No julgamento do Processo Administrativo Sancionador CVM SEI 19957.005011/2020-67 (RJ2020/04610), instaurado pela Superintendência de Registro de Valores Mobiliários (SRE) para apurar a responsabilidade de sociedade e seu administrador pela realização de oferta pública de contratos de investimento coletivo (CIC) hoteleiro sem a obtenção de registro prévio ou dispensa perante a CVM, a sociedade e seu administrador foram condenados à pena de advertência pelo colegiado da autarquia. Ambos teriam cometido infração ao art. 19, caput e §5°, I, da Lei 6.385/76 e aos arts. 2º e 4º da Instrução CVM 400.

 

Os contratos de investimento coletivo e sua utilização no setor hoteleiro

 

Nos termos do art. 19, caput, da Lei 6.385/76, são vedadas as emissões públicas de valores mobiliários sem registro prévio na CVM. Sem entrar na diferença doutrinária entre emissões públicas (conforme mencionado pela lei) e ofertas públicas, é importante estabelecer que a atuação do órgão regulador deve, por princípio, incidir sobre quaisquer ofertas que apelem à poupança popular. Nesse sentido, o §5° do art. 19 confere competência à CVM para definir outras situações que sejam consideradas emissões públicas para fins de registro, tendo sido nesse contexto que a ICVM 400 foi editada.

De acordo com o art. 2, IX, da Lei 6.385/76, conforme alterada pela Lei 10.303/01, são valores mobiliários sujeitos ao regime da lei contratos ou títulos ofertados publicamente “que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros”. Após essa mudança do início dos anos 2000, a legislação passou a incluir um rol determinado de valores mobiliários, como ações, debêntures, bônus de subscrição e outros, além de uma hipótese mais genérica para ser aplicada em casos que não se enquadrem nos demais.

Nos contratos de investimento coletivo, o conceito foi importado do caso norte-americano SEC v. W. J. Howey Company, julgado em 1946.[1] Tratava-se de oferta de terrenos para cultivo de laranja com a contratação opcional de prestação de serviços de cultivo e operação da propriedade.

Considerando a definição bastante ampla e genérica, a CVM já se deparou historicamente com contratos dessa natureza em diversos setores, como criação de avestruz,[2] participação em direitos de jogadores de futebol,[3] criptomoedas,[4] empreendimentos condo-hoteleiros, entre outros.

Nesse sentido, “a caracterização de determinado produto como um contrato de investimento coletivo não depende de prévia manifestação da CVM, mas da sua subsunção aos requisitos do chamado Howey Test.”,[5] que consiste basicamente na verificação dos seguintes aspectos:

  • Há intenção de realização de investimento?
  • O investimento foi formalizado por meio de título ou contrato?
  • O investimento tem natureza coletiva, isto é, foi realizado por vários investidores?
  • O investimento foi realizado com expectativa de lucro?
  • O lucro decorrente do investimento resulta de esforços do empreendedor ou terceiro (e não do próprio investidor)?

Presentes esses elementos, fica caracterizado o contrato de investimento coletivo como valor mobiliário.

 

Os marcos temporais regulatórios sobre os condo-hotéis

 

A utilização de contratos de investimento coletivo nos empreendimentos hoteleiros é reconhecida, pelo menos desde a década de 1980, quando houve expressivo aumento de quartos de hotéis no país.[6] Por condo-hotéis, deve-se entender o empreendimento hoteleiro organizado por meio de condomínio edilício.

A Medida Provisória 1.637/98 passou a indicar os CICs como espécies de valores mobiliários. Apesar disso, por muitos anos, esses contratos foram tratados exclusivamente sob a perspectiva de sua natureza imobiliária e sujeitos às normas específicas de incorporação imobiliária e do Código Civil. Em 2001, como já mencionado, o CIC foi incluído no rol de valores mobiliários, mas, dadas as suas peculiaridades, não foi rapidamente assimilado pelo mercado como tal.

Em 12/12/2013, a CVM emitiu um alerta ao mercado tratando da caracterização dos condo-hotéis como valores mobiliários. A partir de então, a posição da autarquia sobre o tema ficou clara, e ela passou a atuar mais fortemente na fiscalização dos empreendimentos dos condo-hotéis. A Deliberação CVM 734, publicada em 17/03/2015, regulou o tema e estabeleceu requisitos para a dispensa de registro dessa modalidade de CIC.

Em linhas gerais, o colegiado entende que atos anteriores à publicação do alerta ao mercado não são passíveis de responsabilização e atos posteriores à Deliberação CVM 734 estão sujeitos às penalidades da norma. Para o intervalo entre as datas de publicação do alerta ao mercado e da deliberação, há incerteza, e a conduta deve ser analisada à luz das circunstâncias do caso concreto.

Posteriormente, em 27/08/2018, foi editada a Instrução CVM 602 (ICVM 602), que revogou a Deliberação CVM 734. Atualmente, portanto, a ICVM 602 regula:

  • os requisitos do pedido de registro da oferta;
  • normas sobre o conteúdo da oferta e o material publicitário divulgado;
  • os critérios para dispensa de registro da distribuição, entre outros temas, como a delimitação do papel das operadoras hoteleiras.

 

O papel dos incorporadores e operadores hoteleiros

 

É importante ressaltar a diferença entre incorporadores e operadores hoteleiros na oferta de CIC.[7] Em geral, os incorporadores são identificados como responsáveis pelas ofertas públicas. Já os operadores, como responsáveis pela administração do negócio em funcionamento, são relevantes para a oferta, pois o sucesso do empreendimento depende da gestão por eles executada. No entanto, é possível que não haja qualquer ato de distribuição pelo operador na oferta do condo-hotel, razão pela qual, a princípio, a CVM entende que o operador não é ofertante.

O entendimento da CVM sobre as operadoras hoteleiras já foi diferente. Originalmente, atribuía-se à operadora o papel de coofertante. Desde 2017, porém, as operadoras passaram a não ser incluídas nas stop orders sobre ofertas irregulares, e as decisões têm explorado mais a diferença de papéis desempenhados pelos agentes nas ofertas. O disposto na Instrução CVM 602 define “ofertante” como a incorporadora ou qualquer pessoa que realize atos de distribuição pública do CIC hoteleiro. A instrução também impõe à operadora as obrigações de colaborar para a elaboração dos documentos da oferta e prestar contas, mas não estabelece obrigações relativas à distribuição de valores mobiliários em si.

Como se pode ver, o tema dos contratos de investimento coletivo condo-hoteleiros é bastante recorrente nas decisões da autarquia e, por isso, é importante dar atenção aos elementos caracterizadores do contrato, para que as medidas legais e regulatórias sejam devidamente observadas.

 

Modelos de negócio recentemente analisados pelo colegiado

 

Em 30 de outubro de 2018, a SRE encaminhou consulta formal[8] para o colegiado da CVM no pedido de registro de oferta de CIC hoteleiro formulado nos termos da ICVM 602. O modelo de negócio contemplava compromissos de compra e venda para 141 unidades autônomas que poderiam ser alienadas de forma inteira ou em frações ideais (até quatro por unidade autônoma).

Para a área técnica, a oferta de CIC relativamente às unidades autônomas, decorrência legal da formação do condomínio edilício, estaria abarcada pela ICVM 602. No entanto, a oferta de CIC para as frações ideais implicaria a formação de um condomínio voluntário, regime expressamente excluído da abrangência da ICVM 602.

Na análise da consulta, o colegiado, acompanhando o voto do relator, entendeu que “as disposições da Instrução CVM 602 são aplicáveis à oferta pública de CIC em apreço [i.e., frações ideais de unidade autônoma], uma vez que o empreendimento hoteleiro será estruturado na forma de condomínio edilício, segundo os termos previstos nos artigos 1.331 a 1.358 do Código Civil, e observará as regras estabelecidas na Lei de Incorporação (Lei 4.591, de 1964). [...] o art. 3º da referida instrução deve ser interpretado no sentido de excluir do regime jurídico ali delineado apenas as ofertas públicas de CIC de empreendimento hoteleiro que, por ser organizado na forma de condomínio voluntário sobre o terreno e suas acessões, não se submete à Lei de Incorporação nem à disciplina dos condomínios edilícios”.

Contudo, devido às peculiaridades e aos riscos envolvidos na formação de condomínio voluntário decorrente da oferta de CIC sobre as frações ideais, é preciso que o ofertante divulgue “informações pertinentes sobre o funcionamento dos condomínios voluntários e os riscos específicos incorridos nesse tipo de investimento”.

Pouco depois, em 22 de abril de 2019, a SRE formulou nova consulta formal[9] ao colegiado da CVM no âmbito de reclamação que teve origem na alienação de frações de tempo em condomínio sob o regime de multipropriedade (time sharing). Nessa modalidade de condomínio, o titular da multipropriedade tem direito a uma fração de tempo para usar e gozar do imóvel e de suas instalações, também utilizado por outros titulares de acordo com as frações de tempo atribuídas a cada um.

Os imóveis sobre os quais se institui a multipropriedade podem, ainda, “ser partes integrantes de empreendimento em que haja sistema de locação das frações de tempo no qual os titulares possam ou sejam obrigados a locar suas frações de tempo exclusivamente por meio de uma administração única, repartindo entre si as receitas das locações independentemente da efetiva ocupação de cada unidade autônoma”.[10]

Na apreciação da consulta, o colegiado da CVM, acompanhando o voto do relator, estabeleceu os seguintes critérios para verificar se a alienação de frações de tempo vinculadas a pool de locação caracteriza ou não um CIC sujeito ao regime de oferta pública:

  • A simples aquisição de uma unidade imobiliária, seja no regime geral, seja no regime de multipropriedade, com o objetivo de investimento não é suficiente para atrair o regime mobiliário. Esse acontece quando, entre outros elementos, a perspectiva de lucro está associada aos esforços do empreendedor ou de outro terceiro;
  • Também o simples fato de o investidor ser demandado a tomar certas medidas não é necessariamente suficiente para afastar o regime mobiliário. O contrato de investimento coletivo pode ser caracterizado mesmo quando os esforços de terceiros não são exclusivos, contanto que sejam, ao final, preponderantes e decisivos para a expectativa de rentabilidade;
  • Quando a aquisição do imóvel ou da fração temporal é condicionada à celebração de contrato por meio do qual aquela unidade ou fração é colocada em um pool obrigatório de locação, se está diante de uma oferta de CIC;
  • Quando a venda de imóveis e a adesão ao pool de locação não são indissociáveis – e essa indissociabilidade precisa ser analisada sob o aspecto não só jurídico, mas também econômico – outros elementos devem ser considerados para verificar se a oferta envolveu ou não um CIC. Deve-se, em especial, atentar para a motivação dos investidores em adquirir os imóveis e a ênfase dada pelo vendedor na promoção do investimento; e
  • Se os imóveis são vendidos com a finalidade primária de uso pessoal, não há que se falar em uma oferta de contrato de investimento coletivo.

Diante da versatilidade das estruturas que podem ser exploradas com condo-hotéis e, ainda, o recente acolhimento da regulação da CVM sobre a oferta de CIC hoteleiros, é preciso analisar, no lançamento de novos empreendimentos, se os arranjos contratuais que formalizam o meio aquisitivo da propriedade pelos interessados não são considerados um CIC, de acordo com os itens de verificação acima mencionados. Caso se confirme que são CICs, será necessário submetê-los ao regime da oferta pública, nos termos da ICVM 602 ou da ICVM 400, dependendo da forma de constituição do empreendimento.

 


[1] SEC v. W. J. Howey Company, 328 US 293 (1946).

[2] PAS CVM nº 23/04, rel. dir. Wladimir Castelo Branco Castro, j. 28/09/2006.

[3] PA CVM RJ 2014/11253, j. em 30.06.2015.

[4] PAS CVM 19957.003406/2019-91, rel. dir. Gustavo Gonzalez, j. 27/10/2020.

[5] PAS CVM 19957.006343/2017-63, voto vencedor dir. Gustavo Gonzalez, j. 07/05/2019.

[6] Para referência, PAS CVM 19957.004122/2015-99, rel. dir. Gustavo Borba, j. 12/04/2016 (“Caso Oliva”) e PAS CVM 19957.008081/2016-91, rel. dir. Gustavo Borba, j. 10/04/2018 (sobre aspectos históricos da atuação da CVM na fiscalização e regulamentação das ofertas de CIC de condo-hotel).

[7] Para referência, PAS CVM RJ 2017/2255, rel. dir. Gustavo Gonzalez, j. 28/08/2018, PAS CVM RJ 2018/324, rel. dir. Gustavo Gonzalez, j. 30/10/2018, PAS CVM 2017/4412, rel. dir. Pablo Renteria, j. 30/10/2018, PAS CVM RJ 2017/4779, rel. dir. Marcelo Barbosa, j. 11/12/2018 (sobre diferenciação de responsabilidade do operador e incorporador na oferta de condo-hotéis).

[8] Para referência, PROC. SEI 19957.009425/2018-41, rel. Pablo Renteria, j. em 30.10.2018.

[9] Para referência, PROC. SEI 19957.009524/2017-41, rel. Gustavo Gonzalez, j. em 22.04.2019.

[10] Art. 1.358-R, § único, do Código Civil.