Os fundos patrimoniais, também conhecidos como endowments ou fundos filantrópicos, foram recentemente regulamentados pela Medida Provisória nº 851, de 10 de setembro de 2018.

Tais fundos são conjuntos de ativos de natureza privada instituídos, geridos e administrados por organização gestora de fundo patrimonial com o intuito de constituir fonte de recurso de longo prazo para as instituições apoiadas ou as instituições titulares dos fundos. Como regra geral, apenas os rendimentos das doações são aplicados nos projetos. O fundo serve como fonte regular e estável de recursos para as instituições que têm como finalidade o desenvolvimento da educação, ciência, tecnologia, pesquisa e inovação, cultura, saúde, meio ambiente, assistência social e desporto. Por ora, essas instituições podem ser públicas ou privadas sem fins lucrativos.

A regulamentação delimitou as áreas de atuação das instituições apoiadas e deixou de fora, por exemplo, a de direitos humanos. Agentes envolvidos no processo legislativo da MP sugerem a vinculação das áreas de atuação conforme o rol mais amplo do artigo 3º da Lei nº 9.790, de 23 de março de 1999 (Lei das OSCIPs).

Ainda assim, a MP trouxe importantes avanços para o incentivo de doações no país por meio do aprimoramento da governança corporativa da organização gestora dos fundos patrimoniais, prevendo separação de responsabilidades entre quem gere o fundo e a instituição apoiada. Ainda no âmbito da governança corporativa, a organização gestora do fundo deve prever no seu estatuto social, entre outras questões:
 

  1. quais são as instituições apoiadas, sendo necessário quórum qualificado para alterá-las;
  2. a obrigatoriedade de instalação de conselho de administração (CA) e de conselho fiscal (CF) e, para fundos patrimoniais que tenham patrimônio superior a R$ 5 milhões, de conselho de investimentos (CI), bem como as regras de composição, funcionamento, competências, forma de eleição ou de indicação de seus membros e a possibilidade de doadores comporem tais órgãos;
  3. a forma de aprovação de políticas de gestão, investimento, resgate e aplicação dos recursos do fundo patrimonial; e
  4. vedação de destinação de recursos à finalidade distinta da prevista no estatuto e de outorga de garantias a terceiros sobre os bens que integram o fundo patrimonial.
     

A regulamentação obriga ainda os fundos patrimoniais a adotar mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo a denúncia de irregularidades e a elaboração de códigos de ética e de conduta para dirigentes e funcionários. Organizações gestoras de fundos patrimoniais com patrimônio líquido superior a R$ 20 milhões devem ter suas demonstrações financeiras submetidas à auditoria independente.

A MP também prevê que o CA deve ser composto por, no mínimo, dois conselheiros independentes e, no máximo, sete membros por um mandato de dois anos, permitida a recondução. A MP prevê que compete ao CA deliberar sobre alterações ao estatuto social, de forma contrária ao Código Civil, que considera essa competência uma exclusividade da assembleia geral. Outra medida de transparência importante para o investidor é a previsão de que pessoas físicas ou representantes de pessoas jurídicas doadoras que representem mais de 10% da composição total do fundo poderão participar das reuniões deliberativas do CA como ouvintes.

O CI, a ser indicado pelo CA, tem como competência recomendar ao CA a política de investimentos e as regras de resgate e utilização dos recursos, coordenar e supervisionar a atuação dos responsáveis pela gestão dos recursos e elaborar relatório anual sobre a gestão dos recursos do fundo. Outro importante avanço da MP para a profissionalização da gestão dos fundos patrimoniais é a possibilidade da contratação, pela organização gestora, de pessoa jurídica gestora de recursos registrada perante a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), sendo admitido o pagamento de taxa de performance.

O CF deverá ser composto por três membros indicados pelo CA, sendo vedada a indicação de membros que já tenham composto o CA. Os membros do CA, CF e CI poderão ser remunerados em valor limitado à maior remuneração do dirigente máximo da instituição apoiada.

Apesar dos muitos aspectos positivos da governança corporativa, há um engessamento e uma burocratização da estrutura que podem elevar os custos e inibir as doações por grandes fortunas. Vale considerar que há espaço para simplificação da estrutura de governança.

É importante a figura facultativa da organização executora, uma instituição sem fins lucrativos ou entidade internacional reconhecida e representada no país, que é contratada pela organização gestora para auxiliar e coordenar a instituição apoiada no desenvolvimento dos projetos e programas.

A nova regra regula a relação entre a instituição apoiada e a organização gestora, exigindo a celebração de instrumento de parceria e termo de execução de programas, os quais devem estabelecer, respectivamente, (i) o vínculo de cooperação entre elas e determinar a finalidade de interesse público a ser apoiada; e (ii) como serão despendidos os recursos.

A MP foi publicada dias após o incêndio no Museu Nacional do Brasil, no Rio de Janeiro, e, com o intuito de amenizar a tragédia, incluiu permissão para que um percentual maior das doações - não apenas seus rendimentos - seja aplicado na recuperação ou preservação de obras e patrimônio e em intervenções emergenciais para manutenção dos serviços prestados pela instituição apoiada.

Uma das principais inovações da MP é a equiparação das doações financeiras para organizações gestoras que apoiem projetos culturais às doações feitas a projeto cultural para fins do disposto no art. 3º da Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991 (Lei Rouanet), sendo possível a dedução de imposto de renda de até 6% para pessoas físicas e de até 4% para pessoas jurídicas. A limitação de tal benefício fiscal apenas para projetos culturais pode ter efeito perverso ao inibir investimentos nas demais áreas abrangidas pelos fundos patrimoniais.

Vale destacar que, de acordo com a Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995, e a Medida Provisória nº 2.158-35, de 24 de agosto de 2001, a pessoa jurídica doadora tributada pelo lucro real poderá deduzir o valor da doação até o limite de 2% do lucro operacional, no caso de doações para organizações da sociedade civil (OSCs). A extensão de tal benefício aos fundos patrimoniais possibilitaria a busca de novas fontes potenciais de recursos para tais organizações que, em sua maioria, atuam nas áreas sociais supracitadas, delimitadas pela própria MP.

Observa-se ainda que, no Estado de São Paulo, o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos (ITCMD) é de responsabilidade do donatário, aplicando-se uma alíquota de 4% (a alíquota máxima estabelecida pelo Senado Federal é de 8%) sobre o valor doado. As entidades cujos objetivos sociais são promover os direitos humanos, a cultura ou o meio ambiente contam com isenção desse imposto. Nos termos do art. 4º, inciso IV, do Decreto nº 46.655/02, o ITCMD não incide na transmissão de bens e direitos ao patrimônio das instituições de educação e de assistência social que gozam de imunidade somente com relação aos bens vinculados às finalidades essenciais, o que não inclui bens destinados à utilização como fonte de renda.[1]

Considerando que o ITCMD seria aplicável na doação ao fundo patrimonial e, na maioria dos casos, na doação do fundo patrimonial à instituição apoiada, discute-se eventual isenção do ITCMD na doação às OSC e aos fundos patrimoniais. De acordo com estudo do pesquisador Rafael Oliva, da FGV, e com o relatório Sustentabilidade econômica das organizações da sociedade civil – Desafios do ambiente jurídico brasileiro atual, da FGV Direito SP, os recursos arrecadados com ITCMD – inclusive heranças e doações - correspondem a 1% da receita corrente líquida. Segregando-se o valor arrecadado de ITCMD pelo fato gerador do imposto, é possível verificar que 52% provêm de doações, sendo que apenas 1% do total arrecadado, ou 0,0168% da receita corrente líquida do estado, refere-se a pessoas jurídicas, sem separar desse montante as doações para OSCs.

A MP já conta com 114 sugestões de emenda. Para organizar o advocacy do tema, o Instituto para Desenvolvimento do Investimento Social (IDIS) lançou a Coalização pelos Fundos Patrimoniais Filantrópicos, da qual o Machado Meyer é signatário. Três dos principais intuitos da iniciativa são (i) ampliar a área de atuação das instituições apoiadas (art. 3º da Lei das OSCIPs), (ii) estender o benefício fiscal da MP para todas as causas; e (iii) diminuir as restrições de governança para organizações gestoras, de tal modo que as grandes fortunas não sejam desencorajadas a doar.


[1] SPALDING, Erika. Os Fundos Patrimoniais Endowment no Brasil. São Paulo, 2016.