“O ignorante afirma, o sábio duvida, o sensato reflete”, já dizia o filósofo grego Aristóteles, enunciado que se amolda bem ao contexto das recentes discussões tributárias analisadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e que merece ser relembrado em razão da decisão proferida nos autos da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 49. A ADC 49 reafirma a jurisprudência consolidada dos tribunais superiores: não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte (ARE nº 1.255.885/MS – Tema 1.099, ARE nº 1.213.482/RS-AgR, Súmula do STJ nº 166, REsp nº 1.704.133/DF-AgInt, REsp nº 1.125.133/SP – Tema 259, entre outros).

Ao proferir sua decisão, a Suprema Corte compreendeu que a incidência do imposto pressupõe a transferência de titularidade do bem, sendo indevida a sua cobrança na hipótese de deslocamento da mercadoria entre estabelecimentos da mesma pessoa jurídica – seja em operações internas, seja em operações interestaduais.[1] Para tanto, firmou-se que a circulação de mercadorias deve ser jurídica (e não meramente física), que pressupõe efetivo ato de mercancia, para o qual concorrem a finalidade de lucro e a transmissão de posse ou propriedade.

Sob essa perspectiva, no âmbito na ADC 49, restou declarada a inconstitucionalidade dos artigos 11, §3º, II, 12, I, no trecho “ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular”, e 13, §4º, da Lei Complementar nº 87/96.[2]

Se essa é uma conhecida e sedimentada posição da jurisprudência, o que diferencia o julgamento da ADC 49 dos demais casos analisados pelos tribunais superiores?

A esse respeito, cabe lembrar que a decisão proferida em sede de ação declaratória de constitucionalidade não se apresenta como um simples precedente. Isso porque, pela primeira vez, a Corte Superior analisou a matéria sob a sistemática do controle concentrado, o que, por consequência, garante o efeito erga omnes para o acórdão. O recente entendimento firmado pelo STF vincula não apenas as partes envolvidas na lide ou em outros processos em que se discute o assunto, mas também todos os contribuintes de ICMS (mesmo sem ação judicial). Nesse sentido, a consequência imediata desse novo julgamento é a expulsão da norma declarada inconstitucional do ordenamento jurídico nacional.

Outra questão que se coloca é: quais os efetivos impactos da ADC 49 nas operações de transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular? O questionamento leva em consideração os debates sobre a glosa de crédito de ICMS, o esvaziamento de certos regimes especiais/benefícios fiscais de ICMS e a autonomia dos estabelecimentos. Vejamos de modo mais profundo cada um desses pontos.

Com relação ao primeiro, a dúvida consiste na necessidade de estorno do crédito decorrente dessas operações, já que não incide imposto na saída das mercadorias em transferência. Tal indagação advém de uma interpretação do próprio texto constitucional, ou melhor, da assertiva de que a isenção ou não incidência acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores – artigo 155, § 2º, II, ‘b’.[3]

A despeito do risco de inexistência de qualquer manifestação expressa acerca do tema, parece haver argumentos para se defender que a transferência de bens entre estabelecimentos do mesmo contribuinte nada mais é do que uma saída física, e não se apresenta como uma “operação de circulação” do produto na cadeia econômica. Nem mesmo configura uma “não incidência do ICMS”, uma vez que a norma constitucional que prevê o estorno em casos como esse pressupõe que haveria o encerramento da cadeia de tributação do produto (o que não ocorre no caso de saída em transferência, considerando que a próxima operação no estado de destino seria sujeita à incidência do ICMS).

Corrobora essa conclusão o fato de que a Lei Complementar nº 87/96 (artigo 21, §3º)[4] assegura que a isenção ou a não tributação na etapa anterior da cadeia não inviabiliza a utilização do crédito de ICMS dela decorrente em operações posteriores, sujeitas ao imposto, com a mesma mercadoria.

Assim, parece haver argumentos para se defender que o estorno do crédito – na hipótese de transferência de mercadorias – violaria o princípio fundamental da não cumulatividade, uma vez que impõe ao contribuinte o pagamento total do imposto sem a possibilidade de creditamento, em razão do simples movimento físico do bem.

Outro grande debate envolve os eventuais prejuízos que a decisão do STF pode trazer aos incentivos fiscais de ICMS condicionados ao pagamento do imposto quando da transferência. A respeito desse segundo ponto, a discussão deriva do fato de diversas unidades da federação concederem benefícios fiscais cuja eficácia prescinde do destaque do ICMS nas saídas de mercadorias para estabelecimentos do mesmo contribuinte.

Apesar das peculiaridades de cada caso, em uma primeira análise, entendemos ser possível defender que os beneficiários desses tratamentos tributários diferenciados poderiam continuar a fruir desses incentivos fiscais. Portanto, parecem existir dois fundamentos jurídicos que fomentam tal possibilidade:

  • Os atos normativos e/ou concessivos de benefícios de ICMS são normas específicas e, como tal, devem prevalecer sobre as normas gerais; e
  • O cumprimento dos requisitos estabelecidos pela Lei Complementar nº 160/17 e pelo Convênio ICMS nº 190/2017 deveria garantir a constitucionalidade dos benefícios do ICMS, nos moldes reintroduzidos no ordenamento jurídico.

Por fim, outro importante ponto de discussão se refere às reflexões sobre a validade do preceito da autonomia dos estabelecimentos frente à declaração da inconstitucionalidade do artigo 11, §3º, II, da Lei Complementar nº 87/96. Entendemos haver elementos para se defender que, uma vez declarado inconstitucional o artigo que era expresso acerca dessa autonomia, haveria a possibilidade de concentração dos débitos e dos créditos de ICMS no estabelecimento matriz da pessoa jurídica (ou em outro estabelecimento). Porém, em que pese essa possibilidade, a Administração Pública poderia alegar que:

 

  • a ADC 49 não afasta a regra de independência dos estabelecimentos, ao passo que outras normas da mencionada lei complementar não foram afetadas pela decisão – em especial, os artigos 17 e 25;[5] e
  • independentemente da pretensa ausência do princípio da autonomia dos estabelecimentos, ainda vigem os princípios fundamentais do pacto federativo e da ordem tributária, que afastariam o dever do estado de aceitar créditos de ICMS relacionados a pagamentos feitos em outros estados.

 

Dado esse contexto, é claro que o posicionamento firmado pelo STF na ADC 49, além de reiterar uma jurisprudência pacífica, suscitou o enfrentamento de possíveis novos entraves judiciais, caso a Suprema Corte não esclareça o alcance de sua decisão – em sede de embargos de declaração pendentes de julgamento – a partir de uma análise integrada do sistema tributário nacional.

 

Por ora, resta aos contribuintes aguardar pacientemente a deliberação final sobre a matéria, no intuito de atenuar algumas das discussões levantadas acima, mediante o exame do alcance da decisão quanto à autonomia dos estabelecimentos e da possível modulação de efeitos. Como alternativa, eles podem implementar reestruturações complexas que, em grande medida, tendem a aumentar a carga tributária de suas operações e que, na eventualidade de julgamento favorável dos embargos de declaração, deverão ser revisadas e alteradas.

 


[1] Ementa do acórdão proferido nos autos da ADC 49: DIREITO CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE. ICMS. DESLOCAMENTO FÍSICO DE BENS DE UM ESTABELECIMENTO PARA OUTRO DE MESMA TITULARIDADE. INEXISTÊNCIA DE FATO GERADOR. PRECEDENTES DA CORTE. NECESSIDADE DE OPERAÇÃO JURÍDICA COM TRAMITAÇÃO DE POSSE E PROPRIEDADE DE BENS. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. 1. Enquanto o diploma em análise dispõe que incide o ICMS na saída de mercadoria para estabelecimento localizado em outro Estado, pertencente ao mesmo titular, o Judiciário possui entendimento no sentido de não incidência, situação que exemplifica, de pronto, evidente insegurança jurídica na seara tributária. Estão cumpridas, portanto, as exigências previstas pela Lei nº 9.868/1999 para processamento e julgamento da presente ADC. 2. O deslocamento de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular não configura fato gerador da incidência de ICMS, ainda que se trate de circulação interestadual. Precedentes. 3. A hipótese de incidência do tributo é a operação jurídica praticada por comerciante que acarrete circulação de mercadoria e transmissão de sua titularidade ao consumidor final. 4. Ação declaratória julgada improcedente, declarando a inconstitucionalidade dos artigos 11, §3º, II, 12, I, no trecho “ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular”, e 13, §4º, da Lei Complementar Federal nº 87, de 13 de setembro de 1996.

[2] Para fins didáticos, veja-se o que estabelece cada um dos dispositivos legais supramencionados:

Art. 11. O local da operação ou da prestação, para os efeitos da cobrança do imposto e definição do estabelecimento responsável, é: [...] § 3º Para efeito desta Lei Complementar, estabelecimento é o local, privado ou público, edificado ou não, próprio ou de terceiros, onde pessoas físicas ou jurídicas exerçam suas atividades em caráter temporário ou permanente, bem como onde se encontrem armazenadas mercadorias, observado, ainda, o seguinte: [...] II - é autônomo cada estabelecimento do mesmo titular; [...]

Art. 12. Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento: I - da saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular; [...]

Art. 13. A base de cálculo do imposto é: [...] § 4º Na saída de mercadoria para estabelecimento localizado em outro Estado, pertencente ao mesmo titular, a base de cálculo do imposto é: I - o valor correspondente à entrada mais recente da mercadoria; II - o custo da mercadoria produzida, assim entendida a soma do custo da matéria-prima, material secundário, mão de obra e acondicionamento; III - tratando-se de mercadorias não industrializadas, o seu preço corrente no mercado atacadista do estabelecimento remetente. [...]

[3] Artigo 155. [...] § 2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte: I. será não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal; II. a isenção ou não incidência, salvo determinação em contrário da legislação: a) não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes; b) acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores; [...]

[4] Art. 21. O sujeito passivo deverá efetuar o estorno do imposto de que se tiver creditado sempre que o serviço tomado ou a mercadoria entrada no estabelecimento: [...] § 3º O não creditamento ou o estorno a que se referem o § 3º do art. 20 e o caput deste artigo, não impedem a utilização dos mesmos créditos em operações posteriores, sujeitas ao imposto, com a mesma mercadoria.

[5] Art. 17. Quando o valor do frete, cobrado por estabelecimento pertencente ao mesmo titular da mercadoria ou por outro estabelecimento de empresa que com aquele mantenha relação de interdependência, exceder os níveis normais de preços em vigor, no mercado local, para serviço semelhante, constantes de tabelas elaboradas pelos órgãos competentes, o valor excedente será havido como parte do preço da mercadoria.

Parágrafo único. Considerar-se-ão interdependentes duas empresas quando:

I - uma delas, por si, seus sócios ou acionistas, e respectivos cônjuges ou filhos menores, for titular de mais de cinquenta por cento do capital da outra;

II - uma mesma pessoa fizer parte de ambas, na qualidade de diretor, ou sócio com funções de gerência, ainda que exercidas sob outra denominação;

III - uma delas locar ou transferir a outra, a qualquer título, veículo destinado ao transporte de mercadorias.

Art. 25. Para efeito de aplicação do disposto no art. 24, os débitos e créditos devem ser apurados em cada estabelecimento, compensando-se os saldos credores e devedores entre os estabelecimentos do mesmo sujeito passivo localizados no Estado.

  • 1º Saldos credores acumulados a partir da data de publicação desta Lei Complementar por estabelecimentos que realizem operações e prestações de que tratam o inciso II do art. 3º e seu parágrafo único podem ser, na proporção que estas saídas representem do total das saídas realizadas pelo estabelecimento:

I - imputados pelo sujeito passivo a qualquer estabelecimento seu no Estado;

II - havendo saldo remanescente, transferidos pelo sujeito passivo a outros contribuintes do mesmo Estado, mediante a emissão pela autoridade competente de documento que reconheça o crédito.

  • 2º Lei estadual poderá, nos demais casos de saldos credores acumulados a partir da vigência desta Lei Complementar, permitir que:

I - sejam imputados pelo sujeito passivo a qualquer estabelecimento seu no Estado;

II - sejam transferidos, nas condições que definir, a outros contribuintes do mesmo Estado.