Na década de 1970, como ensina Antônio Pereira Gaio Júnior, surgiram as primeiras diretivas europeias de proteção dos consumidores, com referência expressa a cinco categorias de direitos, que deveriam ser os valores nucleares da legislação comunitária consumerista: “a) direito à proteção da saúde e da segurança; b) direito à proteção dos direitos econômicos; c) direito à reparação de danos; d) direito à informação e à educação; e) direito à representação”.

Em 26 de fevereiro de 2001, os presidentes do Parlamento Europeu, da Comissão Europeia e do Conselho Europeu assinaram a Carta de Direitos Fundamentais, também denominada Tratado de Nice, com o objetivo de reformar aspectos institucionais do funcionamento da Comunidade Europeia até então previstos em outros instrumentos, como os Tratados de Roma e de Maastricht.

Entre as disposições do Tratado de Nice destaca-se o Título XIV, artigo 153,[1] que dispõe sobre a defesa dos consumidores. A partir desse dispositivo, todas as políticas e ações do bloco europeu passaram a ser definidas e executadas tomando-se em conta as exigências da proteção aos consumidores.

Cabe ao bloco europeu ainda promover e assegurar nível de defesa elevado dos consumidores, por exemplo, contribuindo para a promoção do “direito à informação, à educação e à organização para defesa dos seus interesses”.[2] Destaca-se o disposto no art. 38, o qual preconiza que as políticas do bloco europeu devem assegurar aos consumidores elevado nível de defesa dos seus interesses.

Sobre a arbitragem de consumo, a Recomendação da Comissão Europeia 98/257/CE disciplina os princípios aplicáveis às entidades que respondem pela resolução extrajudicial de litígios de consumo, visando a confiança mútua entre os consumidores e os organismos extrajudiciais nos estados-membros. Todo esse movimento culminou, em 2005, na criação da Rede de Centros Europeus do Consumidor (ECC – Net/Rede CEC), com a missão de facilitar o acesso aos meios de resolução alternativa de conflitos de consumo, especialmente transfronteiriços.

Ainda sobre o tema, não se pode esquecer da contribuição do Livro Verde,[3] especialmente em suas quatro vertentes: informação jurídica, proteção jurídica, representação de interesses coletivos e organização para defesa de direitos, nos termos das Recomendações 98/257/CE e 2001/301/CE.

Outras normas também são importantes para o fortalecimento do uso dos métodos alternativos de resolução de conflitos na resolução de litígios de consumo. Por exemplo:

  • a Diretiva 2008/52/CE, relativa a aspectos da mediação em matéria civil e comercial;
  • a Diretiva 2000/31/CE, referente aos aspectos legais da sociedade de informação, em especial o comércio eletrônico; e
  • a Diretiva 2008/48/CE, que trata dos contratos de consumo.

Recentemente, considerando o recrudescimento do comércio transfronteiriço e digital de bens e serviços de consumo, foi editada a Diretiva 2013/11/EU, referente à resolução alternativa de litígio (Diretiva RAL).

Com a Diretiva RAL, buscou-se preservar a tutela do consumidor de forma eficiente e completa, pois as entidades RAL deveriam garantir o respeito aos princípios da independência, imparcialidade, isenção, transparência, equidade, celeridade, acessibilidade, confidencialidade, privacidade, entre outros.

Histórico do tema em Portugal

No sistema instituído em Portugal, objeto de análise deste artigo, destacam-se entre os meios de resolução alternativa de litígios de consumo, o Decreto-Lei 243/84, editado em 17 de junho e complementado pela Lei 31/86, de 29 de agosto. No texto, o legislador promoveu a criação de meios alternativos de resolução de conflitos, com destaque para o uso da arbitragem institucionalizada (Decreto-Lei 425/86, de 27 de dezembro).

Na prática, o surgimento efetivo dos centros de arbitragem em Portugal remonta ao ano de 1989, quando foi fundado o primeiro Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo, em Lisboa. O objetivo era permitir solução eficiente e célere de conflitos de consumo,[4] com base em um projeto-piloto de acesso à Justiça levado a cabo em parceria com a Comissão Europeia.

Já na década de 1990, surgiram os centros de arbitragem da cidade do Porto (Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto – Cicap) e de Coimbra (Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo do Distrito de Coimbra – CACCDC).[5]

Posteriormente, em 31 de julho de 1996, foi publicada a Lei 24/96, que estabelece o regime legal aplicável à defesa dos consumidores e prevê, no artigo 14, item 1, que incumbe “aos órgãos e departamentos da Administração Pública promover a criação e apoiar centros de arbitragem com o objectivo de dirimir os conflitos de consumo”.

Em 2015, por meio da Lei 144/15, o parlamento lusitano transpôs para a ordem jurídica nacional a Diretiva 2013/11/UE já mencionada neste artigo.

Destaca-se na lei o artigo 2º, que regulamenta o objeto e trata do uso de resolução extrajudicial de litígios nacionais e transfronteiriços promovidos por uma entidade RAL, quando esses litígios sejam iniciados por um consumidor contra um fornecedor de bens ou prestador de serviços e respeitem a obrigações contratuais resultantes de contratos de compra e venda ou de prestação de serviços celebrados entre fornecedor de bens ou prestador de serviços estabelecidos e consumidores residentes em Portugal e na União Europeia.

A rede de arbitragem de consumo tem por objetivo assegurar a coordenação, a utilização de sistemas comuns e a harmonização dos procedimentos seguidos nas atividades de informação, mediação, conciliação e arbitragem de litígios de consumo, pelos centros de arbitragem de conflitos de consumo que agrega (artigo 4° – Lei 144/15).

Por fim, destaca-se a Lei 63/19, que procede à quinta alteração à Lei 24/96, de 31 de julho, alterada pela Lei 85/98, de 16 de dezembro, pelo Decreto-Lei 67/03, de 8 de abril, pela Lei 10/13, de 28 de janeiro, e pela Lei 47/14, de 28 de julho, que estabelece o regime legal aplicável à defesa dos consumidores, determinando a sujeição dos conflitos de consumo de reduzido valor econômico à arbitragem necessária ou mediação, quando seja essa a opção do consumidor, e introduz o dever de informação do direito a constituir advogado ou solicitador.

Características do sistema português

As entidades responsáveis por tais procedimentos devem assegurar que as partes não têm de recorrer a um advogado e podem-se fazer acompanhar ou representar por terceiros em qualquer fase do procedimento.[6]

Segundo estudo publicado pela União Europeia, um processo judicial em primeira instância em Portugal dura de dez meses a 3 anos e meio, diversamente do que ocorre com os procedimentos de arbitragem de consumo, com prazo máximo de 90 dias (podendo ser prorrogado).

As entidades de RAL devem assegurar ainda que os procedimentos são gratuitos ou estão disponíveis para os consumidores mediante o pagamento de uma taxa de valor reduzido, o que aumenta o interesse por esse método de resolução de litígios (artigo 10, item 3, Lei 144/15), que acaba tendo custos menores que os inerentes à instauração de um procedimento judicial.

Sobre a transparência, as entidades de RAL devem assegurar a divulgação nos seus sites de informação clara e facilmente inteligível, especialmente sobre: contatos da entidade, inscrição na lista oficial de entidades de RAL, natureza e âmbito de litígios possíveis de serem resolvidos, entre outras obrigações (artigo 9°, Lei 144/15). Também devem prestar tais informações a qualquer pessoa que o solicite, por escrito ou por qualquer outro meio que considerem adequado.

Nesse compasso, as entidades de RAL asseguram que as pessoas singulares e suas colaboradoras, condutoras do procedimento arbitral, tenham comprovadamente conhecimentos e qualificações no domínio da resolução de litígios de consumo, além de conhecimentos adequados de Direito. Elas devem ministrar formação às pessoas singulares responsáveis pelo procedimento de RAL, além de lhes facultar os conhecimentos necessários à obtenção de habilitações para o exercício das respectivas funções, promovendo as diligências necessárias para a atualização de conhecimentos (artigo 7º, Lei 144/15).

As entidades de RAL devem assegurar também a eficácia e a fácil acessibilidade dos procedimentos, tanto on-line quanto por meios convencionais, para ambas as partes, independentemente do local onde se encontrem.

Um ponto de especial atenção, relacionado ao princípio da liberdade, diz respeito ao caráter vinculativo ou não vinculativo da decisão resultante dos procedimentos de RAL. Na prática, deve-se assegurar que a solução imposta só seja vinculativa para as partes se elas tiverem sido previamente informadas do seu caráter vinculativo e o tiverem expressamente aceitado.

Aqui vale destacar uma diferença entre a Diretiva 2013/11/EU e a sua norma incorporadora lusitana, a Lei 144/15, pois a primeira previu expressamente que os estados-membros devem assegurar que, nos procedimentos de RAL destinados a resolver o litígio por imposição de uma solução, tal solução só seja vinculativa para as partes se elas tiverem sido previamente informadas do seu caráter e o tiverem expressamente aceitado.

Caso as regras nacionais prevejam que as soluções são vinculativas para os comerciantes, não é exigida a aceitação específica do comerciante.

Uma importante posição da doutrina nesse sentido é a do professor espanhol Pablo Cortés, para quem essa solução da diretiva europeia foi pensada para evitar que as “as cláusulas de arbitragem apareçam de modo inesperado, talvez incluídas nos termos e condições de uma empresa que opera pela Internet, e que possam ter como efeito submeter o consumidor a uma arbitragem on-line”.[7]

O artigo 14 da Lei 144/15 impõe ainda algumas restrições à arbitragem, considerando a tutela máxima do consumidor, questão sobre a qual vale destacar o comentário do professor Jorge Liz Pegado: “reiterou-se, assim, a necessidade de inclusão do princípio da legalidade no âmbito da Directiva, garantindo-se que as decisões das entidades RAL não privem os consumidores do nível de proteção garantido pela lei aplicável”.[8]

A partir dessa breve análise, percebe-se que a modernização e a profissionalização das câmaras e tribunais de arbitragem em Portugal são exigências cada vez maiores, através de rigorosos critérios técnicos não só de aferição de idoneidade dos árbitros e pessoas singulares condutoras do procedimento, mas também da imparcialidade e credibilidade do sistema como um todo.

Para tanto, busca-se restringir, por exemplo, o alcance do procedimento arbitral em matérias relevantes relativas aos bens jurídicos de maior grandeza do consumidor, que só poderiam ser discutidas no Judiciário.

O procedimento arbitral de consumo deverá, portanto, garantir a aferição do consentimento sem vícios do consumidor para se submeter a esse método alternativo de solução de litígios, tudo em prol da máxima tutela de seus direitos, com a garantia mínima de qualidade que se espera das entidades responsáveis pela condução desses procedimentos.

 


[1] EUROPA. Tratado de Nice. “TÍTULO XIV DEFESA DOS CONSUMIDORES - Artigo 153.° - 1. A fim de promover os interesses dos consumidores e assegurar um elevado nível de defesa destes, a Comunidade contribuirá para a proteção da saúde, da segurança e dos interesses econômicos dos consumidores, bem como para a promoção do seu direito à informação, à educação e à organização para a defesa dos seus interesses. 2. As exigências em matéria de defesa dos consumidores serão tomadas em conta na definição e execução das demais políticas e ações da Comunidade. 3. A Comunidade contribuirá para a realização dos objetivos a que se refere o nº 1 através de: a) Medidas adotadas em aplicação do artigo 95º no âmbito da realização do mercado interno; b) Medidas de apoio, complemento e acompanhamento da política seguida pelos Estados-Membros. 4. O Conselho, deliberando nos termos do artigo 251º e após consulta ao Comitê Econômico e Social, adotará as medidas previstas na alínea b) do nº 3. 5. As medidas adotadas nos termos do nº 4 não obstam a que os Estados-Membros mantenham ou introduzam medidas de proteção mais estritas. Essas medidas devem ser compatíveis com o presente Tratado e serão notificadas à Comissão”.

[2] Parcela da doutrina considera o “embrião” da proteção aos consumidores no bloco europeu o disposto no art. 39, alínea “e”, do Tratado de Roma, celebrado em 27.3.1957. O trecho trata da política agrícola comum, para, entre outras questões, “assegurar preços razoáveis nas vendas aos consumidores.” (JÚNIOR GAIO PEREIRA. Antônio. A proteção ao consumidor como um elemento propulsor da efetividade integracionista: União Europeia e o seu modelo protetivo consumerista. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_2006/RDCons_n.107.07.PDF. Acesso em: 15 de abril de 2022.

[3] O Livro Verde sobre o Acesso dos Consumidores à Justiça e a Resolução de Litígios no mercado único europeu foi uma iniciativa da Comissão Europeia, de 1993, com o objetivo de abordar de forma descritiva e comparativa os processos aplicáveis aos litígios de consumo nos países do bloco europeu, além de traçar diretrizes e vertentes para a proteção do consumidor. Nesse sentido, vide estudo publicado pelo Observatório do Endividamento dos Consumidores da Universidade de Coimbra, PT. Disponível em: https://oec.ces.uc.pt/biblioteca/pdf/pdf_estudos_realizados/resolucao_alternativa.pdf. Acesso em: 20.7.2022.

[4] Sobre a criação de meios alternativos de resolução de conflitos no período, ver o Decreto-Lei 243/84 e a Lei 31/86. Sobre a criação do Centro de Arbitragem de Lisboa, ver informações disponíveis no site do órgão. Disponível em: https://sm.vectweb.pt/media/73/file/COMUNICADO-25%C2%BAAniv.pdf. Acesso em: 20 de abril de 2022.

[5] As informações de todos os centros existentes e respectivas normas podem ser consultadas em: https://www.arbitragemdeconsumo.org. Acesso em: 20 de abril de 2022.

[6] Conforme pesquisa realizada pelo governo do Reino Unido, os custos do RAL estão entre 1/8 e 1/3 do custo que se teria para ajuizar a demanda em tribunal judicial. Cf: Government response to the consultation on implementing the Alternative Dispute Resolution and the Online Dispute Resolution Regulation, Department for Business, Innovation & Skills. 2014. Disponível em: https://www.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/377522/bis-14-1122-alternative-dispute-resolution-for-consumer.pdf. Acesso em: 20 de abril de 2022.

[7]CORTÉS, Pablo. “Un análisis comparativo de los mecanismos de resolución alternativa de litigios de consumo”. In Revista para el Análise del Derecho. Barcelona. v.4, pp. 8 e ss. =

[8] PEGADO, Jorge Liz. “A resolução alternativa de litígios: do mito à cultura da ilusão”. Revista Portuguesa de Direito de Coimbra. Coimbra, n. 75, pp.45-83, 2013. Acesso em: 25.7.2022.