Num país tão contencioso como o Brasil, em que a legislação é pródiga de brechas e que as disputas corporativas costumam ser levadas à Justiça, onde se arrastam por anos e anos, o sistema de arbitragem surgiu como um avanço importante para o ambiente de negócios. Ele trouxe agilidade para a resolução de problemas que travam investimentos. Com a mesma validade que uma sentença judicial, também permitiu às empresas arcarem com custos processuais mais previsíveis do que pelos meios tradicionais. E as partes em disputa ainda podem garantir, na escolha do árbitro, que contarão com um julgador com bom conhecimento da matéria tratada, um fator fora do controle quando a seleção acontece por sorteio de juízes.

Com essas vantagens, em 26 anos desde a promulgação da Lei de Arbitragem, o sistema se consolidou no país e é bastante utilizado para analisar disputas contratuais entre empresas. Uma preocupação, no entanto, tem sido levantada em casos recentes. Alguns processos foram contestados depois da revelação de relações pessoais ou comerciais envolvendo árbitros e equipes de advogados de alguma das partes. Tais informações precisam ficar claras desde o início. Quando surgem apenas depois do processo estar bastante adiantado e rumando para um desfecho, têm o potencial de melar todo o trabalho, ao colocar em dúvida as decisões e jogar contra o real propósito do sistema de arbitragem como substituto de ações judiciais.

O caso mais ilustre envolve também a grande disputa corporativa dos últimos anos no Brasil. Vendida em 2017, a Eldorado Celulose virou motivo de guerra aberta entre a holding J&F, dos irmãos Joesley e Wesley Batista, e a Paper Excellence, do indonésio Jackson Wijaya. O grupo brasileiro se desentendeu com os compradores, durante as etapas de concretização do negócio, ao alegar atrasos nos pagamentos, e desde então tenta manter o controle da empresa de papel e celulose. Já a Paper defende que não vai voltar atrás no contrato assinado e quer assumir a Eldorado.

O contrato previa que eventuais disputas seriam resolvidas por arbitragem, mas o caso se estende em diversas instâncias. Um grande atraso aconteceu quando o grupo dos irmãos Batista buscou invalidar a mediação, usando como argumento uma potencial parcialidade do árbitro Anderson Schreiber. Em 2021, a J&F abriu um inquérito, numa delegacia fluminense, para investigar se Schreiber teria cometido o crime de falsidade ideológica por não ter revelado que dividiu um imóvel e até linhas telefônicas com o escritório de advocacia Stocche Forbes, representante da Paper.

Em outro processo recente, numa arbitragem envolvendo os grupos Sisnergy e Inbraell, foi pedida a impugnação do árbitro Mauricio Almeida Prado. A alegação foi a descoberta de que o árbitro do processo era sócio de um escritório de advocacia onde, na mesma época, atuava um dos proprietários da companhia que fazia assistência técnica para a Sisnergy. A suspeita teria surgido pela proximidade entre ambos, pondo em xeque a parcialidade do árbitro, uma vez que a informação não foi revelada anteriormente. Ao receber pedido de esclarecimentos, em outubro de 2022, o árbitro confirmou a imputação. Além disso, a secretária do tribunal arbitral Larissa Tama­shi­ro, também ligada ao mesmo julgador, já tinha renunciado ao cargo porque havia se casado com um advogado do escritório Mattos Filho, que defende o grupo Sinergy.

Não é possível afirmar se relações como essas ou outras similares influenciariam decisivamente nas decisões tomadas em câmaras de arbitragem profissionais, mas também é inegável que, ao não serem comunicadas já no começo dos trabalhos, consistem em manchas para a credibilidade desses julgamentos —  fundamento no qual eles são baseados. “A confiança das partes é um elemento essencial para o bom julgamento da arbitragem e os árbitros têm de se manter independentes, apesar de terem sido escolhidos pelas partes”, afirma Eliane Carvalho, sócia do escritório Machado Meyer e atuante na área de arbitragem.

A falta de informações claras reveladas no começo do processo tem levado algumas empresas a adotar a estratégia que os advogados estão chamando, jocosamente, de “nulidade de algibeira”. A empresa guarda “no bolso” a informação descoberta sobre relações entre o árbitro e a outra parte para sacar apenas mais tarde se a sentença for desfavorável a ela. Pode ser uma esperteza, mas não muda o essencial: o árbitro precisa se declarar impedido, caso haja alguma promiscuidade nas relações. “No geral, o Brasil é um país que respeita a arbitragem como método de solução de disputa. Mas a nossa cultura é beligerante, sempre trabalhando com o sistema de recursos, e a parte que perde muitas vezes não aceita e vai desafiar o sistema”, afirma Eliane.

Para tratar de assuntos como esses, as câmaras de arbitragem vêm criando alguns mecanismos de controle. O Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá, na qual corre o processo envolvendo os grupos Sisnergy e Inbraell, alega que constituiu um comitê especial independente para julgar os pedidos de impugnações de árbitros, mas que essas requisições são baixas em relação ao número total de arbitragens. “Historicamente, 50% das impugnações são rejeitadas pelos comitês especiais”, informou por meio de nota. De qualquer forma, a melhor estratégia parece ser a prevenção. Por exemplo, para evitar problemas, um candidato a árbitro revelou que a sua neta namorava um estagiário de uma das áreas de um escritório de advocacia que defendia uma das partes. Pode até parecer exagerado, mas, em processos em que a credibilidade é tudo, vale mais pecar pelo excesso do que pela falta de transparência.

(Veja - 06.05.2023)