Por Guilherme de Faria Nicastro

“Certifico que o(a) acórdão/decisão transitou em julgado em 28/08/2020”: sob essa frase foi divulgado que, com o trânsito em julgado do Recurso Extraordinário com Agravo nº 1.250.467 no Supremo Tribunal Federal – STF, estaria sepultado, de uma vez por todas, o caso do Palácio Guanabara, o mais antigo então em curso no judiciário nacional. Contudo, a resposta não é tão singela.


O caso, de remota origem, surgiu com a ação possessória originalmente proposta, em 1895, pela herdeira deposta ao trono do Brasil, a Princesa Imperial Dona Isabel de Bragança, e por seu esposo, o Príncipe Gastão de Orleans, Conde d’Eu, contra a tomada de sua residência – o então Palácio Isabel, hoje Palácio Guanabara – pelos militares republicanos no contexto da consolidação do novo regime. O imóvel fora comprado, em 1865, com o capital conferido pelo Estado brasileiro à Princesa Isabel a título de dote, conforme estabelecia a legislação à época.


Dentre as muitas aventuras que o processo do caso do Palácio Guanabara sofreu nos 125 anos que se seguiram à inicial, a mais marcante, com certeza, foi o desaparecimento de seus autos por cerca de 70 anos no mesmo STF que, agora, em tese, põe fim à odisseia processual. O recente trânsito em julgado, contudo, não liquida a questão. Os 125 anos, a depender dos herdeiros da dinastia deposta, podem se estender um pouco mais.


Voltando um pouco no (longo) histórico do processo, notamos que, contra decisão do Tribunal Regional Federal da 2ª Região – TRF2, em 2008, quando foram interpostos os Recursos Especiais nº 1.149.487/RJ e nº 1.141.490/RJ (julgados em dezembro de 2018 e cujos desdobramentos resultaram no recente trânsito em julgado do ARE nº 1.250.467), também foi interposto Recurso Extraordinário ao STF, cuja admissibilidade foi confirmada, em 2012, pelo Ministro Ricardo Lewandowski, em decisão no âmbito do Agravo de Instrumento n.º 764.855/RJ. Todavia, havendo então o trâmite dos Recursos Especiais, esse Recurso Extraordinário ficou sobrestado, aguardando o final do julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ.


Em tese, esse Recurso Extraordinário contra decisão do TRF2, admitido pelo STF em 2012, se trata de recurso autônomo que independe do trânsito em julgado do ARE 1.250.467. A própria Ministra Rosa Weber lembrou, na qualidade de relatora e em resposta à sua suposta prevenção, alegada pelos herdeiros do casal imperial, que julgavam o recurso interposto contra decisão do STJ e não aquele contra decisão do TRF2, como afirmou no acórdão publicado. Vale mencionar, ainda, que esse Recurso Extraordinário sobrestado somente estaria prejudicado caso a decisão do STJ tivesse sido favorável, o que não ocorreu.


Caso seja levantado o sobrestamento, o resultado a ser eventualmente proferido pelo STF, em eventual julgamento desse Recurso Extraordinário original, já é esperado, visto que substancialmente é muito semelhante ao que ora transitou em julgado. A questão constitucional alegada pela Família Imperial depende da premissa de direito privado, ou seja, se o domínio e a posse do imóvel eram realmente da Princesa Imperial do Brasil e do Conde d’Eu em 1889.


O STJ, no julgamento dos Recursos Especiais nº 1.149.487/RJ e nº 1.141.490/RJ, deu “palavra final” quanto às características do domínio e da posse do bem disputado. A decisão de dezembro de 2018 aferrou-se à tese de que o arcabouço jurídico, no qual a dotação da Princesa Imperial do Brasil se baseava, conferira apenas direito de habitação ao casal, que teria cessado com o exílio da Família Imperial e a morte de seus titulares, sendo esse um direito real personalíssimo. Ainda, entendeu que a condição resolutiva do pacto antenupcial da Princesa Isabel, que teria gerado a reversão do dote ao Estado, o fim de sua sucessão, se referia não à sucessão civil, mas, sim à sucessão dinástica, que teria acabado com o ocaso da monarquia.


Não me delongarei, mas discordo dessa posição. O STJ, infelizmente, aplicou conceitos modernos a institutos jurídicos antigos. O direito privado no Brasil nos finais do século XIX não é o mesmo do direito privado do século XXI. Institutos relevantes ao caso, como o regime sucessório dos morgados e o próprio regime dotal, já não mais existem no ordenamento brasileiro e o apontado direito real de habitação nem mencionado era nas Ordenações do Reino, que não tratavam de direito real sobre coisa alheia e eram a base do direito privado aplicável em território nacional.


O tal direito de habitação estava presente, contudo, apenas na matriz romana, cujas caraterísticas divergem do atual instituto trazido pelos Códigos Civis de 1916 e de 2002, bem como das caraterísticas do dote instituído pelo Estado.


Ademais, o STJ aplicou conceitos políticos a institutos privados: a sucessão de um bem imóvel, no direito privado, não pode ser confundida como a sucessão do trono, no direito público. Por fim, fato irrefutável, é o de que a escritura de compra e venda do Palácio Isabel, lavrada em cartório, fora assinada por procurador em nome do Conde d’Eu, sem participação do Estado brasileiro. À época, sob a vigência das Ordenações do Reino, era esse o instrumento competente para transmitir o domínio de um bem imóvel – não havia, como atualmente há, registros gerais de imóveis, matrículas etc.[1]


Em suma, partindo da posição contrária, de que a propriedade do Palácio Isabel, em 1889, era do casal dotado, a Princesa Isabel e o Conde d’Eu, a manutenção do Governo Estadual do Rio de Janeiro em sua posse só tem uma razão: política.


São compreensíveis as razões que levaram o governo republicano a tomar o Palácio: era impossível para a consolidação do novo regime manter a Família Imperial presente em território nacional. Mesmo que de forma ficta, por meio de suas propriedades, a oposição sempre presente na capital federal da sombra do passado imperial era um risco à segurança do novo regime, tomado por convulsões sociais. Essa foi a razão do exílio político mais longo da história nacional e do confisco do Palácio Isabel.


Havia um interesse público (do Estado com relação a si mesmo) na tomada desse bem. Contudo, o advento da República não implodiu toda a ordem jurídica brasileira. A revolução de 1889, conquanto tivesse realizado profundas alterações no direto público, estabelecendo um novo sistema e uma nova forma de governo, manteve o direito privado intocado. Foi uma revolução política, cujos efeitos se restringiram a essa esfera. A garantia à propriedade privada e a segurança dos contratos e aos direitos adquiridos continuaram as mesmas.


A regra nesse caso é clara, a interferência estatal na propriedade privada é causa para indenização, pois a garantia à propriedade se convola em garantia ao valor da propriedade em caso de desapropriação. Ora, a Família Imperial foi exilada e perdeu seus direitos políticos, mas nunca perdeu a garantia que o direito privado lhe conferia. Lembremos, ainda, que quaisquer que fossem as razões políticas, essas teriam desaparecido quando houve a reintegração dos Príncipes do Brasil à plenitude de seus direitos (políticos e civis) com o fim do banimento, em 1920.


Por mais que o STF entenda que, de fato, o caso do Palácio Guanabara transitou em julgado, e que esse trânsito em julgado prejudica o Recurso Extraordinário interposto em 2008, contra decisão do TRF2, haveria, ainda, uma última alternativa aos herdeiros da Princesa Imperial do Brasil, com um sólido precedente internacional, para tentar reaver seus direitos.


Se realmente estivermos diante de um caso próprio de justiça de transição, no qual a tomada do Palácio Guanabara teve motivação puramente política em decorrência da transição do regime monárquico para o republicano, faltando indenização pelo Estado, caracterizando, portanto, o confisco do imóvel, essa medida estatal configuraria uma afronta ao direito fundamental de garantia à propriedade privada.


Esse direito humano à propriedade privada é sagrado pelo artigo 21 da Convenção Americana de Direitos Humanos, o Pacto de San José da Costa Rica, o qual o Brasil internaliza. Por ser um Estado-parte desse tratado internacional, o Brasil se submete à autoridade da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgãos competentes para conhecer de tais assuntos. Em favor da posição da Família Imperial, a condição para poder apresentar petição à Comissão Interamericana é a de que tenham sido interpostos e esgotados os recursos da jurisdição interna – o que aconteceria no trânsito em julgado do Recurso Extraordinário sobrestado e não no presente trânsito em julgado do ARE 1.250.467.


Um caso quase idêntico desponta na jurisprudência internacional. Após esgotados os recursos de jurisdição interna, o Rei deposto da Grécia, Constantino II, e suas irmãs apresentaram petição à Corte Europeia de Direitos Humanos, buscando indenização pelas propriedades confiscadas pela República Helênica na transição política, do regime monárquico para o republicano, que lá ocorreu na década de 1970.


Vale notar que as condições para apresentação de recursos à Corte Europeia de Direitos Humanos e a substância dos direitos fundamentais garantidos pelos protocolos da Convenção Europeia de Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, senão idênticos, são muito semelhantes àqueles garantidos pela nossa Convenção Americana de Direitos Humanos. Em 2000, a Corte Europeia deu ganho de causa à Família Real Grega em razão da desproporcionalidade da interferência estatal nas propriedades régias, uma vez que essas teriam sido expropriadas por um interesse público legítimo (a consolidação do regime republicano) sem a contrapartida da garantia ao valor da propriedade aos proprietários originais, estabelecendo, assim, a necessidade de indenização aos dinastas em exílio.


Se o STF considerará prejudicado ou não o Recurso Extraordinário interposto em 2008 contra a decisão do TFR2 diante do recente trânsito em julgado do ARE 1.250.467 ou, ainda, se a Família Imperial irá de fato optar por levar o caso à jurisdição internacional, isso só o tempo poderá dizer. Contudo, em um caso que já fez aniversário de século e um quarto, o prazo para apresentação de petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos é bem mais curto: seis meses, a partir da data em que o presumido prejudicado em seus direitos tenha sido notificado da decisão definitiva. De toda forma, o caso do Palácio Guanabara (ainda) não chegou ao seu fim.

 



[1] De forma bem mais aprofundada, os pontos quanto ao domínio do Palácio Guanabara são analisados em recente artigo publicado: NICASTRO, Guilherme de Faria et SIMÃO, José Fernando. O domínio do Palácio Guanabara. Uma análise do processo mais longo do Judiciário brasileiro in RJLB – Revista Jurídica Luso-Brasileira, n. 4, ano 6 (2020), pp. 1335-1390, disponível em: https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2020/4/2020_04_1335_1390.pdf>


Guilherme De Faria Nicastro – Advogado no escritório Machado Meyer Advogados, bacharel em Direito com formação complementar em Relações Internacionais pela Escola de Direito de São Paulo da FGV (2017). Autor do estudo “O direito de propriedade na transição política: uma análise do ‘Caso do Palácio Guanabara’”.

(JOTA - 15/09/2020)