Como parte do seu trabalho de revisão e consolidação de atos normativos, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) editou a Resolução 62, em 19 de janeiro deste ano, em substituição integral à antiga Instrução CVM 8/79, que tratava dos ilícitos no mercado de valores mobiliários. Mantendo a redação enxuta da instrução revogada, a nova resolução não traz mudanças de mérito, mas apenas ajustes de redação que passaram a vigorar em 1º de fevereiro último.

Sem alterações conceituais, a resolução reitera o disposto na norma anterior ao prever a vedação às práticas de criação de condições artificiais de demanda, oferta ou preço de valores mobiliários, manipulação de preço, realização de operações fraudulentas e uso de práticas não equitativas.

Desde a origem do ato normativo, optou-se pela descrição de condutas que se assemelham a tipos penais abertos, em relação aos quais cabe ao intérprete, como agente integrador da norma, enquadrar comportamentos e artifícios que, apesar de não estarem expressamente descritos, representam condutas que se encaixam na vedação pelo caminho interpretativo.

Ao longo dos anos, muito se questionou a necessidade de detalhar melhor os tipos descritos na Instrução 8/79, mas a amplitude da redação é parte da técnica normativa com o objetivo de assegurar flexibilidade à atuação sancionadora da CVM e sua adequação à eventual alteração e modernização da caracterização dos ilícitos.

A seguir, cada uma das práticas vedadas é abordada resumidamente.

 

Criação de condições artificiais de demanda

 

De acordo com a resolução, condições artificiais de demanda são criadas “em decorrência de negociações pelas quais seus participantes ou intermediários, por ação ou omissão dolosa provocam, direta ou indiretamente, alterações no fluxo de ordens de compra ou venda de valores mobiliários”. Em resumo, são elementos para a configuração do ilícito:

  • a realização de negociações que alterem o fluxo de ordens; e
  • a ação ou omissão dolosa do agente.

Ao contrário do que ocorre com a manipulação de preços, aqui não há a necessidade de se induzir terceiros à negociação. Basta somente criar qualquer processo que altere o fluxo de ordens de forma dolosa.

Uma das formas conhecidas de criação de demanda artificial é denominada money pass. O objetivo do agente é valer-se do mercado organizado de valores mobiliários para obter algum benefício não decorrente da negociação em si, mas sim do disfarce de determinada situação de fato amparada pela negociação do ativo. Nesses casos, é comum que os agentes tentem mascarar lavagem de dinheiro (criação de lucro) ou planejamentos fiscais (criação de prejuízo).

Diferentemente da manipulação de preços, em que o agente se vale do livro de ofertas para realizar a negociação com vantagem, no money pass a vantagem não está relacionada com a negociação em si, mas com o resultado que ela produz para o agente. Não se vislumbra prejuízo para terceiros de forma tão evidente, mas, a depender da magnitude da prática, é possível que o ativo tenha sua cotação alterada com o consequente induzimento de terceiros a negociar com ele.

 

Manipulação de preços

 

O inciso II do art. 2º da nova resolução traz a descrição da manipulação de preços como a “utilização de qualquer processo ou artifício destinado, direta ou indiretamente, a elevar, manter ou baixar a cotação de um valor mobiliário, induzindo terceiros à sua compra e venda”. São elementos para a caracterização do ilícito:

  • a utilização de um processo ou artifício;
  • a intenção de afetar a cotação de valores mobiliários; e
  • a influência sobre terceiros à negociação com os valores mobiliários.

Duas formas reconhecidas de manipulação de preços são as práticas de layering e spoofing. Em ambas, o agente emite ordens de compra e venda para um ativo, as quais, pela dinâmica do mercado organizado, são registradas em lados opostos do livro de ofertas. O objetivo é arbitrar o valor do ativo e concluir a negociação no preço criado pelo agente, e não pela cotação do ativo em condições de mercado. Tais práticas criam um preço irreal, induzindo terceiros a negociar ativos cujos valores foram manipulados. Elas foram reconhecidas como irregulares pelo colegiado nos PAS CVM 19957.006019/2018-26 e RJ 2016/7192.

No primeiro caso, de layering, a CVM entendeu que o acusado inseria, sem motivação econômica legítima, ordens que não pretendia executar apenas para criar uma “falsa impressão de oferta e demanda”. Em decorrência disso, houve uma pressão do lado do comprador ou vendedor que levou terceiros a negociar os títulos com base na falsa condição criada pelo acusado. Para aferição do dolo, o relator destacou o padrão das ofertas e a recorrência da conduta. O agente foi condenado a pagar multa equivalente a uma vez e meia a vantagem econômica obtida, totalizando mais de R$ 2,2 milhões. Já no segundo processo mencionado, de spoofing, os acusados inseriam ofertas de compra ou venda com lote elevado de ações e opções que eram canceladas na sequência, em curto intervalo de tempo, com a finalidade de atrair contrapartes. Foi aplicada multa pecuniária aos acusados no valor total de aproximadamente R$ 2,3 milhões.

 

Operação fraudulenta

 

É a operação que utiliza “ardil ou artifício destinado a induzir ou manter terceiros em erro, com a finalidade de obter vantagem ilícita de natureza patrimonial para as partes na operação, para o intermediário ou para terceiros”. É caracterizada pelos seguintes elementos:

  • utilização de determinado artifício;
  • intenção de induzir terceiros a erro em operações com valores mobiliários; e
  • objetivo de obter vantagem patrimonial.

Muito assemelhada ao estelionato previsto no art. 171 do Código Penal, a operação fraudulenta tem como principal objetivo manter ou induzir terceiros a erro.

No PAS CVM SP 2014/0465, foi discutida uma modalidade de fraude conhecida como churning, em que pessoas com controle de recursos de terceiros realizam um alto volume de negócios em nome de um cliente com o fim de gerar taxas e comissões para si ou para terceiros. No caso, o investidor, estabelecendo relação de confiança com o responsável por seus recursos, é induzido a erro e acaba por autorizar transações que não são celebradas no seu melhor interesse. O acusado foi condenado ao pagamento de multa pecuniária no valor de R$ 250 mil.

 

Prática não equitativa

 

O inciso IV descreve a prática não equitativa como aquela “de que resulte, direta ou indiretamente, efetiva ou potencialmente, um tratamento para qualquer das partes, em negociações com valores mobiliários, que a coloque em uma indevida posição de desequilíbrio ou desigualdade em face dos demais participantes da operação”. De acordo com a jurisprudência da CVM, são elementos necessários para a configuração do ilícito:

  • a operação com valores mobiliários;
  • a posição de desequilíbrio ou desigualdade da parte que realizou a transação em relação ao mercado; e
  • a natureza imprópria de tal desequilíbrio (processos administrativos sancionadores CVM SP 2017/315, CVM 03/2015 e CVM 04/2010).

Um desdobramento reconhecido é o chamado front running. Na tradução para o português, a prática representa o ato de “correr na frente” e ocorre, por exemplo, quando um corretor tem acesso a informações de uma ordem de seu cliente e tenta tirar proveito disso fazendo um movimento antecipado. Dadas as características do ilícito, os agentes que normalmente estão mais sujeitos a cometer a prática são corretores, gestores, analistas e outros agentes que gerenciam recursos.

A prática não equitativa tem relação ainda com a vedação ao uso de informações privilegiadas ou insider trading, que é regulamentada pela Lei 6.404/1976, pela Lei de Valores Mobiliários e pela Resolução CVM 44/2021, as quais proíbem negociações com base em informações relevantes não divulgadas ao público. As normas estabelecem penalidades de natureza cível, criminal e administrativa e incluem regras preventivas e repressivas.

Na prática, a diferença entre ambas as situações é o fato de que o agente do insider trading normalmente está presente na origem e na formação da informação privilegiada, enquanto no front running e em demais práticas não equitativas, o agente comumente recebe a informação. Na jurisprudência da CVM, porém, a acusação de casos de insider trading já foi fundamentada na alínea específica da Instrução 8/79.

Todos os ilícitos mencionados são considerados graves pela Lei do Mercado de Valores Mobiliários, e as condutas podem ser punidas com as penas de inabilitação temporária, suspensão de autorização ou registro e proibição temporária, além, é claro, de multa e advertência.