Desde o início de 2022, a indústria de venture capital no Brasil e no mundo vem atravessando um cenário de redução dos recursos disponíveis para o financiamento de rodadas de investimento em startups.

Apesar do aumento constante dos indicadores de recursos investidos nos últimos anos e do extraordinário desempenho em 2021, o novo contexto do setor traz desafios importantes decorrentes, entre outros motivos, do temor de uma recessão econômica pós-pandemia, aumento nas taxas de juros, aumento da inflação e acirramento de disputas geopolíticas ao redor do globo.

Em um cenário de maior escassez como esse, os participantes da indústria de venture capital devem estar bem preparados para enfrentar eventuais reduções nos valuations das startups em futuras rodadas de captação de investimentos (conhecidos como down rounds).

O que significa down round?

O termo down round é utilizado para designar uma rodada de investimento na qual o valor por ação de uma startup é menor que o da rodada anterior. Os fatores que causam essa desvalorização no valuation da startup podem ser os mais diversos. Eles incluem desde a frustração de premissas e métricas estabelecidas na rodada anterior para cálculo da avaliação, como o não atingimento de determinado valor de faturamento mensal, até aspectos macroeconômicos, como os mencionados acima.

Quem serão os mais afetados em caso de down round?

O down round poderá impactar a startup, seus investidores e demais stakeholders de diferentes maneiras, dependendo dos motivos que impuseram a necessidade de redução do valor por ação.

Com relação à própria startup, o down round poderá afetar sua capacidade de conduzir rodadas futuras de captação de recursos, bem como seu poder de atrair e reter talentos, especialmente se o ajuste no valuation decorreu de fatores internos da startup, e não do contexto macroeconômico.

Com relação aos investidores que aportaram recursos na startup em rodadas anteriores, além de eventual diluição caso os mecanismos apropriados não estejam presentes ou não sejam acionados, o down round poderá resultar na necessidade de ajustar as projeções (yield) realizadas pelos fundos de venture capital, o que poderá afetar a capacidade desses fundos de realizar novas captações de recursos.

Os beneficiários de programas de incentivo de longo prazo baseado em ações, como planos de opção de compra de ações (stock option plans), também poderão ser afetados, na medida que a redução do valor por ação da startup poderá acarretar redução da participação acionária que esses beneficiários receberiam no futuro.

Colaboradores-chave também podem ser afetados caso a startup tenha sua reputação de negócio influenciada pelo down round.

Quais as principais consequências de um down round?

O resultado prático de um down round é, geralmente, o acionamento de disposições contratuais estabelecidas nos documentos que regulam as rodadas prévias de investimento na startup.

Em contrapartida ao aporte de recursos que realizam, os fundos de venture capital recebem, na maioria das vezes, ações preferenciais de emissão da startup. A critério exclusivamente do fundo, essas ações podem ser convertidas em ações ordinárias, com base em uma determinada fórmula ou relação de troca.

Como o investimento dos fundos de capital de risco em startups é pautado na proteção e na valorização das ações adquiridas, esses fundos desenvolveram mecanismos contratuais que visam proteger seus investimentos contra eventual desvalorização dessas ações.

Caso novos investimentos sejam realizados em uma startup tomando como base um valor inferior ao da última rodada, a admissão de um novo investidor não só resultará em diluição dos investidores que pagaram preço superior, mas em diluição diferente daquela que poderia ser esperada. Para evitar tal situação, antes de realizar seus investimentos, os fundos de capital de risco negociam com os fundadores da startup uma cláusula contratual antidiluição.

A cláusula de antidiluição

Um mecanismo consagrado de proteção dos fundos de venture capital é a cláusula antidiluição. Seu objetivo é entregar aos antigos investidores (existentes antes da nova rodada de investimento, tais como investidores Série A, por exemplo) novas ações de emissão da startup que assegurem a manutenção do valor do seu investimento, evitando assim os efeitos econômicos do down round.

Existem duas modalidades de mecanismo antidiluição:

  • Full ratchet: a cláusula full ratchet estabelece que o antigo investidor terá o direito a receber, gratuitamente, um certo número de ações necessário para compensar a integralidade da diluição sofrida no down round. Assim, para cada real unidade monetária de desvalorização, o investidor receberá o número de ações equivalente com base no valor por ação do down round, que é inferior ao preço por ação pago pelo antigo investidor. Em razão disso, a cláusula full ratchet é considerada a mais favorável ao antigo investidor da startup e a mais desfavorável para os fundadores e demais acionistas que não gozam da mesma proteção.
  • Weighted average: a cláusula weighted average estabelece que o antigo investidor terá o direito de receber, gratuitamente, um certo número de ações necessário para neutralizar o impacto econômico da antidiluição, mas não oferece proteção integral. O número de ações conferidas será calculado tomando como base a média do valor por ação estabelecido para a rodada do titular do direito antidiluição.

Existem duas formas de aplicação da cláusula weighted average: a forma denominada narrow-based weighted average (NBWA) leva em consideração somente as novas ações que serão emitidas no momento do cálculo, já a forma broad-based weighted average (BBWA) considera o capital social em bases totalmente diluídas (ou seja, computando-se todas as ações que seriam emitidas com base em títulos e acordos vigentes, incluindo bônus de subscrição, opções de compra, etc.).

A modalidade BBWA, portanto, tem efeito menos diluidor para os fundadores e demais stakeholders, já que uma menor quantidade de ações gratuitas deverá ser emitida para o antigo investidor em comparação com a modalidade NBWA.

Algumas startups adotam mecanismos que incentivam, ou até mesmo obrigam, seus investidores a participar de rodadas futuras de investimento com valor por ação inferior. Essas cláusulas são denominadas pay-to-play e estabelecem a substituição das ações preferenciais do antigo investidor por ações do down round e, eventualmente, penalidades, caso o antigo investidor não participe do down round.

Como já foi dito, o acionamento do mecanismo antidiluição tende a gerar impactos negativos para os fundadores, outros investidores que não gozam da mesma proteção antidiluição e, eventualmente, os beneficiários de programas de incentivo de longo prazo baseado em ações, já que não estarão protegidos pela cláusula antidiluição e, consequentemente, suportarão os efeitos dilutivos da rodada down-round sozinhos.

Caso o mecanismo antidiluição seja acionado na última rodada antes de um IPO, o público que adquirir as ações na abertura de capital também participará do impacto da antidiluição. Esse, inclusive, foi um dos motivos que levou a WeWork a desistir do seu IPO em 2021.

Papel dos administradores no down round

A necessidade de realizar um down round será deliberada pela administração da sociedade, tanto no nível da diretoria, geralmente ocupada pelos fundadores do negócio, que têm qualificação técnica para o desenvolvimento da startup, quanto no nível do conselho de administração, geralmente composto tanto pelos fundadores quanto por representantes indicados por investidores.

A prática de venture capital nos Estados Unidos tem demonstrado que a aprovação de down rounds pode ser judicializada devido à existência de possíveis conflitos de interesse no momento da aprovação das rodadas.

Nesse contexto, é importante lembrar que os membros da administração da startup devem agir em observância aos deveres fiduciários estabelecidos pela Lei das S.A. Casos de conflito de interesse judicializados nos Estados Unidos ocorreram em situações nas quais:

  • o administrador é um representante de um fundo de venture capital que está participando no down round;
  • o administrador participou diretamente no down round;
  • o administrador tem uma relação próxima com os participantes do down round; e
  • o administrador recebe benefícios econômicos em razão do down round.

Preparação é fundamental

É extremamente importante que as startups realizem uma análise cuidadosa dos seus negócios e dos impactos que serão causados pelo down round para mapear os possíveis desfechos e evitar, assim, surpresas indesejadas.

A administração deverá também produzir documentos claros e completos, capazes de fundamentar a efetiva necessidade de realizar um down round e comprovar que todas as precauções foram tomadas no processo decisório da startup.

Dessa forma, as startups e outros participantes de indústria de venture capital que estiverem preparados e bem assessorados terão mais tranquilidade para atravessar tempos de agitação econômica como os que se apresentam hoje.