Aprovado pelo Senado Federal em 30 de junho e ainda pendente de apreciação pela Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei nº 2.630/2020 institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, apelidada de “Lei das Fake News”. O texto se propõe a definir “normas, diretrizes e mecanismos de transparência” para as redes sociais[1] e plataformas de mensageria privada,[2] mas acaba por estabelecer várias obrigações aos provedores,[3] que passam a ter novos papéis e responsabilidades na sua atuação e moderação de conteúdo.

Inserido em um contexto político-social específico, o PL das Fake News surge como uma tentativa de frear a disseminação de notícias falsas na internet e atenuar seus impactos nas esferas social, eleitoral e de saúde pública. No entanto, a redação aprovada não contém uma definição do termo “fake news” ou notícias falsas”, direcionando seu enfoque ao comportamento inautêntico de contas de usuários nas redes sociais e à transparência sobre conteúdos pagos, que passarão a ser moderados pelos provedores de aplicações.

Embora o objetivo da lei seja legítimo, essas práticas de moderação levantam uma série de preocupações, entre elas a ampliação da responsabilidade dos provedores e o risco de censura e de violação dos direitos à informação, à liberdade de expressão e à privacidade dos usuários.

Nesta análise, destacamos algumas das obrigações impostas pelo PL aos provedores de aplicações e seus possíveis efeitos.

Medidas sobre responsabilidade e transparência no uso de redes sociais

O PL institui diversas medidas que os provedores devem adotar para proteger a liberdade de expressão e o acesso à informação, entre as quais destacamos as referentes à (i) proibição de contas inautênticas; (ii) proibição de contas automatizadas não identificadas como tal; e (iii) obrigação de identificação de conteúdos impulsionados e publicitários.

  • As contas inautênticas são definidas pelo PL como perfis que assumem ou simulam a identidade de terceiros com o objetivo de enganar o público, com exceção às contas que sejam explicitamente de humor ou paródia, bem como aquelas que identifiquem nomes sociais ou pseudônimos. De acordo com o PL, os provedores devem adotar medidas, no âmbito e nos limites de seu serviço, para vedar o funcionamento de tais contas visando à proteção da liberdade de expressão e do direito de acesso à informação, bem como ao fomento do livre fluxo de ideias na internet.
  • O PL prevê também que as redes sociais devem exigir a identificação de contas automatizadas, isto é, contas geridas por tecnologia que simula ou substitui atividades humanas na distribuição de conteúdo em redes sociais – popularmente conhecidas como “contas robôs”. Caso a conta automatizada não tenha sido identificada como tal para os provedores ou para o público, os provedores podem requerer a confirmação da identificação, por meio de apresentação de documento de identidade válido, sob pena de exclusão da conta.

Adicionalmente, o PL impõe aos provedores a responsabilidade de desenvolver mecanismos para “detectar fraude no cadastro e o uso de contas em desacordo com a legislação”, bem como de rastrear e controlar o comportamento das contas automatizadas com o objetivo de confirmar sua autenticidade.

  • Por fim, o PL dispõe que os provedores devem identificar os conteúdos impulsionados e publicitários de forma destacada aos usuários, inclusive quando posteriormente compartilhados, encaminhados ou repassados. A identificação dos conteúdos impulsionados e publicitários deve conter dados da conta responsável pela ação ou do anunciante, incluindo informações de contato.

A obrigação de manter essa identificação pode ser bastante complexa, uma vez que tais conteúdos, ainda que inicialmente identificados, podem ser modificados pelos usuários quando forem compartilhados, dificultando o controle sobre as alterações e a disseminação do conteúdo modificado.

Além disso, a obrigação de fornecer informações de contato do responsável ou do anunciante aos usuários que a solicitarem, de forma ampla e não definida, pode dar ensejo a comportamentos abusivos ou sem qualquer interesse legítimo, bem como acarretar danos à privacidade e à liberdade de expressão de seus titulares.

Procedimentos de moderação e transparência

Ainda sob a justificativa de garantia do direito de acesso à informação e à liberdade de expressão dos usuários das redes sociais, o PL institui “procedimentos de moderação” que devem ser observados pelos provedores.

Importante destacar que o sistema legal brasileiro já estabelece a obrigação de os provedores observarem o princípio de transparência no oferecimento de seus serviços, com o fornecimento de termos de uso em linguagem clara e acessível aos usuários. O novo regulamento instituído pelo PL passaria a obrigar os provedores a disponibilizar também mecanismos para os usuários questionarem sua atuação (como em caso de desativação de contas), bem como a notificar o usuário sobre a aplicação da medida e sua fundamentação.

Há situações, porém, que dispensariam a notificação do usuário, como o caso de violação de direitos de crianças e adolescentes ou se houver risco de “dano imediato de difícil reparação”. Nessas hipóteses, caberia ao provedor tornar a conta ou o conteúdo indisponível, sem a necessidade de notificação aos usuários.

O PL determina ainda que caberá ao provedor reparar, no âmbito e nos limites técnicos dos serviços, eventuais danos decorrentes de moderação equivocada. Porém, não fica claro qual será a forma de tal reparação (se corresponderia apenas a tornar novamente disponível o conteúdo equivocadamente removido ou se incluiria, por exemplo, indenização por danos morais e materiais), o que abre margem à ampliação da responsabilidade civil dos provedores.

A atuação dos provedores, conforme estabelece o PL, deve ser demonstrada a partir da elaboração e publicação de um relatório sobre as medidas de moderação de conteúdos e contas aplicadas pelo provedor a cada trimestre. Tal relatório deve conter dados como a motivação e a metodologia utilizadas na detecção das irregularidades e o tipo de medidas adotadas.

Além de ser divulgado ao público, o relatório poderá ser avaliado pelo Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet, órgão que será responsável por acompanhar as medidas de que trata o PL e sugerir diretrizes sobre o tema.

Aumento da responsabilidade civil dos provedores e riscos à liberdade de expressão e de informação

Atualmente, o tema da responsabilidade civil dos provedores de aplicação por conteúdos gerados por terceiros é regulamentado pela Lei nº  12.965/2014, popularmente conhecida como Marco Civil da Internet. De acordo com essa lei, os provedores de aplicação somente poderão ser responsabilizados civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomarem as providências para tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente.

Ou seja, nos termos da legislação vigente, os provedores de aplicação não têm o dever de fiscalizar previamente os conteúdos gerados por terceiros. Eles só são obrigados a tornar tais conteúdos indisponíveis caso recebam ordem judicial específica determinando essa remoção.

Contudo, o PL 2.630/2020 altera esse modelo ao atribuir aos provedores de redes sociais e serviços de mensageria privada a obrigação de moderar os conteúdos postados por seus usuários e torná-los indisponíveis caso violem os termos de uso da plataforma ou a lei, independentemente do recebimento de ordem judicial.

Esse novo modelo aumenta a responsabilidade e o poder dos provedores de aplicação, na medida em que retira do Judiciário e passa para essas empresas o encargo de analisar o teor dos conteúdos publicados pelos usuários e determinar aqueles que elas entendem ser violadores da lei ou de seus termos de uso. Disso decorrem dois problemas principais:

  • O primeiro é a ampliação das hipóteses de responsabilização civil das plataformas, que passam a ser responsabilizadas, independentemente de ordem judicial, tanto pelos conteúdos violadores que deixarem de remover quanto pelos conteúdos indisponibilizados equivocadamente. Essa ampliação é bastante problemática por atribuir aos provedores de aplicações um ônus desproporcional, que pode acabar por inviabilizar suas atividades.
  • O segundo é o risco de censura e de violação dos direitos à informação e à liberdade de expressão dos usuários, na medida em que confere aos provedores de aplicações o poder de determinar o que pode ou não ser publicado em suas redes sociais, que hoje constituem um dos principais meios de comunicação.

Embora os objetivos do PL 2.630/2020 sejam louváveis, a forma como se propõe que ele combata a disseminação de notícias falsas é bastante problemática, pois acaba legitimando situações de violação dos direitos à informação, à liberdade de expressão e à privacidade dos usuários praticadas por agentes privados e, ao mesmo tempo, amplia demasiadamente a responsabilidade desses agentes, podendo inviabilizar suas atividades.

O combate à desinformação a que visa a Lei das Fake News é urgente, mas sua regulamentação às pressas pode acarretar consequências graves à liberdade na internet. Como visto, o PL 2.630/2020 é complexo e engloba temas sensíveis que precisam ser debatidos sob diferentes perspectivas junto à sociedade civil, de forma semelhante a que ocorreu com o Marco Civil da Internet.

A sociedade, como maior interessada, deve ser convidada a participar das discussões sobre o projeto, auxiliando o Legislativo a encontrar alternativas ao gerenciamento e à moderação de conteúdos pelos provedores, com o objetivo de garantir os direitos fundamentais no mundo virtual, especialmente a liberdade de expressão e informação, a vedação à censura e a proteção à privacidade.


[1] O termo “rede social” é definido no art. 5º, VIII, do PL 2.630/2020 como “aplicação da internet que se destina a realizar a conexão de usuários entre si, permitindo e tendo como centro da atividade a comunicação, o compartilhamento e a disseminação de conteúdo em um mesmo sistema de informação, através de contas conectadas ou acessíveis entre si de forma articulada”.

[2] O termo “serviço de mensageria privada” é definido no art. 5º, IX, do PL 2.630/2020 como “aplicação de internet que viabiliza o envio de mensagens para destinatários certos e determinados, inclusive protegidas por criptografia de ponta a ponta, a fim de que somente remetente e destinatário da mensagem tenham acesso ao seu conteúdo exclusivo, excluídas aquelas prioritariamente destinadas ao uso corporativo e os serviços de correio eletrônico”.

[3] O PL 2.630/2020 não define o termo “provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada” (apenas os termos “rede social” e “serviço de mensageria privada” no art. 5º, incisos VIII e IX). A partir da redação proposta no PL, entendemos que o termo “provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada” pode ser tratado como sinônimo de provedores de aplicação, definido pelo Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014). Contudo, a lei só é aplicável aos provedores de aplicação cujas plataformas contem com pelo menos dois milhões de usuários registrados (art. 1º, § 1º, do PL 2.630/2020).