A partir da edição do novo Código de Processo Civil (CPC) e especialmente pela positivação de normas fundamentais do processo civil, não há espaço para que a técnica da jurisprudência defensiva[1] continue a ser aplicada pelos tribunais superiores – sobretudo o Superior Tribunal de Justiça (STJ) – como forma de inadmitir recursos, impedindo que um processo chegue à solução justa e efetiva do mérito da causa.

A jurisprudência defensiva consiste na prática adotada pelos tribunais superiores, em especial o STJ, de não conhecer recursos ao supervalorizar os requisitos formais de admissibilidade.[2] Muitas vezes, essa medida prejudica a garantia constitucional do acesso à Justiça, entendida como o direito à solução justa e efetiva do mérito da causa.

A nova sistemática processual inaugurada pelo CPC privilegia, em seus artigos e , o princípio da primazia do julgamento de mérito, que reforça a garantia constitucional do acesso à Justiça.[3]

Apesar do esforço e do avanço normativo do CPC, a técnica da jurisprudência defensiva persiste no dia a dia dos tribunais, com a aplicação de súmulas de jurisprudência que impõem decisões descabidas de inadmissão de recursos.

Entre essas súmulas destaca-se a 182 do STJ, a qual preconiza que “é inviável o agravo do art. 545 do CPC que deixa de atacar especificamente os fundamentos da decisão agravada”. Editada ainda sob a vigência do antigo CPC, essa súmula continua sendo aplicada pelo STJ. Em julgamento de embargos ocorrido em 2019, a 4ª Tuma do STJ reafirmou a “necessidade de que a parte, em agravo interno interposto contra decisão monocrática do relator proferida em agravo em recurso especial, impugne todos os fundamentos da decisão agravada”.[4]

De acordo com a Súmula 182, o recorrente tem o ônus processual de impugnar todos os fundamentos da decisão agravada, o que não comporta qualquer exceção. Com base nesse entendimento, a Corte Especial do STJ, no julgamento do EAREsp 746.775/PR, em 30/11/2018, decidiu que o agravo em recurso especial deve obrigatoriamente impugnar todos os fundamentos da decisão de inadmissão recursal, mesmo que os fundamentos sejam autônomos.

No entanto, após esse julgado, não houve consenso entre os ministros sobre qual seria o destino de eventual agravo interno interposto contra a decisão monocrática de inadmissão proferida no agravo em recurso especial.

Diante disso, formaram-se duas correntes: a primeira entendia que a “parte poderia, em sede de agravo interno, deixar de impugnar um fundamento autônomo da decisão agravada, de modo que a matéria apenas seria abarcada pela preclusão”;[5] para a segunda corrente, a mesma orientação aplicada ao agravo em recurso especial deveria ser adotada no agravo interno.[6]

Em 20/10/2021, a Corte Especial do STJ se debruçou novamente sobre o tema, ao julgar o REsp 1.424.404/SP, e reconheceu que "deve prevalecer a jurisprudência desta Corte no sentido de que a ausência de impugnação, no agravo interno, de capítulo autônomo e/ou independente da decisão monocrática do relator — proferida ao apreciar recurso especial ou agravo em recurso especial — apenas acarreta a preclusão da matéria não impugnada, não atraindo a incidência da Súmula 182 do STJ".[7] Adotou-se, portanto, o entendimento da primeira corrente.

Conforme a Corte Especial do STJ, “a decisão que não admite o Recurso Especial tem como escopo exclusivo a apreciação dos pressupostos de admissibilidade recursal. Seu dispositivo é único”. [8] Ou seja, ainda que a fundamentação permita concluir pela presença de uma ou de várias causas impeditivas do julgamento do mérito não existem capítulos autônomos, razão pela qual é necessária a impugnação de todos os seus fundamentos.

Por outro lado, concluiu-se que, “quando o relator decide monocraticamente o Recurso Especial ou o seu Agravo, ele o faz examinando cada fundamento isoladamente, fazendo surgir capítulos autônomos, o que possibilita a parte a liberdade para definir quais fundamentos serão impugnados, de modo que a omissão acarreta tão somente a preclusão da matéria, mas não impede seu conhecimento por aplicação da Súmula n. 182/STJ”.[9]

A conclusão do julgado é um alento para aqueles que defendem um menor formalismo e esperam, cada vez mais, decisões do STJ que corroborem a garantia constitucional ao acesso à Justiça.

 

[1] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Restrições ilegítimas ao conhecimento dos recursos. In: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de Direito Processual. Nona Série. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 280-281. O renomado jurista asseverava, ainda, que: “é inevitável o travo de insatisfação deixado por decisões de não conhecimento; elas lembram refeições em que, após os aperitivos e os hors d'oeuvre, se despedissem os convidados sem o anunciado prato principal” (In BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Restrições ilegítimas ao conhecimento dos recursos. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 386, ano 102, 2006, p. 155).

De acordo com o jurista, trata-se da técnica da “supervalorização de requisitos formais para inviabilizar a apreciação do mérito recursal”, o que não se deve tolerar a partir do novo código de caráter essencialmente instrumental, moderno e preocupado em afastar formalismos excessivos e descomedidos.

[2] Parte da doutrina adota posicionamento mais severo, a exemplo de José Rogério Cruz e Tucci, que destaca: “É certo que determinados óbices à admissão dos recursos aos tribunais superiores são fruto de construção engenhosa, que guardam certa coerência hermenêutica com as regras processuais em vigor. Todavia, há, em significativo número, outras barreiras que mais se identificam à 'perversidade pretoriana', as quais não têm qualquer razão plausível para subsistirem no âmbito de um ordenamento jurídico civilizado, comprometido com a efetividade da tutela jurisdicional. (...) Ressalte-se que esta orientação, como ocorre na generalidade das vezes nas quais vem aplicada a denominada jurisprudência defensiva, evidencia que o direito material do recorrente não tem a menor relevância para o tribunal. Entendo, com o devido respeito, que tal posicionamento representa inarredável denegação de jurisdição. Realmente, no que toca ao STJ – o autodenominado 'Tribunal da Cidadania' –, a despeito de alguma flexibilização observada nos últimos tempos, continua ele se valendo de questiúnculas e estratagemas, no afã de afastar o julgamento do mérito do recurso, em detrimento de sua missão constitucional em prol da unidade da aplicação do direito federal” (CRUZ E TUCCI, José Rogério. Um basta à perversidade da jurisprudência defensiva. São Paulo, 2014. Disponível em: www.conjur.com.br/2014-jun-24/basta-perversidade-jurisprudencia-defensiva. Acesso em: 3/2/2022.

[3] THEODORO JUNIOR, Humberto. Código de Processo Civil Anotado, 22ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 8).

[4] Ver notícia veiculada no site do STJ sobre a aplicação da súmula, disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/Em-agravo-interno--parte-deve-impugnar-todos-os-fundamentos-da-decisao-agravada-.aspx. Acesso em: 17/12/2021.

[5] Migalhas, “Vitória da advocacia e derrota da jurisprudência defensiva no STJ!”. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/353646/vitoria-da-advocacia-e-derrota-da-jurisprudencia-defensiva-no-stj

[6] FELÍCIO, Gabriel Bartolomeu e ADAMEK, Daniela Pina von. Vitória da advocacia e derrota da jurisprudência defensiva no STJ! Site Migalhas. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/353646/vitoria-da-advocacia-e-derrota-da-jurisprudencia-defensiva-no-stj

[7] Ver decisão em inteiro teor no site Jusbrasil. Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/1317326990/embargos-de-divergencia-em-recurso-especial-eresp-1424404-sp-2013-0230570-3/inteiro-teor-1317327025

[8] idem

[9] Idem