O Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou, em 6 de maio deste ano, em plenário virtual, o julgamento muito aguardado de dois recursos extraordinários com repercussão geral relativos aos limites dos efeitos temporais da coisa julgada em matéria tributária.

No Recurso Extraordinário (RE) 949.297 (Tema 881), de relatoria do ministro Edson Fachin, discute-se se a decisão proferida pelo STF em controle concentrado e abstrato de constitucionalidade[1] seria apta para cessar a eficácia temporal da coisa julgada previamente obtida pelo contribuinte ou pela Fazenda Pública em sentido contrário.

O caso concreto se refere à situação de contribuinte que obteve decisão judicial transitada em julgado em seu favor em processo próprio, para deixar de recolher a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), sob o argumento de que a lei instituidora[2] do tributo continha vício de inconstitucionalidade formal. Posteriormente, contudo, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 15/DF, o STF declarou a constitucionalidade da lei, validando a cobrança pela Fazenda Nacional.

Em resumo, a Fazenda argumenta que a coisa julgada obtida por contribuintes nessa situação não prevalece para fatos geradores futuros, isto é, aqueles ocorridos após a decisão do STF em sentido contrário na ADI 15/DF.

A Fazenda sustenta que, por se tratar de relação de trato sucessivo (que se renova a cada fato gerador da obrigação tributária), a prevalência de tais decisões individuais afrontaria a força normativa da Constituição Federal, declarada pelo STF, e os princípios da igualdade e da livre concorrência. Isso ocorre porque, em razão do efeito vinculante e da eficácia geral das decisões do STF, os demais contribuintes desprovidos de coisa julgada própria (maioria) continuariam submetidos à exigência fiscal.

Já no RE 955.227 (Tema 885), de relatoria do ministro Roberto Barroso, está sob análise a possibilidade de as decisões do STF proferidas em sede de recurso extraordinário (controle difuso de constitucionalidade) fazerem cessar os efeitos futuros da coisa julgada sobre relação tributária de trato continuado, quando a decisão tiver se baseado na constitucionalidade ou inconstitucionalidade do tributo.

Esse caso concreto também trata da exigência da CSLL, mas exclusivamente sob a perspectiva do controle difuso de constitucionalidade. A Fazenda Nacional defende a sustação dos efeitos da coisa julgada para os fatos geradores ocorridos a partir de “decisões reiteradas” do STF que declararam a inconstitucionalidade da cobrança e foram proferidas em recursos extraordinários sem repercussão geral reconhecida (antes da própria existência do regime) e antes do julgamento da ADI 15/DF.

Em ambos os recursos, os ministros deverão decidir ainda se a quebra da eficácia temporal da coisa julgada é automática já a partir do advento de decisão exarada pelo STF no âmbito de controle de constitucionalidade que seja contrária ao sentido da sentença individual,[3] independentemente de ação rescisória.

Embora existam decisões do STF pela manutenção da coisa julgada formada por decisões em sentido contrário à jurisprudência superveniente dominante na própria Corte, os votos proferidos nos recursos Extraordinários 949.297 e 955.227 adotam o entendimento de que é constitucional a interrupção dos efeitos temporais da coisa julgada, em relações jurídicas tributárias de trato sucessivo, quando o STF decide em sentido contrário em recursos extraordinários com repercussão geral ou pela via do controle concentrado de constitucionalidade.

Ainda que o julgamento dos recursos tenha sido interrompido por pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes em 12 de maio,[4] o Supremo está em vias de fixar tese de significativa repercussão jurídica e econômica, cujo critério poderá reativar a cobrança de exigências fiscais afastadas por decisões transitadas em julgado em inúmeras outras disputas tributárias, em verdadeiro “efeito dominó”.

No RE 949.297, o ministro Fachin (relator) votou pela quebra automática dos efeitos da coisa julgada pela eficácia das decisões do STF em controle concentrado e abstrato de constitucionalidade (ADI, ADO, ADC e ADPF). A propositura de ação rescisória autônoma seria, portanto, desnecessária.

Para o ministro, as sentenças constitucionais do STF de índole abstrata podem alterar o estado de direito de relação tributária de trato continuado, mas apenas em relação a fatos geradores futuros, ocorridos a partir da publicação da ata de julgamento. Ou seja, ainda que a relação jurídico-tributária entre contribuinte e Estado tenha sido estabilizada por prévia coisa julgada, a nova norma jurídica fixada por precedente do STF teria eficácia imediata e automática, sobrepondo-se à decisão transitada em julgado em sentido diverso.

O relator fez expressa ressalva quanto à:

  1. impossibilidade de retroatividade jurisprudencial, vedando a extensão dos efeitos jurídicos emanados da decisão de constitucionalidade para fatos do passado; e
  2. necessidade de observância das regras de irretroatividade e anterioridade (anual, noventena e nonagesimal, a depender do tributo). A data de publicação da ata de julgamento da decisão do STF deve equivaler ao primeiro dia de vigência da nova norma. Há no voto, ainda, indicação para que os efeitos desse entendimento sofram modulação.

A tese proposta pelo voto foi a seguinte:

“A eficácia temporal de coisa julgada material derivada de relação tributária de trato continuado possui condição resolutiva que se implementa com a publicação de ata de ulterior julgamento realizado em sede de controle abstrato e concentrado de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, quando os comandos decisionais sejam opostos, observadas as regras constitucionais da irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, de acordo com a espécie tributária em questão”.

O ministro Barroso acompanhou as conclusões do ministro Fachin pela cessação automática dos efeitos da coisa julgada diante da decisão do STF em controle concentrado de constitucionalidade. Além disso, porém, seu voto atribuiu expressamente essa mesma eficácia limitadora da coisa julgada às decisões proferidas pelo STF em recursos extraordinários com repercussão geral reconhecida (controle difuso de constitucionalidade), com base na tese da mutação constitucional do art. 52, X, da Constituição Federal.

De acordo com o entendimento tradicional (amparado na literalidade do art. 52, X), para que uma decisão do STF proferida em controle difuso de constitucionalidade (de forma incidental em julgamento de recurso extraordinário) tenha eficácia vinculante e efeitos gerais, é necessário que o Senado Federal edite resolução destinada a suspender a execução, no todo ou em parte, da lei declarada inconstitucional.

As decisões proferidas em controle concentrado (ADI, ADO, ADC e ADPF), por sua vez, em razão do art. 102, §2º, da Constituição, já são dotadas de tais atributos, independentemente da intervenção do Senado.

Para o ministro Barroso, em razão da evolução do regime de repercussão geral em nosso sistema jurídico, a resolução do Senado, prevista no art. 52, X, da Constituição, serviria apenas para dar publicidade à decisão do STF, mas não para restringir seus efeitos. Ou seja, tanto as decisões do STF proferidas em controle concentrado como as proferidas em controle difuso devem produzir os mesmos efeitos jurídicos.

Amparando-se nesse raciocínio, o ministro Barroso propõe a fixação da seguinte tese:

“1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo. 2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das sentenças transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal conforme a natureza do tributo.”

O ministro Gilmar Mendes, apesar de também entender pela quebra automática das decisões transitadas em julgado em relação aos fatos futuros, em razão das decisões do STF proferidas tanto no controle concentrado como no difuso com repercussão geral, divergiu do relator dessa corrente, por entender que é desnecessário observar a anterioridade tributária para reestabelecer um tributo.

O ministro discorre ainda sobre as hipóteses de ação rescisória previstas na legislação processual civil para fixar o entendimento de que seria possível propor tal medida, com base na decisão do STF, para também rescindir a coisa julgada em relação a fatos geradores pretéritos.

Antes do pedido de vista, a ministra Rosa Weber e o ministro Dias Toffoli[5] acompanharam o voto do ministro Edson Fachin. Com isso, o resultado parcial no RE 949.297 é de:

  • quatro votos pela cessação automática dos efeitos da coisa julgada, independentemente de ação rescisória, observadas as regras de anterioridade/irretroatividade, a partir de decisão do STF proferida em ADI, ADC, ADO e ADPF, para os fatos geradores futuros (posteriores à decisão do STF);
  • um voto pela:
    • cessação automática dos efeitos da coisa julgada em relação aos fatos geradores futuros, independentemente de ação rescisória, sem a observância das regras de anterioridade/irretroatividade; e
    • pela possibilidade de ação rescisória em relação aos fatos geradores pretéritos, a fim de desconstituir coisa julgada com base na decisão do STF em controle concentrado de constitucionalidade ou repercussão geral.

Já no RE 955.227, o ministro Barroso, inaugurando a votação como relator, replicou o entendimento manifestado no RE 949.297, com enfoque na mutação constitucional do art. 52, X, da Constituição e na atribuição dos mesmos efeitos jurídicos próprios das decisões em ADC, ADI, ADO e ADPF aos acórdãos dos recursos extraordinários com repercussão geral.

Ao fim, o ministro rejeitou a pretensão da União no caso concreto, propondo, porém, a mesma tese de repercussão geral sugerida no Tema 881, já apontando a necessidade de modulação dos efeitos da decisão, no que foi integralmente acompanhado pelos ministros Dias Toffoli e Rosa Weber.

Em ambos os julgamentos, o ministro Barroso asseverou que o critério a ser definido pelo STF também se aplica às relações jurídicas tributárias de trato sucessivo em que houver coisa julgada favorável à Fazenda Pública. A ressalva é relevante, por exemplo, para os contribuintes que têm coisa julgada de decisão em seu desfavor em temas decididos de forma contrária à Fazenda, como a da exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins.

No RE 955.227, antes do pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes, foi lançado apenas o voto do ministro Gilmar Mendes, também no mesmo sentido do voto proferido no Tema 881, isto é, admitindo a propositura de ação rescisória com o objetivo de desconstituir coisa julgada contrária à decisão do STF em controle concentrado de constitucionalidade ou em repercussão geral para fatos geradores ocorridos antes da decisão do STF.

Com isso, há três votos atualmente no RE 955.227 pela sustação automática dos efeitos temporais da coisa julgada em relação a fatos geradores futuros, independentemente de ação rescisória, com a observância das regras de anterioridade/irretroatividade, também na hipótese de coisa julgada contrária à decisão do STF proferida sob a sistemática da repercussão geral.

Até a data de fechamento deste artigo, não havia previsão de retomada do julgamento. São aguardados os votos dos ministros Alexandre de Moraes, Cármen Lucia, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Nunes Marques e André Mendonça.

Além da controvérsia sobre a CSLL, que já tem potencial de gerar impacto financeiro bilionário, o resultado dos temas 881 e 885 afetará outras controvérsias em matéria tributária de bastante relevância. É o caso da incidência de contribuição previdenciária sobre o terço constitucional de férias, para a qual muitos contribuintes obtiveram trânsito em julgado de decisão favorável, amparada no entendimento do Superior Tribunal de Justiça, antes de o STF declarar a constitucionalidade da cobrança no julgamento do RE 1072485, com repercussão geral (Tema 985).

Tão logo o julgamento dos RE 955.227 e 949.297 seja retomado pelo STF, nossos comentários serão atualizados, com a análise das teses fixadas e seus impactos.

 

[1] Nos termos da Lei 9.868/1999, o exercício do controle concentrado e abstrato de constitucionalidade é de competência exclusiva do STF e deve ocorrer no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO), da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF).

[2] Lei nº 7.689/88.

[3] “Sentença individual” aqui tratada como sinônimo de sentença proferida em processo de natureza subjetiva (e não objetiva), o que inclui as demandas ajuizadas com litisconsórcio ativo e as demandas coletivas, ajuizadas para defesa de direito de uma categoria ou classe.

[4] Não há previsão de retorno à pauta. 

[5] Este com a ressalva de que, no caso da constitucionalidade da CSLL, as coisas julgadas obtidas pelos contribuintes perderam sua eficácia apenas após o decurso de 90 dias da data da publicação da ata de julgamento do mérito da ADI 15/DF, em observância ao princípio da anterioridade.