Na esteira das ações para aplacar os efeitos da crise de covid-19, o governo federal resolveu suspender o ajuste anual de preços dos medicamentos por 60 dias. Foi a Medida Provisória nº 933/20, publicada em 31 de maio, que implementou a suspensão, postergando o ajuste anual dos preços dos medicamentos para a partir de 1° junho.

No Brasil, os medicamentos têm valor tabelado. A Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) prevê critérios para determinar esse valor e divulga aos consumidores tabela com os preços máximos a serem praticados pelas farmácias. O referido órgão interministerial responsável pela regulação econômica do mercado de medicamentos no Brasil também está incumbido de determinar o ajuste dos preços, que ocorre todos os anos a partir de 1° de abril. A fórmula para cálculo do ajuste anual atualmente considera a variação da inflação pelo Índice de Preços para o Consumidor Amplo (IPCA), características de mercado, variação dos custos dos insumos e ganhos de produtividade das fabricantes de medicamentos.

O setor farmacêutico é um dos exemplos do uso de mecanismos regulatórios pelo Estado para controlar preços da cadeia produtiva e da comercialização. Do ponto de vista econômico, a regulação estatal dessa indústria visa a estimular a oferta de medicamentos, permitir a fiscalização do comércio e a aplicação de sanções diante dos descumprimentos da regulação econômica. Os efeitos mediatos são a proteção dos consumidores desses produtos, que são relevantes para a saúde pública, e a promoção da assistência farmacêutica à população.

A essencialidade do mercado de medicamentos e o contexto excepcional em que o país se encontra talvez façam com que não sejam suscitados debates sobre a constitucionalidade e a legitimidade do controle de preços nesse caso particular - como o foram e são em outros contextos e setores econômicos. No caso dos medicamentos, o governo agiu preventivamente face ao mecanismo regulatório automático já existente em decorrência da Lei nº 10.742/03. Por outro lado, os mesmos motivos fáticos podem justificar o estabelecimento de preços máximos em setores nos quais, até o momento, vigora o regime de liberdade de preços.

Implementar uma política regulatória de preços em regime de tabelamento, congelamento ou alguma forma de reajuste vinculado, em determinadas circunstâncias e em relação a setores específicos, pode constituir importante instrumento para rechaçar surtos inflacionários e proteger os consumidores contra oportunismos de agentes econômicos (mormente em situações como a de iminente desabastecimento). Como exemplo, vê-se que, atualmente, o mercado acenou com o aumento do preço de itens como álcool em gel, máscaras e até do gás de cozinha, diante da oferta insuficiente face à demanda pujante e crescente. Nessas hipóteses, a instituição de uma política de preços poderia atender aos pressupostos constitucionais que legitimam esse tipo de regulação econômica pelo Estado, a par dos setores da mais alta relevância para o enfrentamento da crise atual, como é o caso dos medicamentos, em que descabem maiores elucubrações.

O controle de preços no mercado decorre do mister constitucional atribuído ao Estado para que atue como “agente normativo e regulador da atividade econômica” (art. 174 da Constituição Federal). Essa forma de intervenção estatal sobre a e na economia contraria alguns ditames fundamentais da ordem econômica idealizada pelo constituinte de 1988, entre eles a livre iniciativa. Por isso, o controle de preços consiste em medida extrema e que apenas se justifica se escoimada em circunstâncias de real necessidade, sob pena de violar princípios constitucionais. Evidentemente, como é próprio do regime jurídico administrativo, a excepcionalidade da medida impõe um ônus mais intenso quanto à justificativa dos motivos da medida, sendo que essa necessidade de justificar com maior rigor se coloca como um verdadeiro limite material.

Por óbvio, o controle de preços também encontra um limite formal: não prescinde de autorização legislativa para o seu exercício. De acordo com o art. 174 da Constituição Federal, a regulação econômica só pode ser exercida pela Administração Pública se houver uma lei que estabeleça seus quadrantes e, por conseguinte, se a regulação se situar nesses limites legais.

O cumprimento dessa competência pelo Poder Executivo não pode descurar da liberdade de iniciativa ou da concorrência empresarial, valores tão caros ao nosso sistema jurídico. No entanto, como mencionamos, é inegável que tais princípios não têm extensão absoluta e podem ter aplicação mitigada frente à tutela de outros princípios fundantes da ordem econômica, cujos pilares são, além da livre iniciativa, a valorização do trabalho humano e os objetivos de assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. Ademais, são princípios aplicáveis à ordem econômica os interesses do consumidor, a busca do pleno emprego e a defesa do meio ambiente (art. 170 da Constituição Federal). A tutela fundamentada desses bens jurídicos justifica, portanto, a legitimidade do Estado em parametrizar as relações econômicas e impor restrições à liberdade empresarial.

Há de se observar uma proporcionalidade, sendo que no caso dos medicamentos, por exemplo, não poderia o presidente da República ter determinado o congelamento definitivo do preço – como não o fez. Isso porque, como dissemos, a incidência de princípios fundamentais (de certa forma opostos) na ordem econômica leva a uma amarração maior entre as medidas de contenção do mercado e os motivos que as ensejam. Com efeito, o controle de preços deve ser extraordinário e transitório. Nesses termos, a doutrina e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) sinalizam um consenso quanto à admissibilidade do controle de preços e seus limites.

O STF tem considerado juridicamente viável a regulação de preços diante de justificativas de interesse público. Exemplos disso são as oportunidades em que a corte superior acatou motivações amparadas no interesse público associado à preservação do direito à saúde (ADI 2435-RJ, julgada em 2003); proteção do direito à educação (ADI 319-DF, julgada em 1993); e promoção da cultura e do lazer (ADI 1950-SP, julgada em 2005 e ADI 2163-RJ, julgada em 2018). Nessas ocasiões, o STF julgou constitucional o controle de preços em detrimento da liberdade de iniciativa dos agentes econômicos. A fundamentação assentou-se em razões de direito público tidas como legitimadoras da intervenção do Estado na economia.

As premissas do STF nesses precedentes são que o Estado brasileiro não se subordina ao modelo liberal clássico e que é permeado por questões sociais e de interesse público que respaldam a intervenção estatal indireta por meio do controle de preços. Além disso, parece ser uma percepção geral entre os julgadores que o controle de preços prescinde da caracterização de abuso do poder econômico, dominação dos mercados, eliminação da concorrência ou aumento arbitrário de lucro.

Por outro lado, o STF já decidiu que não é lícita a intervenção estatal no domínio econômico fundamentada em mera discricionariedade quanto à aderência da medida às necessidades públicas observadas no contexto econômico, pois atuação dessa sorte pode infringir liberdades públicas, bem como causar prejuízos injustos a particulares. Em caso emblemático, o STF entendeu aplicável a responsabilidade objetiva do Estado, condenando a União a indenizar setor sucroalcooleiro, em razão de dano causado ao setor produtivo decorrente da fixação dos preços dos produtos do setor em valores inferiores ao levantamento de custos realizados pela Fundação Getulio Vargas (cf. Repercussão Geral no Recurso Extraordinário com Agravo - RG REA 884325 – DF, julgado em 2015). Nesse caso, o STF entendeu que houve violação do valor constitucional da livre iniciativa.

O tema está atualmente na pauta do STF, mas há uma tendência mais conciliadora. As ADIs 5956, 5959 e 5964 têm por objeto a discussão da constitucionalidade do estabelecimento de preço mínimo do frete no transporte rodoviário de cargas previsto pela Lei nº 13.703/18, originada pela Medida Provisória nº 832/18, além da Resolução 5.820 da ANTT. Em 2018, o ministro Luiz Fux, relator do processo, deferiu pedido cautelar suspendendo a aplicação de multas pelo descumprimento dos pisos previstos na Lei nº 13.703/18. Essa decisão teve por fundamentos os impactos econômicos nocivos do estabelecimento do preço mínimo do frete, além de acatar as seguintes alegações da parte autora de que o preço mínimo representa “afronta à livre iniciativa, princípio fundamental que conforma o Estado Democrático de Direito (art. 1º, IV, e 170, caput), à livre concorrência (art. 170, IV), à proteção do consumidor (art. 170, V), à previsão de intervenção estatal na atividade privada de maneira apenas indicativa (art. 174) e a todas as demais normas da Carta da República que configuram o capitalismo como sistema econômico brasileiro”. Em fevereiro de 2019, o ministro Fux suspendeu todos os processos que tratam da MP 832/18 e reestabeleceu a aplicação de multa pelo não atendimento ao preço mínimo do frete. Antes do julgamento conjunto das ADIs, adiado para abril de 2020, o ministro coordenou audiência de conciliação que contou com representantes dos caminhoneiros e empresários membros da Associação do Transporte Rodoviário de Cargas do Brasil, da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e da Confederação Nacional da Indústria (CNI), sinalizando a possibilidade de composição, a ser determinada em futuras novas rodadas de negociação entre os mesmos atores.

Resta claro que, ante às circunstâncias específicas do mercado e da economia nacional e a relevância da atividade regulada, é preciso encontrar um ponto ótimo entre (i) os direitos individuais e o respeito à liberdade dos agentes econômicos; e (ii) a proteção ao interesse público e os preceitos constitucionais que privilegiam os direitos sociais e dos consumidores.

As adversidades observadas no cenário atual tornam óbvio e urgente que a Administração Pública lance mão da regulação econômica para determinados produtos e serviços. Além de permitir uma gestão da atual crise, o controle de preços pode impedir a prática de preços abusivos para itens essenciais, além de resguardar os consumidores e, principalmente, os mais vulneráveis do ponto de vista econômico. No entanto, é fundamental que, nesses tempos e nos futuros, a intervenção estatal por meio do controle de preços esteja restrita – e seja proporcional – à real necessidade, para que se resguardem concomitantemente todos os princípios e direitos envolvidos.