A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) editou, em 27 de abril, a Resolução CVM 88, que revogou a Instrução CVM 588/17 e passou a regular a oferta pública de valores mobiliários de emissão de sociedades empresárias de pequeno porte, realizada com dispensa de registro por meio de plataforma eletrônica de investimento participativo.

Essa modalidade de captação de recursos, já amplamente disseminada em mercados mais avançados, como Reino Unido e Estados Unidos, é conhecida como equity crowdfunding ou crowdfunding de investimento e ganhou ainda mais relevância com o protagonismo conquistado pelo ecossistema brasileiro de startups – principalmente de empresas cujos negócios estão relacionados com inovação tecnológica –, o que, também, contribuiu para o crescimento da indústria de venture capital nacional nos últimos anos.

Para se ter uma ideia, em 2021, segundo informações da plataforma Distrito, o volume de investimentos em startups brasileiras foi de US$9,4 bilhões, um aumento de 166% em relação a 2020 e de 526% em relação ao ano de 2018. E não para por aí! A Sling Hub, plataforma de inteligência de dados sobre o ecossistema de startups latino-americanas, projetou que “se as startups brasileiras repetirem o mesmo crescimento apresentado no ano passado, é possível que fechem este ano de 2022 com um volume investido de US$29,4 bilhões”.

Apesar desse alto fluxo de capital, as startups brasileiras ainda encontram dificuldades para captar recursos da economia popular por meio de operações no mercado de capitais, especificamente via ofertas públicas tradicionais de valores mobiliários, regidas pelas Instruções CVM 400/03, conforme alterada, e 476/09, conforme alterada,[1] em decorrência dos custos regulatórios e operacionais envolvidos.

Ao criar uma regulamentação específica do crowdfunding de investimento, a Instrução CVM 588/17 deu novos contornos a esse cenário, permitindo às sociedades captar recursos no mercado em geral por meio da emissão de valores mobiliários representativos de dívida e de participação societária (incluindo títulos conversíveis), ainda que com limitações importantes, como:

  • recursos captados (montante máximo de captação de R$5 milhões);
  • valor da receita bruta anual registrado pela sociedade cujos valores mobiliários são ofertados publicamente (até R$10 milhões conforme aferido no exercício social anterior à realização da oferta pública de valores mobiliários); e
  • público-alvo restrito (acesso a investidores qualificados e investidores cuja receita bruta anual ou montante de investimentos financeiros seja superior a R$ 100 mil, hipótese essa em que o limite anual de investimento podia ser ampliado para até 10% do maior entre os dois valores).

Mesmo com tais restrições, essa modalidade de captação de recursos ganhou tração nos últimos anos. Segundo informações da CVM, em 2021, foram captados, aproximadamente, R$ 188 milhões via crowdfunding de investimentos por meio de 114 ofertas públicas de crowdfunding. O valor representou um aumento de 123% no total transacionado em 2020.

Além disso, houve um aumento substancial na quantidade de plataformas cadastradas na autarquia: 56 em 2021, ante 32 no ano anterior, o que representa um acréscimo de 75%. Verificou-se ainda um crescimento de 139% no número de investidores neste tipo de oferta pública, que passaram de 8.275, em 2020, para 19.797, em 2021, o que denota o apetite do mercado por esse tipo de ativo.

Esses fatores, aliados às constantes demandas feitas pelos participantes do mercado para a implementação de melhorias à regulamentação do crowdfunding de investimentos, fizeram a CVM se apressar para revisar a regra vigente, o que culminou na edição da Resolução CVM 88.

Em linhas gerais, a Resolução CVM 88, que entra em vigor em 1º de julho deste ano, trouxe inovações importantes para essa modalidade de investimento, ao ampliar o espectro de sociedades que podem realizar ofertas e de investidores que podem participar delas, além de conferir proteções adicionais ao público investidor.

Destacamos a seguir as principais alterações e novidades implementadas pela Resolução CVM 88:

# Assunto base PRINCIPAIS ALTERAÇÕES
  • 1.
Conceito de sociedade empresária de pequeno porte

Artigo 2°, inciso VII

Artigo 2°, §2°

A CVM ampliou o rol de sociedades empresárias de pequeno porte que podem realizar uma oferta pública de valores mobiliários, de acordo com a Resolução CVM 88, ao aumentar de até R$ 10 milhões para até R$ 40 milhões o valor de receita bruta anual que tais sociedades devem ter registrado no exercício social anterior à oferta. Além disso, a Resolução CVM 88 aumentou de R$ 10 milhões para R$ 80 milhões o valor-limite da receita bruta consolidada anual, registrada no exercício social anterior à oferta, de sociedade que seja controlada por outra pessoa jurídica ou fundo de investimento.
  • 2.
Requisitos da oferta: valor máximo de captação

Artigo 3°, inciso I

Artigo 3°, §3°

Os recursos captados na oferta não poderão superar R$ 15 milhões, montante esse três vezes maior que aquele constante da extinta Instrução CVM 588. Ainda, caso uma sociedade tenha realizado mais de uma oferta em um determinado exercício social, o montante captado, de forma agregada, em todas as ofertas realizadas por tal sociedade não poderá ser maior que R$ 15 milhões. A mudança permite que as sociedades tenham acesso a volume de capital substancialmente superior, o que tende a fomentar o uso dessa opção de prospecção de recursos.
  • 3.
Prazo para desistência da ordem de investimento

Artigo 3°, inciso III

Artigo 8°, §3°

Os investidores poderão desistir do investimento em, no mínimo, cinco dias contados da confirmação do investimento. A redução de dois dias no prazo está alinhada às regras da CVM sobre ofertas públicas de valores mobiliários de emissores registrados na autarquia. Além disso, havendo alteração substancial após o início da oferta, a plataforma poderá alterar as circunstâncias da transação, devendo, entre outras condições, conceder aos investidores que já tenham aderido à oferta prazo de cinco dias, contados do recebimento de comunicação sobre a alteração, para cancelar a sua reserva.
  • 4.
Escrituração dos valores mobiliários objeto da oferta

Artigo 3°, inciso V

Artigo 3°, §4°

Artigo 12

Artigo 53

A Resolução CVM 88 institui nova obrigação às sociedades ao determinar que os valores mobiliários objeto da oferta, incluindo aqueles que forem neles conversíveis, deverão ser, a partir da data de início da oferta e durante toda a existência dos valores mobiliários ofertados:

-       escriturados por instituição habilitada, nos termos da regulamentação específica, a prestar serviços de escrituração de valores mobiliários; ou

-       objeto de controle de titularidade e de participação societária.

Os serviços de escrituração deverão ser obrigatoriamente contratados, caso:

-       no momento da contratação de uma plataforma, a sociedade já tenha realizado, em outra plataforma, uma ou mais ofertas de valores mobiliários fungíveis com aquele objeto da oferta, nele conversíveis ou que se convertam na mesma espécie de valor mobiliário; ou

-       caso a plataforma contratada para distribuir a oferta não ofereça os serviços de controle de titularidade e de participação societária.

Além disso, a obrigação de escrituração ou de controle de titularidade e de participação societária somente se aplica aos valores mobiliários ofertados após a entrada em vigor da Resolução CVM 88 (1° de julho de 2022).

Nota-se a intenção da CVM de forjar mecanismos que garantam a fácil verificação da titularidade dos valores mobiliários de emissão das sociedades, visando, principalmente, a prover segurança aos investidores e ao mercado, além de auxiliar no processo de construção de um ambiente sólido e confiável para a negociação de tais ativos por meio de transações privadas.

  • 5.
Destinação dos recursos da oferta Artigo 3°, inciso VI, alínea “a” Os recursos captados na oferta não poderão ser utilizados para a aquisição, direta ou por meio de títulos conversíveis, de participação minoritária (até 50% do capital social votante) em outras sociedades.
  • 6.
Limite do valor do investimento por investidores Artigo 4°

O montante a ser aportado por investidores está limitado a R$ 20 mil por exercício social, exceto no caso de:

-       investidores qualificados, conforme definição constante do artigo 12 da Resolução da CVM 30/21;

-       investidor líder, nos termos da Resolução CVM 88; ou

-       investidores cuja renda bruta anual ou montante de investimentos financeiros seja superior a R$ 200 mil, hipótese em que o limite de R$ 20 mil seria aumentado para até 10% do maior entre os dois valores (investidor permitido).

Embora tenha aumentado o limite máximo de investimento por investidores não qualificados de R$ 10 mil para R$ 20 mil, o que permite a alocação de mais recursos desse tipo de investidor na oferta, nota-se que a CVM, ao aumentar de R$ 100 mil para R$ 200 mil o valor da renda bruta e do montante de investimentos financeiros, buscou limitar a oferta a investidores com maior apetite a risco e, em tese, com maior conhecimento do mercado financeiro e de capitais.

  • 7.
Colocação de valores mobiliários adicionais Artigo 5°, inciso VI

A Resolução CVM 88 trouxe importante inovação ao dar a possibilidade, a critério da sociedade, de colocação de um lote adicional de valores mobiliários equivalente a até 25% do valor alvo máximo da oferta, desde que:

-       tal possibilidade tenha sido aprovada pelos órgãos societários competentes da sociedade;

-       o valor total da oferta observe o limite de R$ 15 milhões; e

-       o lote adicional esteja previsto no material sobre a oferta a ser divulgado pela plataforma.

Na prática, o valor máximo da oferta poderá ser aumentado em até 25%, o que possibilita uma captação de recursos equivalente a 125% do valor máximo inicialmente sugerido, observado o montante máximo de R$ 15 milhões. Essa novidade da regra já é amplamente utilizada em ofertas públicas de valores mobiliários de emissores registrados na CVM.

  • 8.
Distribuição secundária Artigo 5°, inciso VII

A Resolução CVM 88 admitiu a possibilidade de realização de oferta pública secundária, desde que:

-       o montante total da oferta não supere 20% do valor alvo máximo; e

-       o acionista ou bloco controlador não aliene participação societária maior que 20% dos valores mobiliários de sua titularidade, e o percentual alienado não resulte em perda do controle após a oferta; e

-       caso haja distribuição parcial, seja respeitada a proporção descrita acima.

A possibilidade de realizar uma oferta pública de distribuição secundária de valores mobiliários permitirá que determinados investidores (anjo e fundos de venture capital), assim como acionistas fundadores das sociedades, tenham maior liquidez, o que, a nosso ver, estimulará a realização de exits, ainda que parciais, e a criação de um mercado secundário mais pujante para esse tipo de ativo.

  • 9.
Demonstrações financeiras Artigo 8°, §2°, inciso V

A plataforma deverá divulgar em sua página na internet cópia das demonstrações financeiras da sociedade, que devem ser auditadas por auditor independente registrado na CVM:

1.    Antes da realização da oferta, quando:

-       o valor captado na oferta ultrapassar R$ 10 milhões; ou

-       a sociedade tiver registrado receita bruta anual superior a R$ 10 milhões, conforme apurado em demonstrações financeiras consolidadas referente ao exercício social anterior à Oferta; e

2.    Após a realização da oferta

-       se a sociedade tiver registrado no exercício social anterior receita bruta anual consolidada superior a R$ 10 milhões.

Na hipótese do item 1, as demonstrações financeiras deverão ser divulgadas antes do início da oferta.

  • 10.
Transações subsequentes Artigo 15

As plataformas poderão, mediante consentimento expresso e contratual da sociedade, atuar como intermediadoras de transações de compra e venda de valores mobiliários que tenham sido emitidos publicamente (incluindo valores mobiliários fungíveis com relação aos valores mobiliários já emitidos) por sociedades que tenham realizado ao menos uma oferta (transação), sendo expressamente vedada a criação ou administração de mercados regulamentados de valores mobiliários (como bolsa de valores, mercado de balcão etc.). Além disso, os valores mobiliários de emissão de sociedade e de titularidade de controladores ou pelo investidor líder podem ser objeto de transação, desde que:

-       não ultrapassem 5% do valor da participação por eles detida no momento do encerramento da oferta; e

-       tal fato seja comunicado aos potenciais compradores.

Para realizar transações, a plataforma deverá assegurar, entre outros pontos, que:

-       o vendedor seja titular dos valores mobiliários;

-       os potenciais compradores sejam investidores ativos (aqueles com cadastro atualizado na plataforma) e que tenham realizado investimento em ao menos uma oferta conduzida pela plataforma nos últimos dois anos;

-       o comprador seja um investidor permitido;

-       a entrega do valor mobiliário somente ocorra após o envio do valor negociado com o comprador; e

-       esteja disponível aos investidores ativos, no primeiro dia útil de cada mês, histórico atualizado de volume e preço das transações realizadas para cada sociedade, enquanto a plataforma estiver atuando como intermediadora.

As sociedades que tiverem descumprido obrigações contratuais de prestação de informações periódicas, conforme compromisso divulgado ao mercado quando da realização da oferta, e encerrado suas atividades não poderão utilizar uma plataforma para transacionar seus valores mobiliários que tenham sido objeto de oferta.

Trata-se de importante inovação instituída pela Resolução CVM 88, que concede mecanismo relevante para que investidores e acionistas controladores de sociedades consigam obter liquidez para seus investimentos feitos via ofertas. É, portanto, um grande passo para a formação de mercado secundário para esse tipo de ativo.

  • 11.
Responsável por controles internos Artigo 27 Caso tenha participado de ofertas exitosas cujo montante total agregado supere R$ 30 milhões, a plataforma deverá ter, de forma permanente, profissional responsável pela supervisão de regras e controles internos. Tal função poderá ser desempenhada por outros profissionais da plataforma, desde que não implique conflito de interesse. O profissional de compliance deverá ser nomeado até 1° de março do exercício seguinte àquele em que for verificada a condição descrita acima.
  • 12.
Responsabilidade dos administradores da plataforma e da sociedade Artigos 39 e 42 Os administradores da plataforma e da sociedade deverão zelar pelo cumprimento das obrigações da plataforma e da sociedade, respectivamente, que foram impostas pela Resolução CVM 88.
  • 13.
Aporte mínimo pelo investidor líder Artigo 47, §1°

O investidor líder deverá realizar investimento com recursos próprios na sociedade de, pelo menos:

-       5% do valor mínimo da captação, no caso de oferta com valor alvo máximo de captação de até R$ 5 milhões;

-       4% do valor mínimo da captação, no caso de oferta com valor de captação superior a R$ 5 milhões e inferior a R$ 10 milhões; e

-       3,5% do valor mínimo da captação, no caso de oferta com valor alvo máximo de captação superior a R$ 10 milhões.

  • 14.
Plataformas cadastradas na CVM Artigo 55

As plataformas já cadastradas na CVM antes da entrada em vigor da Resolução CVM 88 devem:

-       em até 6 meses contados da entrada em vigor da resolução, encaminhar à autarquia comprovação de cumprimento do capital social integralizado mínimo; e

-       caso tenha intenção de prestar serviços de controle de titularidade de valores mobiliários, enviar à CVM declaração de que estão aptas a prestar tais serviços, considerando as exigências estipuladas pela resolução.

 

[1] Na data de publicação deste artigo, as instruções da CVM 400 e 476 estão sob revisão da CVM. Foi divulgado Edital de Audiência Pública visando à completa reforma e consolidação de tais normas. Para mais informações, ver https://conteudo.cvm.gov.br/audiencias_publicas/ap_sdm/2021/sdm0221.html.