Os contribuintes foram surpreendidos no início deste ano com uma importante decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) nos autos do Recurso Especial 1.826.124/SC. A 1ª Turma da Corte, por unanimidade, reconheceu a possibilidade de revisão aduaneira mesmo após o despacho aduaneiro ter sido submetido a procedimentos de conferência (ou seja, ter passado por canais de fiscalização que demandam análise mais detida da mercadoria importada). A decisão se contrapõe ao que vinha sendo defendido fortemente pelos contribuintes, principalmente em processos relativos à classificação fiscal de produtos.

A fim de compreender a discussão e o motivo pelo qual a posição do STJ é relevante para todos aqueles que importam mercadorias, é importante resgatarmos alguns conceitos.

O procedimento fiscal aduaneiro de importação é composto por quatro fases: processamento da declaração, conferência aduaneira, desembaraço aduaneiro e revisão aduaneira.

Na conferência aduaneira, o auditor fiscal identifica o importador, verifica a mercadoria e a correção das informações relativas à natureza, classificação fiscal, quantificação e ao valor, além de confirmar o cumprimento de todas as obrigações, fiscais e aduaneiras (ou solicitar alterações), para que seja realizado o desembaraço aduaneiro da mercadoria.

Por meio de um sistema automatizado, as importações são submetidas a canais – como na distribuição de um processo – nos quais haverá mais ou menos detalhamento de informações e solicitações das autoridades.

Esse procedimento poderá ser automático, quando a mercadoria é direcionada para o canal verde, ou estará condicionado à verificação documental (canal amarelo), somado à verificação física da mercadoria (canal vermelho) e até à instauração de procedimento especial de controle aduaneiro (canal cinza), para verificar indícios de fraude na operação de importação.

Especialmente nas situações em que a mercadoria é direcionada para o canal vermelho, é comum serem solicitados laudos técnicos para embasar as discussões relacionadas à classificação fiscal de mercadorias.

Isso ocorre porque, uma vez que a importação foi submetida a esse canal, a autoridade fiscal é demandada a analisar detidamente todas as informações e elementos para confirmar que o bem importado condiz com aquele informado nos documentos de importação. Após esse procedimento, a mercadoria poderá ser liberada – desembaraço aduaneiro.

Mesmo após todo esse procedimento e independentemente do canal eleito e da análise efetuada para liberação de uma determinada mercadoria, o artigo 638 do Regulamento Aduaneiro prevê a revisão aduaneira. Em tese, ela permite que as autoridades possam verificar novamente a regularidade do pagamento dos impostos e dos demais gravames devidos à Fazenda Nacional, da aplicação de benefício fiscal e da exatidão das informações prestadas pelo importador na declaração de importação, dentro do prazo de cinco anos.

A controvérsia jurídica está nessa possibilidade de revisão aduaneira.

De modo geral, os contribuintes defendem que não cabe revisão aduaneira na hipótese de processos que já passaram pelos canais de conferência amarelo, vermelho e cinza, pois nessas ocasiões as mercadorias foram analisadas pelos próprios auditores fiscais em relação a pagamento, informações declaradas, natureza dos bens – inclusive por técnicos especializados no bem importado. A revisão aduaneira, portanto, implicaria a homologação expressa do lançamento fiscal do contribuinte, culminando com o desembaraço aduaneiro.

O argumento dos contribuintes é ainda mais forte em relação aos canais vermelho e cinza, nos quais a análise para fins de liberação das mercadorias demandou a própria valoração do fiscal aduaneiro, que confirmou que a mercadoria poderia ser importada na forma como declarada.

Nos casos em que já houve essa análise, os contribuintes entendem que, ao aplicar a revisão aduaneira, as autoridades fiscais alteram o critério jurídico, cujo efeito, no limite, só poderia ser aplicado para as operações futuras.

Os contribuintes baseiam seu entendimento em artigos do Código Tributário Nacional, os quais impõem limites à atuação da fiscalização e que, pela sua abrangência, podem ser perfeitamente aplicáveis aos casos de revisão aduaneira. Mais especificamente, recorrem ao:

  • artigo 100, que veda a aplicação retroativa de novo critério jurídico;
  • artigo 149, que identifica as situações em que o lançamento pode ser revisto de ofício, destacando-se a situação em que o fato não era conhecido ou não foi provado por ocasião do lançamento anterior – erro de fato; e
  • artigo 24 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), que veda a invalidação de situações jurídicas plenamente constituídas com base em mudança posterior de orientação geral – comum nos cenários de revisão aduaneira, que ocorre após o contribuinte ter realizado inúmeros processos de importação, inclusive com discussões com a fiscalização sobre sua correção.

Esse entendimento, por muito tempo, foi acatado pelo STJ[1] e pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf),[2] cuja jurisprudência estabelecia a impossibilidade de alteração de critério jurídico e a aplicação desse entendimento de forma retroativa aos despachos aduaneiros concluídos. Ou seja, tanto os tribunais administrativos quanto o STJ concordavam que as análises anteriores realizadas pela fiscalização (por exemplo, canal vermelho) confirmavam a correção da importação, razão pela qual não seria mais possível demandar do importador nova alteração da importação e o pagamento das diferenças de tributos.

Apesar disso, essa jurisprudência veio sendo alterada nos últimos anos, culminando com o julgamento do Recurso Especial 1.826.124/SC.

O recurso julgado teve origem em uma ação ajuizada pelo importador contribuinte tramitada no Tribunal Regional da 4ª Região. No acórdão consta que a possibilidade de revisão aduaneira está restrita à hipótese de mercadora importada direcionada para o canal verde – quando a mercadoria é desembaraçada automaticamente, sem qualquer verificação.

Diante da decisão do TRF favorável ao contribuinte, a Fazenda Nacional recorreu e a matéria seguiu para apreciação do STJ.

Para a Primeira Turma do STJ, a legislação que rege a matéria não vincula o direito do fisco de proceder à revisão da regularidade do pagamento dos impostos a determinado tipo de canal de conferência aduaneira ao qual a mercadoria foi submetida.

Esse entendimento alinha-se ao já firmado na Segunda Turma da Corte, no julgamento do Recurso Especial 1.201.845/RJ, no qual ficou decidido que a primeira oportunidade (conferência aduaneira) não ilide a segunda (revisão aduaneira) – que surge após o desembaraço aduaneiro –, na qual o fisco revisitará todos os atos celeremente praticados no primeiro procedimento.

Nesse caso, os ministros adotaram a premissa de que a conferência aduaneira exige celeridade, porque a mercadoria está em depósito por conta do contribuinte e, além disso, sua permanência dificulta as atividades do fisco, que precisa atender aos outros despachos aduaneiros na fila. Assim, é legitimo que a fiscalização possa revisar esses atos praticados com celeridade.

No caso em discussão, não se mencionou a existência de uma conferência aduaneira mais detida, inclusive com a apresentação de laudo técnico ou outros documentos, fiando-se a Primeira Turma apenas na análise de decisões anteriores e na própria legislação.

Contudo, naquele caso em específico, a situação diverge da que se discute no processo analisado pela Primeira Turma mais recentemente. Isso se dá porque, no Recurso Especial 1.201.845/RJ, a discussão diz respeito ao início do prazo decadencial, quando a fiscalização não faz qualquer exigência cinco dias após o término da conferência aduaneira. Ela o faz apenas depois, baseada no fato de que em “exame em seu laboratório de Análises, contestou a classificação atribuída à época pela Recorrente, considerando como correta outra classificação”.

O caso concreto analisado naquela oportunidade, portanto, difere bastante do que ocorre com muitos contribuintes, que, após realizarem um extenso trabalho com a fiscalização aduaneira –canal vermelho – para confirmar a regularidade da classificação fiscal dos seus produtos, são alvo de autuação futura.

Apesar de o julgamento do STJ não ter adotado a sistemática de recursos repetitivos, a decisão tem o potencial de impactar negativamente os processos que seguem em discussão, especialmente na esfera judicial.

Na esfera administrativa, embora atualmente a jurisprudência não seja favorável ao contribuinte, ela foi formulada antes da extinção do voto de qualidade. No âmbito do Carf, o entendimento que predomina, até o momento, é desfavorável aos contribuintes.

Para uma melhor compreensão da situação: no processo 10314.732822/2013-04, julgado pela Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), foi decidido que o desembaraço aduaneiro não representa lançamento ou homologação da fiscalização, na medida em que esta só ocorre com a revisão aduaneira (homologação expressa) ou com o decurso do prazo (homologação tácita). Por essa razão, o desembaraço aduaneiro não estaria revestido de valor jurídico suficiente para ser definido como “critério jurídico”. Entretanto, no caso, foi negado provimento ao recurso por voto de qualidade.

Por outro lado, recentemente, a discussão ganhou um novo capítulo no âmbito do Carf. No julgamento do processo 10909.003996/2007-10, a 1ª Turma da 4ª Câmara da 3ª Seção cancelou uma autuação que visava à cobrança de tributos em decorrência de reclassificação fiscal, sob o argumento de que é indevida a revisão aduaneira no caso de mercadorias desembaraçadas em canal vermelho, quando, por obrigação legal, o auditor fiscal responsável deve confirmar a composição e a classificação fiscal das mercadorias.

O resultado se deu por desempate pró-contribuinte em virtude da extinção do voto de qualidade.

Como o precedente do STJ não é vinculante, para os processos que estão em trâmite no Carf há chances de a jurisprudência ser revertida em favor dos contribuintes.

No entanto, a decisão mostra, mais uma vez, que as cortes nem sempre adotam um mesmo raciocínio, deixando os contribuintes à mercê de decisões discrepantes, sem que haja certeza de como será o desfecho de seu caso, mesmo que confirmado pelas próprias autoridades em momento anterior.

 

[1] REsp 1112702/SP, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 20/10/2009, DJe 06/11/2009 – g.n.

REsp 1079383/SP, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 18/06/2009, DJe 01/07/2009

Ag 918.833/DF, Rel. Min. José Delgado, Primeira Turma, DJ. 11.03.2008

 

[2] Processo nº. 12719.000127/2005-34, Recurso 344.510, Acórdão 3102-00.684, 3ª Seção, 1ª Câmara, 2ª Turma Ordinária, Sessão: 26.05.2010.

Processo nº. 10814.005331/2003-76, Recurso 139.812, Acórdão 3202-00.023, 3ª Seção, 2ª Câmara, 2ª Turma Ordinária, Sessão: 14.08.2009.

Processo nº. 12466.004542/2002-33, Recurso 127.930, Acórdão 301-30.892, 3º Conselho de Contribuintes, 1ª Câmara, Sessão: 01.12.2003