Responsabilidade, ética, capacidade de escuta, de valorização do outro, visão estratégica, inovação e amplo conhecimento jurídico. A lista inclui algumas das qualidades comuns a pessoas que atuam em cargos de liderança tradicional no mundo jurídico. Adicionemos a elas fatores como a luta desigual para ser bem-sucedido, o permanente estado de alerta causado pela maior cobrança relacionada aos vieses inconscientes, a consciência de ser uma exceção e o papel de inspirar e transformar a realidade. Teremos, com razoável margem de acerto, uma liderança negra.

Embora tais diferenças não devessem existir 133 anos após o Brasil ser o último país a abolir a escravatura formalmente nas Américas, essas têm sido características comuns a pessoas negras em cargos de liderança no Judiciário e nos grandes escritórios de advocacia brasileiros.

De acordo com Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 56% da população do país se autodeclara parda e preta. Apesar desse percentual, em toda a história do Supremo Tribunal Federal (STF), por exemplo, apenas três negros integraram a corte: os ministros Joaquim Barbosa, entre 2003 e 2014; Hermegenildo de Barros, nomeado em 1919 e aposentado em 1937; e Pedro Lessa, ministro entre 1907 e 1921. Quanto às mulheres negras, até o momento nenhuma integrou a Suprema Corte – reflexo da nossa cultura permeada pelo racismo e sexismo muitas vezes não reconhecidos.

Já nos tribunais superiores – Superior Tribunal de Justiça (STJ), Tribunal Superior do Trabalho (TST), Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e Superior Tribunal Militar (STM) –, apenas 1,3% se declaram pretos e 7,6%, pardos, segundo o Censo Judiciário realizado em 2018 pelo Conselho Nacional de Justiça. No Ministério Público, os negros são apenas 2% de acordo com o IBGE.

Em meio à baixa representatividade de lideranças negras, encontramos, excepcionalmente, profissionais comprometidos com a mudança do cenário, como a promotora de justiça Lívia Sant’Anna Vaz, que atua no Ministério Público do Estado da Bahia e foi reconhecida como uma das cem pessoas de ascendência africana mais influentes do mundo pelo prêmio MIPAD – Most Influential People Afro Descendent – Law & Justice Edition.

Para Lívia, embora representem 56% da população, as pessoas negras no Brasil não estão representadas nas instituições públicas e privadas e nos espaços de poder e decisão, e isso tem impacto direto na forma como o sistema de Justiça oferece seus serviços aos cidadãos. Segundo a jurista disse em entrevista concedida às autoras do artigo, “a luta é desigual, porque os corpos negros causam estranhamento ainda hoje, em espaços de poder, sobretudo o corpo da mulher negra, instrumento que fala antes mesmo de abrir a boca”. Ela acredita que, somente por meio de alianças entre instituições, pode haver um fortalecimento que permita ultrapassar essa condição solitária e de exceção em espaços de liderança.

O advogado e doutor em direito pela Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, Adilson José Moreira, autor de “Racismo recreativo”, afirma em entrevista ao portal LexLatin que “o mundo jurídico, o corpo docente brasileiro é formado por pessoas brancas. Hoje, 80% dos professores brasileiros de direito são homens brancos heterossexuais de classe alta. Essas pessoas nunca sofreram discriminação na vida, portanto, pelo contrário, são sistematicamente privilegiadas pelo racismo.”

Publicado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2018, o último relatório Perfil Sociodemográfico dos Magistrados Brasileiros, que busca identificar quem são os magistrados brasileiros em termos de características demográficas, sociais e profissionais, aponta que apenas 14% dos magistrados são da cor preta, sendo 64% da cor branca e os demais classificados como pardos.

No estado da Bahia, unidade federal com uma das maiores populações negras do país, apenas 5% dos magistrados são da cor preta, o que reforça a constatação de que o Judiciário, sendo um instrumento para o combate às injustiças, pode e deve ampliar o espaço de representatividade quando se trata de afrodescendência em cargos de liderança.

Na iniciativa privada, ao analisarmos um trabalho publicado pelo IBGE em 2019, temos o seguinte recorte: “A despeito de a população ocupada preta ou parda ser superior à de cor ou raça branca, a proporção em cargos gerenciais mostra significativa maioria de pessoas brancas – 68,6% contra 29,9%, em 2018. Tal sub-representatividade das pessoas ocupadas pretas ou pardas nesse quesito ocorre nas cinco Grandes Regiões do País. Embora nas Regiões Norte e Nordeste haja maior proporção de pessoas pretas ou pardas do que brancas em cargos gerenciais (respectivamente 61,1% e 56,3%), tais percentuais são inferiores aos observados na população ocupada em geral, em 2018 (respectivamente, 78,0% e 74,1%), caracterizando a sub-representatividade também nessas regiões.”

Apesar de os negros serem maioria nas universidades públicas (50,3%), os dados do IBGE mostram que ocupam apenas 30% dos cargos de liderança no país.

Com relação aos advogados, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) atualmente tem mais de 1,2 milhão de inscritos. No entanto não existem dados sobre o percentual de pardos e pretos, pois não houve um censo para análise racial até o momento.

Demonstrando a crescente importância do debate acerca do racismo institucional, no entanto, em 2020 foi realizada pela primeira vez a I Conferência Nacional de Promoção da Igualdade.

Em linha com o diagnóstico racial feito nos escritórios de advocacia, o Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert) realizou uma pesquisa em 2018 que evidenciou a existência de menos de 1% de advogados negros nos grandes escritórios brasileiros. O levantamento foi realizado em parceria com a Aliança Jurídica pela Equidade Racial e analisou nove bancas de São Paulo.

Já tivemos avanços desde então, mas uma leitura coerente dos dados nos fornece a perspectiva de que políticas afirmativas, embora há muito divulgadas como essenciais para o desenvolvimento de uma sociedade que busque seriamente reparação histórica em relação à população negra, ainda são incipientes e há muito a aperfeiçoar.

Não se trata apenas de reparação e justiça: o desenvolvimento do Brasil pode ser proporcional à sua riqueza de diversidade.

Pesquisa realizada pela McKinsey, firma global de consultoria de gestão, revelou que as empresas com maior diversidade étnica em suas equipes executivas têm 33% mais propensão à rentabilidade.

Para que possamos atingir esses objetivos que em tudo se revelam benéficos, basta estimular um fator que em algum momento perpassa a vida de todos os líderes, independentemente de serem negros ou brancos: a oportunidade.

É nesse espaço de criação de oportunidades que alguns escritórios, a exemplo do Machado Meyer, têm se destacado ao implementar políticas internas de cunho educativo direcionadas a minorias. A iniciativa visa a impulsionar carreiras de pessoas negras por meio de mentorias, incentivos educacionais, como cursos de idiomas e graduação, apoio a projetos como o Incluir Direito, além de estimular a admissão de colaboradores negros em cargos de direção e profissionais brancos engajados em ações antirracistas. Isso possibilita não só ampliar o número de pessoas negras no quadro funcional como reafirma a importância da representatividade dessas pessoas em posições de liderança.

As desigualdades racial e social escancaradas no último ano em decorrência da pandemia de covid-19 e os debates sobre racismo tornam ainda mais premente a adoção de ações para solucionar essa situação histórico-cultural.

Um dos caminhos para alcançarmos um mundo jurídico mais responsável em relação a essa questão é o planejamento para ampliar o número de lideranças negras no mundo corporativo.

A pergunta que todos nós nos fazemos é: como podemos acelerar a expansão do contingente de lideranças negras? A resposta, como já apontado no artigo Racismo estrutural é: “precisamos agir!”. São muitas as ações que precisam ser tomadas, entre elas:

  • Letramento racial: necessidade de desconstruir formas de pensar e agir que foram naturalizadas – como a lógica da perspectiva eurocêntrica orientada pelo privilégio branco –, de implementar ações para combater o racismo estrutural presente em toda a sociedade brasileira e de coibir qualquer tipo ou tentativa de violência física, psicológica e intimidatória.
  • Debates sobre igualdade racial para que mais negros possam relatar suas dificuldades e ajudar a aumentar a conscientização dos colaboradores sobre o tema.
  • Protagonismo antirracista das empresas: comprometimento das empresas e colaboradores com a igualdade racial por meio da adoção de políticas e práticas antirracistas como:
    • Aceleração de programas de entrada por meio de treinamentos e capacitações específicas para proporcionar o acolhimento interno e a sensibilização de toda a organização
    • Aumento do número de negros em posições e salários dignos nas empresas para terem condições de educação para si e os seus
    • Formação de profissionais negros para que estejam mais preparados e as empresas possam mantê-los em todos os níveis e setores do seu quadro de colaboradores, oferecendo aperfeiçoamento profissional, programas de mentorias e experiências internacionais
    • Contratação de negros para a alta gerência das organizações
    • Estímulo à indicação de profissionais negros
    • Inserção no mercado de trabalho de profissionais negros já qualificados e não absorvidos pelas grandes empresas
    • Participação em fóruns que dão diretrizes norteadoras para avançar no tema da equidade racial
    • Promoção de uma cultura na qual os colaboradores ajudem, incentivem e impulsionem seus colegas negros
    • Adesão a programas que visam a mudanças raciais, como a Aliança Jurídica pela Equidade Racial, o Mover[1] e o projeto Incluir Direito, iniciativa do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa) para contribuir na redução das desigualdades e discriminação, fomentando a inclusão de estudantes negros no universo jurídico por meio de convênio com escritórios apoiadores e universidades

As iniciativas acima não estão mais isoladas e têm sido implementadas por diversas empresas, como aponta o livro A empresa antirracista: como CEOs e altas lideranças estão agindo para incluir negros e negras nas grandes corporações.[2]

A trajetória de lideranças negras, além de quebrar estereótipos e vieses inconscientes raciais, também abre espaço e incentiva negros a alcançar seus objetivos e diminuir as desigualdades.

A intenção deste artigo não é apenas apontar as causas da desigualdade ou evidenciar a condição de minoria da raça negra, ainda que essa discussão tenha a máxima importância e se faça necessária em muitas camadas da sociedade brasileira carentes de informação em vários aspectos. O artigo, escrito por três advogadas negras em posição de exceção em um escritório que respeita nosso lugar de fala e se dispõe a propagar nossas vozes, se propõe a demonstrar que mudanças urgem e é imprescindível que aqueles em posição de privilégio eduquem seu olhar para observar que competências há em todos os seres humanos, independentemente da cor da pele.

O escritório Machado Meyer faz parte da Aliança Jurídica pela Equidade Racial e reforça, por meio do ID.Afro, o Comitê de Diversidade e Inclusão e todos os seus membros, o compromisso com iniciativas antirracistas.

 


[1] O movimento pretende trabalhar em três pilares: liderança, emprego e capacitação e conscientização. No primeiro, as empresas signatárias se comprometem a criar um total de 10 mil novas posições para pessoas negras em cargos de liderança (como supervisores, coordenadores, gerentes e diretores) até 2030. No pilar de emprego e capacitação, as ações planejadas visam a gerar oportunidade para três milhões de pessoas, por meio da oferta de cursos e rede de relacionamento com empreendedores negros. No último pilar, o movimento se propõe a ser uma ferramenta de apoio na conscientização em relação ao racismo. A iniciativa pretende realizar campanhas publicitárias sobre o tema [...] – Veja mais em https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2021/06/08/mover-empresas-se-unem-em-movimento-por-equidade-racial.htm?cmpid=copiaecola 

[2] PESTANA, Maurício. A empresa antirracista: como CEOs e altas lideranças estão agindo para incluir negros e negras nas grandes corporações. 3ª ed. Rio de Janeiro: Agir, 2021

REFERÊNCIAS

“Metade da população, negros são somente 1% dos advogados dos grandes escritórios”, Conjur, 12/6/2020, https://www.conjur.com.br/2020-jun-12/negros-sao-somente-advogados-grandes-escritorios

“Com a capital mais negra do país, Bahia ganha aplicativo gratuito para registro de denúncias contra racismo e intolerância religiosa”, G1, 19/11/2018, https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2018/11/19/com-a-capital-mais-negra-do-pais-bahia-ganha-aplicativo-gratuito-para-registro-de-denuncias-contra-racismo-e-intolerancia-religiosa.ghtml 

“Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil”, IBGE, Estudos e Pesquisas - Informação Demográfica e Socioeconômica, nº 41, 2019, https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf

“O topo tem cor: negros ainda são minoria em cargos de liderança da indústria alimentícia”, O joio e o trigo, 29/10/20, https://ojoioeotrigo.com.br/2020/10/o-topo-tem-cor-negros-ainda-sao-minoria-em-cargos-de-lideranca-da-industria-alimenticia/ 

“Pesquisa Mulheres Negras na Liderança”, Inquietaria, 29/04/21, https://inquietaria.99jobs.com/pesquisa-mulheres-negras-na-lideran%C3%A7a-3e6dfb5cca95

“Ambev, Carrefour e outras gigantes criam projeto de R$ 45 mi contra racismo”, UOL, 08/06/21 https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2021/06/08/mover-empresas-se-unem-em-movimento-por-equidade-racial.htm?cmpid=copiaecola 

“Lançamento da Aliança Jurídica pela Equidade Racial”, FGV, 21/03/19,  https://direitosp.fgv.br/evento/lancamento-alianca-juridica-pela-equidade-racial

“Dia da Consciência Negra: o setor de advocacia é inclusivo?”, Folha OAB, 20/11/20, https://folhadirigida.com.br/oab/noticias/politica-e-mercado-oab/dia-consciencia-negra-setor-advocacia-inclusivo 

“I Conferência Nacional de Promoção da Igualdade, OAB Nacional, 19 e 20/11/21” https://centraleventos.oab.org.br/event/291/i-conferencia-nacional-de-promocao-da-igualdade

“Video da I Conferência Nacional de Promoção da Igualdade, OAB Nacional, 19 e 20/11/21”

https://www.youtube.com/watch?v=88PhOVT80Ls

“IBGE: 64% dos desempregados são negros e informalidade alcança 47%”, Brasil de fato, 13/11/19, https://www.brasildefato.com.br/2019/11/13/ibge-64-dos-desempregados-sao-negros-e-informalidade-alcanca-47

“Pesquisa do CNJ: quantos juízes negros? Quantas mulheres?”, Agência CNJ de Notícias, 3/5/18,

https://www.cnj.jus.br/pesquisa-do-cnj-quantos-juizes-negros-quantas-mulheres/

 “Letramento racial: um desafio para todos nós, Portal Geledés, 28/10/17, https://www.geledes.org.br/letramento-racial-um-desafio-para-todos-nos-por-neide-de-almeida/

“Juristas negras e a luta por espaços no mundo do Direito”, Folha de Pernambuco, 09/07/20, https://www.folhape.com.br/noticias/juristas-negras-e-a-luta-por-espacos-no-mundo-do-direito/146536/

“Perfil Sociodemográfico dos Magistrados Brasileiros”, CNJ, 2018, https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2011/02/5d6083ecf7b311a56eb12a6d9b79c625.pdf