Embora a Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc) tenha, por lei, o dever e a função de fiscalizar as entidades fechadas de previdência complementar (EFPCs), o Tribunal de Contas da União (TCU) tem exercido essa função sob a alegação de apurar possíveis danos ao erário gerados pelo mau emprego de recursos públicos nessas entidades.[1] Tal atuação estaria de acordo com o dever constitucional[2] do órgão de fiscalizar a aplicação de recursos provenientes de entes públicos se não houvesse um equívoco nesse raciocínio.

As EFPCs, ou fundos de pensão, surgiram para complementar a aposentadoria dos seus associados em relação ao Regime Geral de Previdência Social. Elas administram as contribuições tanto do patrocinador/instituidor (que pode ser um ente público) quanto de seus participantes/assistidos, formando uma reserva matemática destina ao pagamento dos benefícios previstos no regulamento do plano de benefícios. Para supervisionar, fiscalizar e autorizar a criação dessas entidades e as alterações dos regulamentos dos planos de benefícios, conforme requerem as leis complementares nº 108 e 109/2001, foi criada a Previc, que tem natureza de autarquia especial, nos termos da lei que a instituiu (12.154/09).

A atuação das EFPCs se baseia, dessa forma, nos procedimentos regulados pela Previc, nos termos estabelecidos pelo Conselho Nacional de Previdência Complementar (CNPC). Por desempenharem papel essencial para a sobrevivência de milhões de aposentados brasileiros, esses fundos de pensão operam em um setor extremamente regulado. Eles devem executar suas atividades em conformidade com a legislação previdenciária e com a regulamentação do órgão fiscalizador, em um contexto de rígido controle exercido pela Previc.

Na argumentação utilizada para justificar a fiscalização das EFPCs pelo TCU há um importante erro de premissa, que precisa ser esclarecido: a contribuição do patrocinador ente público torna-se um recurso administrado pela EFPC, cuja natureza é de direito privado, para o pagamento de benefícios previdenciários. Tudo isso é feito nos termos do regulamento do plano de benefícios, que nada mais é que um contrato também de natureza privada.

O raciocínio por trás do controle do TCU nas EFPCs se desmantela diante dessa falha lógica. E mesmo que ela não fosse considerada, a expertise da Previc para avaliar questões pertinentes à previdência complementar deveria ser respeitada. Sua estrutura básica engloba a Procuradoria Federal e diversas coordenações gerais, com capacidade técnica e conhecimento do setor que nenhum tribunal de contas tem. Segundo atos normativos editados por essa autarquia e pelo CNPC, todo o sistema de previdência complementar é regulado por órgãos especializados.

Outro tema a ser lembrado é o da superposição de poderes: poderia o TCU afastar um ato jurídico praticado pelo órgão que por lei[3] fiscaliza a previdência complementar? Poderia o TCU desconsiderar ato jurídico do órgão fiscalizador que venha a aprovar alteração do regulamento de um plano de benefícios administrado por uma EFPC? A resposta deve ser um veemente não. Por meio de estudos técnicos e procedimentos determinados em normas, a Previc, em conjunto com o CNPC, estabelece uma série de condutas que deve ser respeitada pelos fundos de pensão. Por exemplo, as condições e os procedimentos a serem observados pelas EFPCs na apuração de resultado, na destinação e utilização de superávit e no equacionamento de déficit dos planos de benefícios de caráter previdenciário[4] estão estabelecidos em resolução, como também os procedimentos contábeis das EFPCs,[5] entre várias outras matérias relevantes ao funcionamento de um fundo de pensão.

Além disso, segundo a Lei Complementar nº 109/2001[6], a atuação do Estado sempre visará à preservação dos interesses dos participantes e assistidos dos planos de benefícios. Para cumprir essa finalidade, quaisquer alterações regulamentares em uma EFPC devem passar pela chancela da Previc,[7] que analisa se as modificações estão de acordo com os interesses dos participantes. Mais uma vez, não caberia ao TCU examinar um ato que foi aprovado por uma autarquia da Administração Pública Federal segundo critérios claros e preestabelecidos.

Para ressaltar a insensatez da fiscalização das EFPCs pelo TCU – que ocorre após a fiscalização realizada pela Previc – é possível traçar um paralelo entre a atuação do Banco Central do Brasil (BC) e a do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) no Sistema Financeiro Nacional (SFN). O Cade não pode revisitar os atos jurídicos proferidos pelo BC, que é considerando o órgão regulador do SFN. Uma cooperação entre as entidades é obviamente factível, mas o Cade deve atuar no sistema brasileiro de defesa da concorrência, enquanto o BC atua na esfera financeira, regulando a conduta dos agentes econômicos.

Fica claro que o TCU extrapola seu escopo de funções ao fiscalizar as EFPCs. Com evidente especialização para atuar no setor de previdência complementar,[8] a Previc é o órgão capaz de fiscalizar os fundos de pensão e tem todos os atributos necessários para exercer essa função. E considerando o princípio da eficiência, que rege a Administração Pública, também não há que se falar em fiscalização das EFPCs pelo TCU quando outro órgão cumpre perfeitamente essa incumbência.


[1] Consulta TC 012.517/2012/7.

[2] Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder.

[3] Lei Complementar n. 108, de 29 de maio de 2001:
Art. 24. A fiscalização e controle dos planos de benefícios e das entidades fechadas de previdência complementar de que trata esta Lei Complementar competem ao órgão regulador e fiscalizador das entidades fechadas de previdência complementar.

[4] Ver Resolução CGPC nº 26, de 29 de setembro de 2008.

[5] Ver Resolução CNPC nº 08, de 31 de outubro de 2011.

[6] Art. 3º A ação do Estado será exercida com o objetivo de: VI - proteger os interesses dos participantes e assistidos dos planos de benefícios.

[7] Lei Complementar nº 109/2001: Art. 33. Dependerão de prévia e expressa autorização do órgão regulador e fiscalizador: I - a constituição e o funcionamento da entidade fechada, bem como a aplicação dos respectivos estatutos, dos regulamentos dos planos de benefícios e suas alterações;

[8] Lei nº 12.154/2009: Art. 2º Compete à Previc: I - proceder à fiscalização das atividades das entidades fechadas de previdência complementar e de suas operações;