma clara e objetiva as métricas que serão levadas em consideração para determinar o desempenho satisfatório do negócio, além de estabelecer mecanismos eficazes para a sua aferição.

  • Efeito adverso relevante: a condição precedente de ausência de efeito adverso relevante já era importante nos documentos da transação antes da pandemia, mas agora tem ainda mais peso para os agentes de mercado e as partes envolvidas.

Sem adentrar o mérito da efetividade da condição precedente de ausência de efeito adverso relevante, a estrutura da definição e da respectiva condição precedente não sofreu modificações substanciais no novo cenário, mas as eventuais hipóteses de ocorrência e as exceções têm sido mais detalhadas e desenhadas para o caso concreto.

A menção expressa a epidemias e pandemias como exceções à configuração de efeito adverso relevante já estava presente em algumas negociações, mas agora as partes passaram a fazer constar dos contratos de compra e venda que os efeitos da pandemia de covid-19, de forma genérica, não poderão ser utilizados como justificativa para evitar o fechamento da transação, ainda que seus potenciais efeitos não possam ser previstos com clareza.

  • Declarações e garantias: a cláusula de declarações e garantias, associada à obrigação de indenização por falsidade ou incorreção de tais declarações, continua sendo um elemento central das negociações. Os efetivos impactos da pandemia nos negócios são tratados, conforme necessário, nos anexos que listam as exceções a tais declarações e garantias (os chamados disclosure schedules).

Alguns vendedores tentam obter dos compradores uma declaração reconhecendo que a transação está sendo negociada e celebrada no contexto da pandemia de covid-19, e que eventuais quebras de declarações entre o signing e o closing resultantes dos efeitos da pandemia não poderão ensejar a desistência do negócio pelos compradores. Estes, por sua vez, têm refutado a declaração. Não é possível afirmar que tal disposição contratual foi amplamente difundida na prática de fusões e aquisições.

Private equity

O setor de private equity teve até o momento uma dinâmica bastante singular. Em meados de março, no início da pandemia, as atenções se voltaram às gestoras de private equity com atividade no Brasil no que diz respeito tanto a seus potenciais desinvestimentos via mercado de capitais quanto a novos investimentos.

Em relação aos desinvestimentos, a redução da taxa básica de juros a níveis sem precedentes na história recente do país, combinada com a liquidez gerada pelo governo nos mercados (entre outros fatores), impulsionou a captação de recursos por meio de ofertas iniciais e subsequentes de ações no mercado de capitais, o que tem permitido a saída dos investimentos maduros das gestoras de private equity. Com a B3 batendo recordes históricos a quase 120 mil pontos no início de 2020, havia uma expectativa de que os gestores locais e estrangeiros buscassem, de fato, liquidez para seus investimentos.

Já no tocante aos investimentos, a expectativa de crescimento do número de negócios não era menor ante os anúncios de níveis recordes de dry powder (capital disponível para investimentos), que, associados à desvalorização do real frente ao dólar e ao euro, tinha potencial para aumentar a expectativa de novos negócios.

Com a pandemia, no entanto, os gestores locais e estrangeiros cuidaram, inicialmente, de dar o apoio necessário a suas investidas. Isso fez com poucos investimentos novos fossem realizados até meados deste ano. Com relação aos desinvestimentos, obviamente, pouquíssimos processos de IPO e ofertas subsequentes foram concluídos até a metade do ano.

No entanto, de forma até um pouco surpreendente, a partir de meados de junho os gestores passaram a seguir com seus planos de desinvestimento via mercado de capitais, e muitos IPOs e ofertas subsequentes foram lançados de forma bem-sucedida. Muitos outros serão provavelmente concluídos este ano, a julgar pela fila de pedidos de oferta feitos à Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

Já na ponta dos investimentos, tais gestores passaram a estudar novas transações privadas, especialmente no setor de tecnologia, saúde e educação. Para este segundo semestre, a expectativa de novos investimentos permanece alta, apesar da lenta evolução das reformas tributária e administrativa.

Conclusão

Embora a pandemia seja uma realidade que deve permanecer por algum tempo, as operações de fusões e aquisições em análise têm as mesmas características fundamentais das operações realizadas no início do ano, observadas  determinadas exceções mencionadas acima.

Mesmo em um cenário de incertezas, as fusões e aquisições continuam sendo um instrumento relevante para os mais diversos setores da economia, seja para viabilizar a combinação de players relevantes de uma determinada indústria, seja para viabilizar injeção de liquidez nos mais diversos negócios, propiciando importantes alternativas de expansão e/ou de saneamento financeiro.