A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) afirmou, em votação não unânime, que o plano de recuperação judicial aprovado pela maioria dos credores de uma empresa em recuperação judicial pode suprimir garantias reais ou fidejussórias mesmo sem a anuência expressa do credor titular da garantia. O acórdão da decisão foi publicado em 26 de abril.

A questão foi suscitada no julgamento do recurso especial (REsp) nº 1.700.487/MT, de relatoria do ministro Marco Aurélio Belizze. O processo teve origem na recuperação judicial da empresa Ariel Automóveis Várzea Grande Ltda.[1] Nos autos, o Banco Industrial e Comercial S.A., credor quirografário da recuperanda, interpôs agravo de instrumento em face da decisão que homologou o plano de recuperação judicial aprovado pela maioria dos credores. Sustentou o banco, em síntese, que o plano aprovado violaria o disposto nos artigos 49, §1º,[2] 50, §1º,[3] e 59[4] da Lei de Recuperação Judicial, Recuperação Extrajudicial e Falência (Lei nº 11.101/2005) ao permitir a liberação de todas as garantias reais e fidejussórias detidas em face da recuperanda e de terceiros coobrigados.

Antes do pronunciamento do STJ, a Segunda Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça (TJ) do Mato Grosso havia reconhecido que “embora o plano de recuperação judicial opere novação das dívidas a ele submetidas, as garantias reais ou fidejussórias, de regra, são preservadas”[5] e, consequentemente, decretara a nulidade do plano aprovado.

A discussão diz respeito, de um lado, à interpretação dos artigos 49, §1º, 50, §1º, 53, §3º,[6] e 59 da Lei nº 11.101/2005, que vedam expressamente a supressão ou substituição de qualquer garantia real ou fidejussória dos credores da recuperanda (salvo, por óbvio, quando houver consentimento expresso por parte do credor titular da garantia). Por outro lado, há quem defenda que, à luz do disposto no artigo 49, §2º[7] da Lei nº 11.101/2005 e com base no princípio majoritário e no par condicio creditorum (que impõe o tratamento isonômico de credores da mesma classe), seria possível a liberação de tais garantias pelo plano de recuperação judicial, desde que aprovado pela maioria dos credores da recuperanda em sede de assembleia geral de credores.

Em outras palavras, o debate diz respeito à possibilidade de a assembleia majoritária afastar a exigência legal de anuência expressa do credor titular da garantia.

O leading case sobre o tema foi o REsp nº 1.532.943/MT,[8] de relatoria do ministro Marco Aurélio Belizze e julgado pela 3ª Turma do STJ em 13 de setembro de 2016. Nesse caso, a maioria da 3ª Turma reconheceu que o plano de recuperação judicial que prevê a supressão ou substituição de garantias vincula todos os credores (incluindo os ausentes e até mesmo aqueles que votaram contra a aprovação do plano de recuperação judicial), desde que devidamente aprovada pela maioria dos credores em sede de assembleia geral.

Em seu voto vencedor no leading case,[9] o ministro relator reconheceu a proteção conferida às garantias pela legislação falimentar, mas afirmou que a mesma Lei nº 11.101/2005 (em especial, seu artigo 49, §2º) permite que o plano de recuperação judicial disponha sobre as garantias detidas pelos credores da recuperanda.

Entendeu-se que, “ainda que determinado credor tenha optado por não comparecer à deliberação assemblear; ou, presente, se absteve de votar ou se posicionado em contrariedade, total ou parcialmente, à aprovação do plano, seus termos o subordinam, necessariamente”. Em outras palavras, a maioria da 3ª Turma reconheceu que a supressão de garantias reais ou fidejussórias aprovada pela assembleia de credores da recuperanda vincula todos os titulares dessas garantias.

Para os ministros da 3ª Turma, não haveria violação ao disposto no artigo 50, §1º, da Lei nº 11.101/2005, uma vez que se pode considerar que sempre há anuência expressa à supressão e/ou substituição de garantias pelos credores titulares das garantias afetadas, já que tais credores estão devidamente representados pela sua respectiva classe durante a assembleia de credores. Assim, a vontade da maioria de cada uma das classes de credores pode ser interpretada como anuência expressa dos credores que não comparecem à assembleia ou até mesmo votam contra a aprovação do plano.

A discussão foi levada à Segunda Seção do STJ em sede de embargos de divergência sob o fundamento de contrariar a jurisprudência existente do STJ sobre o tema,[10] mas ficou entendido que os precedentes anteriores não decidiram a mesma questão jurídica. Portanto, a decisão proferida nos autos do REsp nº 1.532.943/MT foi mantida.

Nos autos do REsp nº 1.700.487/MT, a 3ª Turma reanalisou a questão da possiblidade de supressão de garantias pelo plano aprovado em assembleia, e a maioria acompanhou o voto-vista do ministro Marco Aurélio Belizze, o qual reafirmou que o plano devidamente aprovado na forma legal pela assembleia geral de credores deve vincular todos os credores igualmente, sob pena de inviabilizar o cumprimento das medidas previstas no plano e o soerguimento da empresa.

Por outro lado, o relator do recurso, acompanhado pela ministra Nancy Andrighi, defendeu que a novação prevista no plano deve atingir apenas os credores que votaram pela sua aprovação, sem nenhuma ressalva.

A questão, portanto, não está pacificada no STJ e ainda existe divergência entre os ministros da Segunda Seção quanto à possibilidade de extensão das previsões do plano que afetam garantias reais e fidejussórias aos credores da recuperanda que não participaram da deliberação assemblear ou que votaram contra a aprovação do plano.

A interpretação do binômio preservação das garantias dos credores v. preservação da empresa que vem sendo defendida pela Corte tem sido objeto de crítica não só por contrariar certos dispositivos legais, mas também porque esvazia por completo a proteção oferecida pelas garantias reais e fidejussórias sempre que o devedor se torna insolvente e pede amparo ao Poder Judiciário para se reestruturar. Conforme registrou o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva nesse caso, “o cenário de incerteza quanto ao recebimento do crédito em decorrência do enfraquecimento das garantias é desastroso para a economia do país”.


[1] Processo nº 1512-10.2015.811.0002, em trâmite perante a 4ª Vara Cível de Várzea Grande/MT.

[2] Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.
§ 1º Os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso.

[3] Art. 50. Constituem meios de recuperação judicial, observada a legislação pertinente a cada caso, dentre outros:
[...]
§ 1º Na alienação de bem objeto de garantia real, a supressão da garantia ou sua substituição somente serão admitidas mediante aprovação expressa do credor titular da respectiva garantia.

[4] Art. 59. O plano de recuperação judicial implica novação dos créditos anteriores ao pedido, e obriga o devedor e todos os credores a ele sujeitos, sem prejuízo das garantias, observado o disposto no § 1o do art. 50 desta Lei.

[5] TJMT, Agravo de Instrumento nº 0018190-72.2016.8.11.0000, relator: Des. Sebastião de Moraes Filho, 2ª Câmara de Direito Privado, j. em 05.10.2016.

[6] Art. 56. Havendo objeção de qualquer credor ao plano de recuperação judicial, o juiz convocará a assembleia geral de credores para deliberar sobre o plano de recuperação.
[...]
§ 3º O plano de recuperação judicial poderá sofrer alterações na assembleia geral, desde que haja expressa concordância do devedor e em termos que não impliquem diminuição dos direitos exclusivamente dos credores ausentes.

[7] Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.
[...]
§ 2o As obrigações anteriores à recuperação judicial observarão as condições originalmente contratadas ou definidas em lei, inclusive no que diz respeito aos encargos, salvo se de modo diverso ficar estabelecido no plano de recuperação judicial.

[8] O caso também originou de uma recuperação judicial que tramitou perante a 4ª Vara Cível de Várzea Grande/MT – a recuperação judicial de Dibox Distribuição de Produtos Alimentícios Broker Ltda., Andorra Logística e Transportes Ltda. e Exectis Administração e Participações S/A (Processo nº 0012909-37.2017.8.11.0002).

[9] Cumpre notar que em seu voto-vista, o ministro João Otávio de Noronha concluiu que, à luz da legislação falimentar, não seria possível admitir a supressão de todas as garantias reais e fidejussórias pelo plano de recuperação judicial.

[10] Nesse sentido, (i) REsp 1.326.888/RS, rel. min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, j. em 08.04.2014, DJe 05.05.2014; e (ii) REsp repetitivo nº 1.333.349/SP, rel. min. Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, DJe de 02.02.2015.