O usufruto é um direito real sobre coisa alheia que confere ao seu titular (usufrutuário) o direito de usar e gozar do bem objeto do usufruto como se fosse próprio, sem alterar as suas características, restando ao proprietário (chamado de nu-proprietário) o direito de dispor do bem. Por meio do usufruto, os elementos do direito de propriedade são dissociados: cabe ao usufrutuário a utilização e fruição de coisa alheia, enquanto o nu-proprietário, na condição de titular do bem, tem a possibilidade de dispor dele.

Os frutos e rendimentos do bem serão de propriedade do usufrutuário, a exemplo dos aluguéis de um imóvel ou dos lucros de uma sociedade. Além disso, as decisões sobre a forma de utilização do bem ficam a cargo do usufrutuário, cujas obrigações serão a de zelar pelo bem e restituí-lo ao nu-proprietário ao término do usufruto, que tem sua duração fixada no momento da instituição.

Entre as causas de extinção do usufruto, estabelecidas pelo art. 1.410 do Código Civil, estão a morte do usufrutuário e o decurso do tempo fixado por ocasião de sua criação.

O usufruto poderá recair sobre bens móveis (ações, quotas, cotas de fundos e outros) e imóveis. Ele pode ser instituído tanto de forma direta sobre o bem em favor de terceiro, hipótese em que o instituidor mantém a propriedade do bem e cede seu uso e fruição, quanto por meio de doação, ocasião em que o doador transfere a propriedade a terceiro, mas reserva para si o exercício do uso e gozo do bem.

Trata-se, portanto, de relevante instrumento de planejamento patrimonial e sucessório, bastante utilizado na sucessão empresarial, por exemplo, quando o patriarca ou matriarca de determinada sociedade familiar transfere suas quotas ou ações aos seus sucessores, reservando para si o usufruto, muitas vezes de forma vitalícia, de tal participação societária, de forma a manter o controle e a percepção dos frutos (lucros) da sociedade.

No âmbito do direito societário, o usufruto é um direito amplo, cuja natureza jurídica permite larga customização na sua instituição, por exemplo, sobre todas as ações ou quotas ou sobre parte delas. É possível ainda dosar o percentual dos frutos atingidos pelo instituto, de forma que usufrutuário e nu-proprietário possam dividir os lucros da sociedade. É possível ainda incluir direitos de natureza política dentro do escopo do usufruto. No entanto, os direitos econômicos devem integrar o usufruto por serem parte da essência do instituto.

Talvez um dos mais importantes pontos de atenção na utilização deste instituto jurídico no âmbito do direito societário esteja relacionado ao direito de voto nas companhias. A Lei nº 6.404/76 (Lei das S/A) regula o usufruto de ações em cinco dispositivos:

  • 40 e 100, inciso I, alínea “f” (necessidade de averbação do usufruto no livro de registro de ações nominativas ou nos extratos da instituição financeira, em caso de ações nominativas ou escriturais, respectivamente);
  • 114 (dispõe sobre o direito de voto que, se não regulado na constituição do gravame, só poderá ser exercido mediante acordo prévio entre o usufrutuário e o nu proprietário);
  • 169, §2° (estabelece que o usufruto se estende às ações emitidas em decorrência de capitalização de lucros ou reservas); e
  • 171, §5° (dispõe que, em caso de emissão de ações ou valores mobiliários, o direito de preferência deve ser exercido pelo nu-proprietário e, se não exercido até 10 dias antes do vencimento do prazo estabelecido, o usufrutuário passa a ter o direito de exercer a preferência).

Neste artigo, analisamos as principais questões relacionadas ao direito de voto relacionado às ações gravadas com usufruto.

 

O voto e a participação nas assembleias gerais

 

De acordo com o art. 126 da Lei das S/A, o acionista deve comprovar sua condição como tal para participar dos conclaves societários. É permitida a outorga de mandato constituído há menos de um ano a procuradores que sejam acionistas, administradores, advogados ou, no caso de companhias abertas, instituições financeiras. Logo, o acionista, por si ou por procurador, tem a possibilidade de participar das assembleias gerais.

Em caso de ações gravadas com usufruto, a lei permite que usufrutuário e nu-proprietário regulem o direito de voto entre si no instrumento de constituição do usufruto ou mesmo de forma verbal. Não existe vedação para a atribuição integral do voto ao usufrutuário (observado o disposto no art. 171, §5°, da Lei das S/A a respeito do exercício do direito de preferência) ou mesmo a segregação do direito de voto entre as partes, conforme a matéria por exemplo.

Naturalmente, em caso de não regulamentação sobre o assunto, a conduta posterior das partes deve ser considerada para interpretação da intenção pretendida pelos envolvidos.[1] Se o voto é sempre exercido pelo usufrutuário, por exemplo, há de se entender que as partes tacitamente acordaram tal prática.

Nesse mesmo sentido, caso existam acordos de acionistas, é importante que o titular do voto das ações gravadas com usufruto esteja vinculado a eventual acordo – se for da vontade dos contratantes - para que ele produza todos os efeitos pretendidos.[2]

Na ausência de acordo entre as partes, o art. 114 da Lei das S/A prevê que o exercício do direito de voto só é possível mediante acordo prévio entre nu-proprietário e usufrutuário, sob pena de não exercício do direito de voto.[3] Trata-se, na verdade, de verdadeira legitimação extraordinária que autoriza o voto por aquele que não tem a qualidade de acionista ou seu representante.[4]

A opção legislativa pela busca do consenso entre usufrutuário e nu-proprietário tutelou o potencial conflito de interesses entre os envolvidos: de um lado, o usufrutuário, possivelmente interessado na maior distribuição de dividendos possível e, de outro, o nu-proprietário, que pode preferir, por exemplo, o reinvestimento dos recursos.[5]

A doutrina e as legislações comparadas oferecem outras soluções para o tema do voto, atribuindo-o exclusivamente ora ao nu-proprietário (como titular da posição de acionista ainda que sujeito a limitações na sua plena propriedade), ora ao usufrutuário[6] (como titular dos direitos de posse, uso, administração e fruição do bem), ora ainda indicando soluções mistas, em que, a depender da matéria, muda-se o titular do direito. No último caso, costuma-se atribuir o voto ao usufrutuário em assuntos essencialmente administrativos, e ao nu-proprietário, nas demais questões.[7]

O conflito surge quando não há acordo entre usufrutuário e nu-proprietário. Ele pode ser potencializado caso as ações representem percentual relevante do capital social da companhia ou mesmo o controle, e quando existem direitos decorrentes do voto, como o direito de recesso.

 

O exercício do direito de recesso

 

Nos termos do art. 137 da Lei das S/A, recesso é o direito do acionista dissidente de se retirar da companhia, mediante o reembolso de suas ações, em caso de aprovação de determinadas matérias prescritas em lei. Assim, o direito de recesso "consiste, pois, no poder jurídico de extinguir, por ato unilateral, nos casos previstos em lei, as relações que vinculam o sócio à companhia, passando à posição de credor da mesma, pelo valor de reembolso de suas ações". É, portanto, ”o direito que o acionista tem de, ao discordar de certas deliberações da Assembleia Geral, nos casos previstos em lei, retirar-se da Sociedade mediante o reembolso do valor de suas ações".[8] Trata-se de direito essencial do acionista nos termos do artigo 109 da Lei da S/A.

Ocorre que o direito ao recesso está intrinsicamente ligado ao exercício do voto, na medida em que, entre as situações em que esse direito pode ser exercido, estão aquelas em que o acionista: (i) tenha votado na assembleia geral contra a proposta aprovada posteriormente e (ii) não tenha votado em tal deliberação.

Dessa forma, na ausência de regras específicas sobre o exercício do voto, poderão surgir dúvidas sobre a legitimidade do nu-proprietário para requerer a retirada da sociedade, especialmente nas situações de conflito de interesses entre ele e o usufrutuário. Por exemplo, na hipótese de o usufrutuário votar a favor das matérias descritas no art. 137, em caso de discordância do nu-proprietário sobre o tema, poderá ele exercer o direito de recesso?

De fato, o nu-proprietário é o acionista da empresa, como titular averbado nos registros de ações (nominativas ou escriturais), além de manter o direito de dispor do bem, sendo certo que o exercício do recesso é um ato de disposição das ações. Além disso, ainda que o voto seja exercido pelo usufrutuário, não nos parece que seja possível vetar o acesso do nu-proprietário às assembleias, por exemplo. Ainda que o nu-proprietário não possa votar, a participação e a discussão das matérias deveriam ser asseguradas a ele.[9]

No entanto, considerando que a retirada afeta direitos do usufrutuário e do nu-proprietário, poderia ser necessária a anuência de ambos ao recesso. Nesses casos, portanto, entendemos que a análise das circunstâncias do caso concreto pode ser determinante para definir quem é o titular do direito. De todo modo, é preciso regular o tema no instrumento da constituição do usufruto para dar melhor regramento às relações entre usufrutuário e nu-proprietário.

 

Direitos de fiscalização e de ação

 

Por fim, questiona-se ainda de quem seriam os direitos de fiscalização da gestão social (art. 109, III, Lei das S/A) e ajuizamento de ações de responsabilidade contra administradores e controladores (arts. 159 e 246 da Lei das S/A). A princípio, em nossa opinião, o direito de fiscalização, deveria poder ser exercido por ambos, usufrutuário e nu-proprietário, nos termos da legislação aplicável,[10] sendo inequívoco o interesse de ambos. Como exemplo, entendemos que não deveria ser vetada a participação do usufrutuário e do nu-proprietário na assembleia, independentemente de quem seja o titular do direito a voto nas matérias a serem deliberadas.

Em relação ao ajuizamento das ações de responsabilidade contra administradores e controladores, a princípio, entendemos que existem argumentos para defender que ambos, nu-proprietário e usufrutuário, seriam partes ativas legítimas para ajuizar a ação,[11] mas a análise do legitimado dependeria da avaliação do caso concreto. No entanto, a ação contra administrador nos termos do art. 159 da Lei das S/A depende de deliberação prévia em assembleia. Caso o titular do direito de voto, por exemplo, não aprove o ajuizamento da ação pela sociedade, não nos parece coerente que o outro envolvido possa ajuizá-la posteriormente, como legitimado extraordinário nos termos da lei.

 

Considerações finais

 

Como se depreende das reflexões acima, o tema é complexo, comporta diversas interpretações, não há uniformidade jurisprudencial e depende da análise das circunstâncias do caso concreto. Nesse cenário, a boa técnica jurídica é ainda mais necessária na elaboração do instrumento de constituição do usufruto, assim como uma forte e robusta estruturação da operação em que o instrumento se insere, em especial em relação à clareza dos direitos atribuídos a usufrutuário e nu-proprietário.

 


[1] TJSP, 4ª Câm., AC 53.836-4, rei. des. Cunha Cintra, j. 06.08.1998, “proprietários e usufrutuários podiam regular o seu exercício posteriormente e o fizeram de forma tácita nas assembleias realizadas, pois os donatários sempre exerceram o direito de voto com anuência dos doadores. (...) Os contratos devem ser interpretados de acordo com o próprio comportamento das partes, numa espécie de interpretação autêntica, cabendo ao juiz examinar a conduta delas na fase de execução.”

[2] LAMY, Alfredo e PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias, Vol. I, 2009, p. 442, “Por sua vez, o Acordo de Acionistas é perfeitamente válido. Foi reconhecido como sendo dos réus [usufrutuários] o exercício do direito de voto das ações doadas, o que lhes dá legitimidade para subscrevê-lo.” TJSP, 4ª Câm., AC 53.836-4, rei. des. Cunha Cintra, j. 06.08.1998.

[3] Anteriormente, o tema era regulamentado pelo art. 84 do Decreto-Lei n. 2.627, de 1940: "No usufruto de ações, o direito de voto somente poderá ser exercido mediante prévio acordo entre o proprietário e o usufrutuário".

[4] LAMY, Alfredo e PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias, Vol. I, 2009, p. 390, “Sua [do usufrutuário que vota] posição jurídica é sui generis. Com o fracionamento da propriedade que se opera com a instituição do usufruto, o usufrutuário deve ser considerado pessoa legitimada pela lei para o exercício do direito de voto. CARVALHOSA, vol. II, p. 489. Conforme ensina JOSÉ LUIZ BULHÕES PEDREIRA (parecer não publicado), o exercício do direito de voto pelo usufrutuário, neste caso, é também a única hipótese em que a lei admite que o voto seja exercido por quem não tem a qualidade de acionista ou de seu representante: a lei requer que o acionista que comparece à Assembleia Geral prove a sua qualidade de acionista (art. 126 da LSA) e somente admite representação por procurador constituído há menos de um ano”.

[5] EIZIRIK, Nelson. A Lei das S/A Comentada. Vol. I. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 646; CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. Vol. II. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 488.

[6] A legislação italiana, por exemplo, atribui o voto ao usufrutuário, salvo acordo diverso entre as partes, conforme art. 2352 do Código Civil Italiano.

[7] CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. Vol. II. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 487.

[8] EIZIRIK, Nelson. Reforma das S.A. & do Mercado de Capitais. Rio de Janeiro: Renovar, [1997], p. 61.

[9] COMPARATO, Fábio Konder. "Usufruto Acionário e Quase-Usufruto. Limites aos Direitos do Usufrutuário". In: Ensaios e Pareceres de Direito Empresarial. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 88.

[10] Existem entendimentos diversos, como, por exemplo, em WALD, Arnoldo. “Do Regime Jurídico do Usufruto de Cotas de Sociedade de Responsabilidade Limitada e de Ações de Sociedades Anônimas”. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, v. 77, janeiro/março, 1990, p. 10, “A fiscalização dos negócios sociais (...) é atribuída ao usufrutuário quando lhe foram transferidos os direitos políticos.

[11] Há jurisprudência em sentido diverso, por exemplo, TJMG, AI n° 1.0024.05.827925-8/001, des. rel. Alberto Aluízio Pacheco de Andrade, j. 14.03.2006, “Cuida-se de uma Sociedade Anônima, na qual a autora adquiriu ações através de "Contrato de Doação em Adiantamento de Legítima", requerendo o deferimento da tutela pleiteada, a fim de suspender decisões deliberadas em assembleias, sem a sua presença. Alega a agravante, nua-proprietária de ações que lhe foram doadas, que cabe-lhe o pleno exercício dos direitos reservados por lei aos acionistas. Ocorre, porém, que, na pendência do usufruto não tem o nu-proprietário de ações legitimidade para agir como acionista.” O voto divergente do des. Alberto Vilas Boas, porém, indica queNão desconheço o argumento, segundo o qual, na pendência do usufruto, reduz-se, de forma bastante significativa, os poderes do dono cujo domínio somente se consolidará em ocasião futura, cabendo ao usufrutuário o direito de uso e gozo sobre a coisa alheia. No entanto, não comungo do entendimento, consistente em ser inadmissível à nua proprietária exercer o direito de fiscalizar os atos da sociedade anônima, malgrado não tenha direito a voto nas assembleias-gerais que venham a ser realizadas. Com efeito, é inaplicável à espécie o art. 114, da Lei das Sociedades Anônimas, porquanto não pretende a agravante que seja reconhecido o direito de exercer o direito de voto, mas, tão-somente, de antecipar os efeitos da sentença declaratória relativamente, dentre outros, ao direito de participar das assembleias gerais da companhia, bem como a outros direitos que sejam compatíveis com a condição jurídica que ostenta. De fato, a condição de nua proprietária das ações nominativas não lhe retira a faculdade jurídica de ser convocada para participar das reuniões da sociedade anônima, haja vista que é acionista, ainda que destituída do poder de voto”.