O princípio da segurança jurídica é um dos alicerces do Estado Democrático de Direito. Não poderia ser diferente, pois é em razão dele que a sociedade pode confiar que as regras do jogo não serão alteradas no curso de suas atividades e dos negócios jurídicos celebrados.

A segurança jurídica é materializada em dispositivos legais esparsos, dos quais se destaca o artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal, que trata do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada. Esta última garante que, uma vez decidido o direito pelo Poder Judiciário, a decisão se torna lei entre as partes e seja respeitada.

Nesse contexto, a partir de uma interpretação lógico-sistemática do instituto da coisa julgada, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no recente julgamento dos Embargos de Divergência nº 600.811/SP, fixou importante regra hermenêutica. Os ministros do órgão especial da Corte Superior estabeleceram, em um apertado julgamento por 8 votos a 7, que a força da coisa julgada é tamanha, que ela se sobrepõe até mesmo à coisa julgada anterior que trate exatamente do mesmo assunto.

Entendendo o caso

No caso em questão, foram propostos três embargos à arrematação de um mesmo imóvel: o primeiro foi extinto sem resolução do mérito e transitou em julgado em 1998; o segundo foi julgado procedente (anulando a arrematação) e transitou em julgado em 2001; e o terceiro foi julgado improcedente (mantendo firme a arrematação) e transitou em julgado em 2010.

As partes começaram então a discutir qual das decisões deveria prevalecer: a que primeiro apreciou o mérito e transitou em julgado em 2001 ou a que transitou em julgado em 2010. Em primeira instância, sem grandes fundamentos, o juiz estabeleceu que deveria prevalecer a decisão que analisou o mérito e primeiro transitou em julgado, de forma que a arrematação foi desconstituída. Ao julgar a apelação interposta pelo arrematante do imóvel, a 21ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo manteve a decisão de origem.

A controvérsia foi então submetida ao crivo da Terceira Turma do STJ, sob relatoria do ministro Paulo de Tarso Sanseverino, que reafirmou a sentença de origem para que a decisão que apreciou o mérito e primeiro transitou em julgado fosse respeitada. Inconformado, o arrematante do imóvel interpôs embargos de divergência, sustentando a validade e eficácia da decisão que por último transitou em julgado.

As teses defendidas

Os defensores da aplicação da decisão que primeiro transitou em julgado sustentam que, havendo litispendência ou coisa julgada, a segunda demanda carece de um pressuposto processual, de forma que sequer há formação de processo. Nesse sentido, argumentam Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery:[1] “Prevalece a primeira, porque a segunda nem chegou a se formar ou, no mínimo, ofendeu a primeira coisa julgada, sendo inconstitucional (CF 1º, caput e 5º, XXXVI) e ilegal (CPC 267 V, 301 VI, 471, 485 VI). A segunda coisa julgada não se formou porque não existiu ação, nem processo, nem sentença (v. coments. CPC 267 V e VI). A rigor não é necessário nem recorrer dessa sentença dada com ofensa à coisa julgada, nem ajuizar ação rescisória”.

Também pela prevalência da primeira sentença, mas com fundamento na invalidade de pleno direito da segunda, afirma Sérgio Gilberto Porto:[2] “Parece irrebatível o argumento de que o fato jurisdicional reiterante, ou seja, a nova decisão, por si só, ofendeu a coisa julgada que já havia e que, como tal, estava assegurada pela Constituição Federal (5º, XXXVI), sendo assim, pois, inválida pleno jure, eis que prevalece o comando constitucional sobre a norma ordinária (art. 495, CPC) que estabelece prazo para o manejo da ação rescisória. Desta forma, a única solução plausível para impedir violação à Constituição é a não incidência do prazo preclusivo do art. 495, na hipótese do inc. IV do art. 485 do CPC, quando houver conflito de decisões soberanamente julgadas”.

Teresa Wambier,[3] por sua vez, cita Liebman para afirmar que “não terá havido atividade jurisdicional autêntica, mas aparência de jurisdição, ou a forma externa de jurisdição”. Prosseguindo, a renomada professora cita também José Carlos Barbosa Moreira,[4] afirmando que “não há como sustentar que quem pleiteia, perante o Poder Judiciário, a apreciação de pedido já decidido, por meio de decisão sobre a qual já pesa autoridade de coisa julgada, tenha interesse de agir”.

Por outro lado, aqueles que sustentam a força da decisão que transitou em julgado por último o fazem sob o argumento de que todas as decisões judiciais são válidas e eficazes, de forma que a decisão posterior derroga a anterior, substituindo-a.

Nesse sentido, Arruda Alvim[5] sustenta que “no caso de o segundo processo atingir a coisa julgada, imutável e preponderante será a sentença nele proferida. Vale dizer, a formação da coisa julgada afeta, nesse caso, o processo que tenha começado em primeiro lugar, destruindo-lhe os efeitos jurídicos da mera sentença”.

Nesse mesmo sentido, a lição de Eduardo Talamini:[6] “Tampouco se pode dizer que embora sendo existente a segunda sentença, a solução do conflito entre os dois comandos incompatíveis dar-se-ia com o prevalecimento do primeiro. Duas considerações afastam essa conclusão. A primeira é a de que a lei previu expressamente o cabimento da ação rescisória contra o segundo pronunciamento (CPC, art. 485, IV). Isso significa que, decorrido o prazo sem que o específico meio de impugnação seja exercido, fica superado – torna-se irrelevante o defeito da segunda sentença. E, então, ‘o primeiro julgado destitui-se de valor, visto que o segundo julgado implica negação de todo julgado anterior em contrário’. Não se nega que o direito positivo poderia ter resolvido tal conflito de modo diverso, mas, para tanto, haveria a necessidade de uma regra expressa a respeito – como há, por exemplo, no direito português (v. CPC português, arts. 75 e 813, f). Daí a segunda consideração: na falta de uma regra expressa em outro sentido, vale o princípio geral aplicável a todos os campos do direito público destinado à solução de conflito entre comandos jurídicos: o ato posterior prevalece sobre o anterior (critério da ‘temporalidade’). Pode não ser a solução ideal para o impasse. Aliás, o ideal seria que o impasse nem existisse. De todo modo, se ele ocorre, essa é a solução ‘menos pior’”

Para essa segunda corrente de entendimento, restabelecer força da decisão que primeiro transitou em julgado exige o ajuizamento de ação rescisória contra a decisão que foi proferida e transitou em julgado por último. A propositura da ação rescisória se faz necessária porque, ainda que absurda, a decisão judicial por último proferida deve prevalecer em razão da força de que toda decisão judicial é dotada.

Como fica a questão?

Ainda que por apertado resultado, o STJ se filiou ao entendimento de que toda decisão judicial é dotada de eficácia e validade até que seja desconstituída. Dessa forma, a decisão que por último transitou em julgado deve produzir seus efeitos e se sobrepor à primeira até que, por meio de ação rescisória, os efeitos da primeira decisão sejam restabelecidos. Não havendo ação rescisória, a decisão que por último transitou em julgado terá derrogado inteiramente a primeira decisão.


[1] Código de Processo Civil comentado e legislação extravagante. 11ª ed. São Paulo: RT, p. 714.

[2] Coisa Julgada Civil. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 166.

[3] Nulidades do processo e da sentença. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 356.

[4] Nulidades do processo e da sentença. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 384.

[5] Direito Processual Civil, 1º./380, 8ª. conclusão, Ed. RT, 1972 in RJTJESP 88/125.

[6] Coisa Julgada e sua Revisão, 1ª. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, págs. 155/156.