Amplamente utilizado no exterior como veículo de planejamento patrimonial e sucessório, o trust não é previsto na legislação brasileira. Trata-se de instrumento típico do direito inglês e de países que adotam o sistema da common law (em oposição ao sistema romano-germânico/civil law adotado no Brasil e em países como Itália, Alemanha, Portugal e França). Ele permite que um indivíduo (settlor) transmita bens a um terceiro (trustee) para que este os administre em favor de determinados beneficiários (beneficiaries) conforme regras definidas em um contrato (trust agreement/trust deed).

O instituidor (settlor) define o escopo do trust no momento da contração, isto é, as regras de gestão dos bens, seus beneficiários (que podem ser terceiros ou o próprio settlor) e os eventos em que haverá transferência (parcial ou total) de bens aos beneficiários.

Muitas são as situações permitidas nessa modalidade contratual, desde a gestão de bens em favor de filhos menores ou pessoas juridicamente incapazes, administração profissional de bens, gestão do patrimônio em caso de incapacidade/interdição do settlor, até a entrega dos bens em hipóteses de falecimento. O trust funciona, assim, como legítimo instrumento jurídico sucessório e de planejamento patrimonial.

Diante da falta de regulamentação sobre o tema no Brasil, verifica-se uma ampla utilização do trust em outras jurisdições por brasileiros que detêm patrimônio no exterior. Em função disso, para que os planejamentos patrimoniais possam passar a ser estruturados no Brasil, está em trâmite na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 4.758/20, de autoria do deputado Enrico Misasi. O objetivo é incluir no nosso sistema legal o “Regime Geral da Fidúcia” para regulamentar a propriedade fiduciária no território nacional.

Na justificativa do projeto, o deputado Enrico Misasi faz expressa referência ao trust como fonte inspiradora do projeto, além de definir como seu principal objetivo a segregação do patrimônio das partes do contrato por meio da criação do patrimônio de afetação, fundamental para a segurança jurídica do contrato de fidúcia por diferenciar o patrimônio do instituidor do patrimônio do administrador.

O projeto de lei define a fidúcia, no art. 2º, como sendo o “negócio jurídico pelo qual uma das partes, denominada fiduciante, transmite, sob regime fiduciário, bens ou direitos, presentes ou futuros, a outra, denominada fiduciário, para que este os administre em proveito de um terceiro, denominado beneficiário, ou do próprio fiduciante, e os transmita a estes ou a terceiros, de acordo com o estipulado no respectivo ato constitutivo”, estrutura  semelhante à do trust.

A grande inovação é a criação do patrimônio de afetação, nos termos do artigo 3º do projeto: “Os bens e direitos transmitidos em fidúcia, bem como seus frutos e rendimentos, constituem propriedade fiduciária, subordinados os poderes a eles inerentes às restrições e limites estabelecidos na lei ou no respectivo ato de constituição”. De acordo com o § 1º do mesmo artigo, a propriedade fiduciária deve durar até o implemento de uma condição resolutiva ou advento de um termo, ambos definidos no contrato, ocasião em que os bens serão transmitidos aos beneficiários, conforme disposto no § 2º.

Os bens transmitidos em fidúcia constituem patrimônio autônomo, não respondendo por dívidas do fiduciário, mas somente por dívidas vinculadas à propriedade fiduciária, a teor do § 3º do artigo 3º, ficando estabelecida legalmente a segregação patrimonial entre as partes do contrato e o próprio objeto da pactuação, exceto nos casos de fraude.

Além disso, o fiduciário não pode utilizar os bens recebidos fiduciariamente em seu proveito, devendo respeitar as normas do contrato e as regras estabelecidas pelo fiduciante, a exemplo do que ocorre na relação entre trustee e settlor nos contratos de trust.

Outra importante característica da relação fiduciária é a possibilidade de instituí-la por ato unilateral, com caráter revogável ou não. É possível criá-la, portanto, por meio de testamento, o que a torna uma importante ferramenta de planejamento sucessório.

Muito embora a propriedade fiduciária já esteja prevista em legislações específicas, como nas que regulamentam a incorporação imobiliária, a securitização de créditos e a garantia fiduciária, o projeto de lei traria significativo avanço legal por meio da criação do contrato de fidúcia, que poderia ser usado das mais variadas formas e com diferentes objetivos. Isso vale tanto para  a gestão de bens em diversas situações como para a sucessão do patrimônio, inclusive estendendo-se à gestão do patrimônio do herdeiro nas situações em que tal providência for recomendável, como ocorre atualmente com o trust.

O projeto de lei foi recebido em 10 de março na Comissão de Finanças e Tributação e, depois de analisado, seguirá para a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.