Daniel Bittencourt Guariento e Ricardo Maffeis

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Nos últimos meses, o aplicativo de mensagens Telegram vem sendo apontado como a mais nova plataforma de distribuição em massa de fake news, bem como de ser uma espécie de "rede sem lei"1, que se recusa a atender as solicitações das autoridades judiciais brasileiras, em especial do TSE, que está realizando um trabalho preventivo2 junto aos principais aplicativos e redes sociais com vistas a evitar que se repita no pleito de 2022 o verdadeiro festival de fake news que marcou as eleições brasileiras de 20183, à semelhança do que ocorrera dois anos antes na disputa presidencial estadunidense.

Curiosamente, o Telegram, aplicativo criado por russos e atualmente sediado nos Emirados Árabes Unidos - e que hoje se encontra ameaçado de encerramento das atividades no país - teve seus principais momentos de expansão no Brasil justamente nos períodos em que seu maior concorrente, o WhatsApp, enfrentou problemas com a Justiça brasileira, sofrendo seguidas ordens de bloqueio em decorrência de alegado descumprimento de decisões judiciais4. Posteriormente, o aplicativo acabou se tornando famoso com a divulgação das conversas trocadas entre membros do Ministério Público Federal de Curitiba e entre eles e o então juiz federal Sérgio Moro, no que ficou conhecido como "vaza-jato", em associação à operação Lava-Jato, por eles conduzida.

Porém, a situação enfrentada atualmente pelo Telegram difere substancialmente das ordens que tiraram o WhatsApp do ar por algumas horas anos atrás e culminaram no questionamento de sua legalidade - e da proporcionalidade da medida - perante o Supremo Tribunal Federal5. Em tais casos, o que estava em jogo era o descumprimento de decisões criminais específicas, que exigiam acesso a conteúdo de conversas trocadas por meio do aplicativo de forma criptografada. Além disso, segundo consta, a empresa responsável pelo WhatsApp participou dos processos em questão, apresentando justificativas técnicas e/ou jurídicas sobre o motivo das recusas.

Outro ponto importante é que, embora empresas estrangeiras por vezes argumentem em juízo que suas filiais brasileiras funcionam somente para venda de publicidade digital - justificativa quase sempre rechaçada pelo Judiciário - elas possuem representantes no país e endereços onde são regularmente citadas e intimadas, constituem advogados e apresentam defesa, raramente se furtando de comparecer aos tribunais. Sem embargo, claro, de poderem discordar de ordens judiciais, recorrer e até descumpri-las, sujeitas às penalidades decorrentes do descumprimento.

Telegram, contudo, não possui endereço ou representante no Brasil e, segundo informado pelo próprio TSE, não respondeu a nenhum questionamento daquela corte, nem mesmo ao convite formulado pelo ministro Roberto Barroso para que fossem avaliadas medidas a serem tomadas durante o período eleitoral6. O tema deve ser debatido pelos ministros do TSE neste início de ano, uma vez que o tribunal eleitoral tem função dúplice, não apenas julga as ações eleitorais, mas tem atuação administrativa de regulamentação do pleito.

A discussão sobre a possibilidade de bloqueio e proibição de funcionamento do aplicativo não é simples, ainda que não possa ser considerada novidade pelo Telegram, que já foi banido de ao menos onze países7.

Por um lado, o Marco Civil da Internet tem a liberdade de expressão como seu fundamento, princípio e objetivo (arts. 2º, caput, 3º, I e 4º, II); por outro, apresenta como sanções aos provedores de conexão ou de aplicações a suspensão temporária e até mesmo a proibição do exercício das atividades referentes a operações envolvendo dados pessoais ou "comunicações", exigindo que as empresas que prestem tais serviços respeitem a legislação brasileira, ainda que sediadas no exterior, "desde que pelo menos um dos terminais esteja localizado no Brasil" ou "que oferte serviço ao público brasileiro" (arts. 11, caput e §§ 1º e 2º e 12, III e IV, do Marco Civil).

Há quem defenda ser necessária a aprovação de uma lei regulamentando critérios e procedimento próprios para que o Judiciário possa vir a proibir o funcionamento de um aplicativo no território nacional. Para outros, o bloqueio, embora considerado uma medida drástica, é possível: (i) tecnicamente (com a remoção do aplicativo das lojas Apple Store Google Play ou o bloqueio a partir da infraestrutura dos provedores de conexão, como realizado nos casos envolvendo o WhatsApp); e (ii) juridicamente, uma vez que existe previsão legal.

Sem dúvida, eventual proibição de funcionamento não atingirá apenas os responsáveis pela propagação de fake news ou por outros ilícitos cometidos no aplicativo, mas todos que o utilizam (estima-se que o Telegram esteja presente em mais de 50% dos celulares no país), prejudicando usuários que terão que migrar suas comunicações para outros serviços e, numa perspectiva mais ampla, a própria liberdade de comunicação. Porém, a desproporcionalidade verificada nos casos criminais envolvendo o WhatsApp não é tão acentuada na discussão relativa ao Telegram, já que a empresa não se preocupa sequer em responder os chamados das autoridades brasileiras8, tornando ineficazes medidas menos drásticas que poderiam ser aplicadas.

Do que adiantaria, por exemplo, a fixação de uma multa diária que não teria como ser cobrada? O efeito poderia ser o oposto do pretendido: empresas aqui estabelecidas, percebendo que outra que optou por não ter representantes no país escapa de qualquer punição, teriam um incentivo para fechar seus escritórios brasileiros e, assim, escapar de problemas judiciais.

Por fim, mas não menos importante, deve ser levado em conta que o período eleitoral é de poucos meses, o que torna ainda mais difícil aguardar eventual colaboração por parte de uma empresa estrangeira que já demonstrou não se preocupar com as denúncias de ilícitos ocorridos em seu aplicativo. Mantida a postura, o TSE precisa ser ágil em defesa da lisura das eleições e da democracia.

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1 Vide reportagem da Folha de S.Paulo de 09/10/2021 (para assinantes).

2 Vide reportagem da BandNews de 22/01/2022. - Disponível aqui

3 Vide reportagem do Poder360 de 28/10/2021. - Disponível aqui

4 Sobre as ordens de bloqueio do WhatsApp, confira reportagem do G1 de 19/07/2016. - Disponível aqui

5 ADPF 403, relator o ministro Edson Fachin e ADI nº 5.527, relatora a ministra Rosa Weber, ambas atualmente com vista ao ministro Alexandre de Moraes. Confira em Migalhas de 28/05/2020. - Disponível aqui

6 Vide reportagem do jornal O Tempo de 23/01/2022. - Disponível aqui

7 Vide reportagem da Exame de 20/01/2022. - Disponível aqui

8 De acordo com reportagem do UOL de 02/02/2020, os criadores do Telegram somente atendem uma ordem judicial, de qualquer país, se houver confirmação de que a pessoa é suspeita de terrorismo. Qualquer outro pedido é considerado pela empresa como restrição à liberdade de expressão. - Disponível aqui