A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), proferiu, em fevereiro, decisão relevante no âmbito do Recurso Especial no 1.861.306/SP a respeito da impossibilidade de estender a desconsideração da personalidade jurídica a sócio minoritário que jamais (i) tenha atuado na administração da companhia ou (ii) comprovadamente participado de atos de abuso da personalidade jurídica ou fraude.

Com essa decisão, a Corte Superior reforçou os critérios subjetivos que devem ser adotados para deferir pedido de desconsideração da personalidade jurídica que atinja bens de administradores e sócios, entendendo que não é viável aplicar o instituto àqueles que, comprovadamente, não contribuíram para a prática de eventos caracterizadores de abuso da pessoa jurídica.

O caso em questão envolvia ação de indenização por danos morais e materiais, na qual, no curso da execução, foi deferido pedido de desconsideração da personalidade jurídica da sociedade ré, para incluir no polo passivo do processo executivo todos os seus sócios, após ter sido concluído que a dissolução da empresa se deu de forma irregular. Posteriormente, diante  do falecimento de um dos sócios, sua herdeira foi citada e intimada para também ingressar na lide, tendo se voltado contra a decisão em questão.

A Primeira Câmara Cível de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) deu provimento ao recurso da herdeira para excluí-la do cumprimento de sentença. De acordo com entendimento do órgão julgador, a desconsideração deve atingir “apenas os bens dos sócios-administradores ou que efetivamente contribuíram na prática do abuso ou fraude na utilização da pessoa jurídica” e, uma vez que o sócio falecido tinha participação minoritária na sociedade (com apenas 0,0004% do capital social da empresa) e não tinha poderes de administração, sua responsabilidade pessoal não poderia ser reconhecida. Como consequência, os bens de seus herdeiros deveriam ser excluídos da execução.

Em face da decisão do TJSP, foi interposto recurso especial ao STJ, no qual os autores suscitaram, entre outros argumentos, que o tribunal  teria contrariado o disposto no artigo 50 do Código Civil, pois a condição de sócio minoritário, sem poderes de administração, não afastaria esse sócio da responsabilidade pelos atos praticados pela sociedade.

Efetivamente, após as alterações promovidas pela Lei de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/19), o dispositivo legal em questão (artigo 50 do Código Civil), além de passar a contar com maior detalhamento dos critérios objetivos autorizadores da desconsideração da personalidade jurídica por “abuso de personalidade” (i.e., desvio de finalidade e confusão patrimonial), recebeu nova redação. De acordo com o texto atual, a desconsideração se dará para que os efeitos de certas obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica “beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso”. Em outras palavras, o texto legal em questão trouxe novos limites subjetivos para aplicação do instituto, restringindo os efeitos da desconsideração àqueles beneficiados direta ou indiretamente pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial.

Apesar da redação dada ao artigo pela Lei de Liberdade Econômica no que se refere a quem poderá ver seu patrimônio atingido, a Terceira Turma do STJ, ao analisar o caso, manteve a decisão do TJSP com base em critério distinto. Considerou-se que, muito embora o artigo 50 do Código Civil não apresente qualquer restrição para a responsabilização dos sócios minoritários indiretamente beneficiados pela prática dos atos de abuso de personalidade, não seria coerente “que os sócios sem poderes de administração, em princípio, incapazes da prática de atos configuradores do abuso da personalidade jurídica”, pudessem ser atingidos em seus patrimônios pessoais. Na realidade, conforme apontado no acórdão, quando se estiver diante de sócio que não tem funções de gerência e administração e que comprovadamente não concorreu[1] para o desvio de finalidade ou confusão patrimonial, não há qualquer razão para excepcionar o princípio da autonomia patrimonial da personalidade jurídica e autorizar sua desconsideração em relação a este sócio.

Nota-se, portanto, que, conforme o critério adotado pela Corte, seria possível afastar a responsabilidade pessoal de sócios não apenas pela demonstração, exigida pela lei, de inexistência de benefício direto ou indireto (elementos que, sem dúvida, carregam significativa carga de subjetividade, principalmente o “benefício indireto”). A responsabilidade pessoal também poderia ser afastada pela prova objetiva de que o sócio, seja em razão da relevância de sua participação na sociedade e/ou do papel que desempenhava na sociedade, seria incapaz de praticar quaisquer dos atos configuradores do abuso da personalidade jurídica.

Nos termos exatos da decisão: “A desconsideração da personalidade jurídica, em regra, deve atingir somente os sócios-administradores ou que comprovadamente contribuíram para a prática dos atos caracterizadores do abuso da personalidade jurídica.”

O posicionamento do STJ nesse caso, ainda que esteja apenas reforçando entendimentos anteriores sobre o tema, levanta indagações adicionais a respeito dos parâmetros aplicáveis aos casos em que se busca atingir os bens do sócio-administrador, à luz da nova redação dada ao artigo 50 do Código Civil. Em especial, é importante determinar se a qualidade de sócio-administrador será suficiente para que seu patrimônio seja alcançado, presumindo-se seu benefício direto ou indireto, ou se será necessário comprovar a existência desse benefício, na medida em que é elemento previsto expressamente no artigo 50 do Código Civil.

A questão nos remete à existência de diferentes teorias doutrinárias sobre a desconsideração da personalidade jurídica que também contemplam os limites subjetivos para incidência do instituto.

Teoria menor. Há aqueles que defendem a teoria menor, segundo a qual todos os sócios e administradores devem ter seu patrimônio pessoal atingido, independentemente de aferição de benefício ou do fato de participar efetivamente da gestão da empresa. Essa é a corrente adotada, por exemplo, em matéria consumerista, pelo artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor, e, no âmbito da responsabilidade ambiental, pelo artigo 4º da Lei nº 9.605/98 – que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente.

Teoria maior. Por outro lado, tem-se a teoria maior, segundo a qual a desconsideração é medida excepcional, que se subdivide em duas vertentes no que se refere aos limites subjetivos da desconsideração. Enquanto para alguns é preciso que se comprove que os sócios e administradores (incluindo sócios-administradores) foram beneficiados direta ou indiretamente pelos atos fraudulentos, para outros seria suficiente provar que o sócio participa ou participou da gestão ou administração da empresa, na medida em que tinha o dever de, ao menos, obstar a ocorrência dos atos em questão.

Considerando essas teorias e subcorrentes e a decisão aqui comentada, é possível vislumbrar uma resposta à indagação proposta: o STJ se filiou, mais uma vez, à teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica e, mais importante, reiterou relevante entendimento de que nem todos os sócios serão necessariamente atingidos pela aplicação do instituto. Por outro lado, a decisão parece deixar claro que, caso o sócio tenha sido administrador à época dos atos praticados, haverá forte presunção a favor da existência de benefício (direto ou indireto), fazendo incidir o artigo 50 do Código Civil. De qualquer maneira, será sempre necessário fazer uma análise dos elementos fático-probatórios do caso, buscando-se evidências tanto sobre a participação dos sócios e/ou dos administradores nos atos de abuso de personalidade quanto sobre a obtenção de benefício direto ou indireto de tais atos.


[1] Obviamente, conforme apontado no acórdão, a desconsideração poderá atingir aqueles que não possuem poderes de gerência e de administração a depender das circunstâncias; por exemplo, quando houver explícita má-fé pela conivência com os atos praticados.