Há muito tempo se discute o escopo de aplicação do artigo 124, I, do Código Tributário Nacional (CTN), cujo conteúdo prevê a responsabilidade solidária de pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador. Embora o elemento central à aplicação desse dispositivo seja a confirmação da existência do interesse comum no caso concreto, esse é um conceito indeterminado.

Em razão dessa indeterminação, há um cenário de insegurança jurídica marcado pela dificuldade em estabelecer quais situações fáticas atrairiam essa forma de responsabilização solidária e pela adoção de posturas agressivas pelo fisco com a intenção de buscar o pagamento do crédito tributário.

A possibilidade, ou não, de responsabilizar sujeitos que ocupam polos opostos em uma relação jurídica – como, por excelência, comprador e vendedor – é uma dessas situações na qual a existência de interesse comum é controversa e, por consequência, também a possibilidade de aplicação do artigo 124, I, do CTN.

Mais especificamente, a incerteza domina as discussões sobre a responsabilização solidária de contrapartes em operações envolvendo reorganizações societárias que resultam em redução da carga tributária. Os casos de reorganização são apreciados de forma recorrente no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) à luz, principalmente, do propósito negocial – e a forma de responsabilização dos envolvidos tem recebido a mesma atenção.

Apesar de existirem precedentes do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que afastam a responsabilização solidária por interesse comum entre partes contrapostas,[1] a posição adotada pelo fisco não parece estar tão bem definida. Para entender qual é o posicionamento das autoridades tributárias, vale analisar como o Carf aborda essa questão.

Como critério de pesquisa para essa análise, foram utilizados os casos de responsabilização de comprador e vendedor em negócios jurídicos nos quais a alienação de participação societária é antecedida por reorganização societária, resultando em redução da carga tributária incidente sobre a operação, com foco nos acórdãos proferidos nos últimos anos.[2]

Assim, foram identificados três casos, cujos desfechos foram favoráveis no Carf e que são brevemente descritos a seguir:

  • Acórdão 1302-003.286, de 12/12/2018:
    • Fatos – Trata-se de redução de capital com posterior alienação de participações societárias pelos acionistas. A fiscalização autuou a companhia que realizou a redução, colocando-a na posição de “real vendedora” das participações. Os adquirentes dessas participações foram arrolados como responsáveis solidários com base no artigo 124, I, do CTN.
    • Entendimento do Carf – O Carf entendeu que, como os alienantes e adquirentes ocupam polos opostos na relação de compra e venda, não há que se falar em interesse comum, necessário à aplicação do artigo 124, I, do CTN. Foi afastada a responsabilidade solidária dos adquirentes.
  • Acórdão 1201-001.474, julgado em 11/08/2016:
    • Fatos – Trata-se de questionamento da validade da amortização fiscal do ágio gerado em operação de aquisição de participação societária seguida de incorporação. A companhia que atuou como compradora na operação foi autuada, e o grupo que participou como vendedor foi arrolado como responsável solidário com base no artigo 124, I, do CTN.
    • Entendimento do Carf – O Carf entendeu que, para que exista o interesse comum necessário à aplicação do artigo 124, I, do CTN, todos os responsáveis devem ocupar o mesmo polo jurídico da obrigação tributária. Sendo assim, é impossível a existência de interesse comum entre comprador e vendedor. O interesse comum não se dá em relação ao negócio efetuado pelas partes, mas no resultado do negócio, que, no caso, foi o aproveitamento do ágio, do qual o grupo vendedor não se beneficiou. Foi afastada, portanto, a responsabilidade solidária do vendedor.
  • Acórdão 1302-003.418, julgado em 19/03/2019:
    • Fatos – Trata-se de caso de transferência de participações societárias por pessoa jurídica a um Fundo de Investimento em Participações (FIP), que efetuou sua alienação. A fiscalização desconsiderou a existência do fundo e autuou a companhia que realizou a integralização no FIP, considerando-a a “real vendedora” das participações. O adquirente dessas participações foi arrolado como responsável solidário com base no artigo 124, I, do CTN.[3]
    • Entendimento do Carf – O Carf entendeu que a solidariedade por interesse comum pressupõe que os participantes do fato gerador tributado não estejam em posições contrapostas, com objetivos antagônicos. A fiscalização precisaria ter demonstrado que os sujeitos passivos praticaram conjuntamente o fato gerador ou desfrutaram conjuntamente dos seus resultados de forma fraudulenta – o que não ocorreu no caso, razão pela qual foi afastada a responsabilidade solidária da adquirente.

Em suma, todos os acórdãos identificados afastam a responsabilização solidária entre comprador e vendedor com base em um argumento principal: o interesse comum, necessário à aplicação do artigo 124, I, do CTN, não se verifica entre partes que ocupam polos opostos de uma relação jurídica.

Para confirmar o interesse comum na situação que constitui o fato gerador do tributo, seria imprescindível que as partes tivessem objetivos equivalentes e se aproveitassem conjuntamente do benefício do negócio realizado. Segundo o entendimento do Carf proferido nos acórdãos analisados, esses requisitos apenas podem ser cumpridos quando os responsáveis se encontram no mesmo polo do negócio jurídico que configura o fato gerador do tributo em cobrança.

Nessa linha, é possível entender que o conceito de interesse comum não dá respaldo à inclusão do comprador no polo passivo da obrigação tributária, como responsável solidário, em processos nos quais o contribuinte autuado é o vendedor (e vice-versa). Tendo em vista o reduzido número de precedentes identificados e o posicionamento favorável neles adotado, essa também parece ser a posição da fiscalização e do próprio Carf.

A pequena quantidade de precedentes encontrada reflete um número reduzido de autuações. Isso indica que as autoridades tributárias têm o mesmo entendimento de que não cabe responsabilizar comprador e vendedor pelo artigo 124, I, do CTN.

É correto, portanto, o posicionamento adotado pela fiscalização e pelo Carf. De fato, para que se confirme o interesse comum necessário à aplicação do artigo 124, I, do CTN, é imprescindível que os responsáveis ocupem o mesmo polo do negócio que constituiu o fato gerador do tributo. O interesse comum pressupõe a comunhão de objetivos e de resultados. A diminuição de carga tributária não representa um interesse partilhado entre comprador e vendedor, especialmente com relação aos casos de reorganização societária prévia ao negócio jurídico de alienação.

Embora o conceito de interesse comum ainda permaneça indeterminado, saber que as autoridades tributárias não têm incluído partes contrapostas no polo passivo da obrigação tributária e que, nos poucos casos nos quais essa forma de responsabilização foi aplicada, o posicionamento do Carf foi favorável, elucida o campo de aplicação do artigo 124, I, do CTN e traz maior segurança jurídica aos contribuintes.

 


[1] A título de exemplo, destaca-se o AREsp n. 1.198.146/SP, julgado em 4 de dezembro de 2018.

[2] A pesquisa foi realizada por meio mecanismo de busca “Projeto VER”, utilizando como referência a chave de pesquisa [“artigo 124, I” e “comprador e vendedor”] e marcador temporal de 2014 a 2022.

[3] A aplicação do art. 124, I, do CTN ao comprador no caso foi baseada, entre outros elementos, no fato de que comprador e vendedor executavam transações comerciais (relações jurídicas nas quais ocupam posições contrapostas), o que foi interpretado como evidência de formação de grupo econômico e de que aproveitariam, conjuntamente, os benefícios do não recolhimento de tributos. Esse entendimento foi afastado pelo Carf, que, além de entender como impossível a responsabilização por interesse comum de partes que ocupem polos opostos em uma relação jurídica, entendeu que (i) a suposta configuração de grupo econômico, (ii) a existência de relações comerciais entre as sociedades, e (iii) o proveito econômico pelo não recolhimento de tributos, também não são suficientes para a caracterização do interesse comum.