Passadas quase três décadas de sua criação no ordenamento jurídico brasileiro, em 1993, os Fundos de Investimento Imobiliário (FIIs) multiplicaram-se e ganharam novos usos, formatos e características, especialmente nos últimos anos, quando seu número mais do que dobrou[1] e seu emprego como forma de captação se consolidou e segue amadurecendo.

Neste artigo, abordamos a possibilidade de os FIIs figurarem como incorporadores e loteadores dos empreendimentos imobiliários que integram seu objeto social. Usualmente, os FIIs de “tijolos”, destinados à construção de imóveis, desenvolvem seus empreendimentos de forma indireta, utilizando-se de uma sociedade de propósito específico (SPE), na qual detêm participação societária, para exercer a posição de empreendedora.

A dúvida é: haveria a possibilidade de o FII desenvolver empreendimentos imobiliários de forma direta, sem a utilização de uma SPE como veículo? Entendemos que sim, e a resposta aqui apresentada é construída segundo uma perspectiva imobiliária e registral e parte de conceitos consolidados adotados pela lei, pelas instruções normativas (IN) da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e pela doutrina pátria.[2]

A Lei dos FIIs e o entendimento da CVM sobre a IN 472/2008

 O primeiro ponto a ser avaliado é o fato de a lei que regulamenta os FIIs (Lei nº 8.668/93 – Lei dos FIIs) determinar a aplicação dos recursos dos FIIs em empreendimentos imobiliários.

Por “aplicação”, entretanto, não se depreende “desenvolvimento direto” dos empreendimentos imobiliários, ficando a cargo da CVM a previsão e regulamentação dessa hipótese em sua Instrução nº 472, de 31 de outubro de 2008 (IN 472). O artigo 45, §1º, dessa instrução normativa expressamente autoriza que os FIIs desenvolvam projetos de construção. Nessa hipótese, o administrador do FII deverá exercer controle efetivo e direto sobre o desenvolvimento do projeto.[4] Também é papel do administrador representar o FII de forma ampla em todos os atos necessários à consecução do objeto e da política de investimentos do FII.

O dispositivo mencionado norteia-se por um princípio orientador, refletido em diversos outros dispositivos da IN 472,[5] e visa conferir ao administrador autonomia e plenos poderes para consecução e gestão dos empreendimentos que integram o patrimônio do FII.

A lógica legal subjacente é de que o FII não é dotado de personalidade jurídica. Portanto, compete a seu administrador exercer os atributos inerentes à personalidade. Tal lógica resulta de uma discussão sobre a própria natureza jurídica do FII, ao fim da qual se sagrou vencedor, na exegese legislativa, o entendimento de que o patrimônio é titulado fiduciariamente pelo administrador do FII.

Se, por um lado, a CVM está alinhada ao entendimento de que é plenamente possível ao administrador desenvolver o empreendimento objeto do FII, a situação é incerta nos Registros de Imóveis.

O IRIB (Instituto de Registro Imobiliário do Brasil) já foi consultado sobre o tema[6] e se posicionou pela impossibilidade de os FIIs promoverem o desenvolvimento imobiliário diretamente. Alguns Registros de Imóveis alinham-se ocasionalmente a esse entendimento, alegando dois motivos: que os FIIs não detêm personalidade jurídica e que há incompatibilidade entre os objetos sociais do administrador[7] e do loteador e/ou incorporador imobiliário. Em outras palavras, alega-se que o FII não poderia ser sujeito de direito e obrigações decorrentes das incorporações e loteamentos. Mesmo que se reconhecesse a titulação pelo administrador em lugar do FII, os atos praticados pelo administrador não seriam válidos, uma vez que o objeto social do administrador do FII seria incompatível com a atividade de empreendedor imobiliário.

Entendemos que esse posicionamento pode ser revisto diante das considerações já tecidas sobre a opção do legislador de aproximar a figura dos FIIs da do negócio fiduciário. Abordaremos individualmente cada um dos pontos para esclarecer melhor os motivos pelos quais entendemos que não subsistem os óbices alegados.

Ausência de personalidade jurídica do FII e a suficiente titulação fiduciária do patrimônio do FII pelo administrador para empreender

 Uma das consequências práticas da ausência de personalidade jurídica do FII é a impossibilidade de titulação de propriedade dos seus bens imóveis de forma direta. [8]

A abstração legal da qual se parte é a de que a propriedade dos bens imóveis que integram o patrimônio do FII é detida pelo administrador do fundo, em caráter fiduciário, sob regime de afetação, que segrega o patrimônio do FII do patrimônio do administrador e destina-o a fim exclusivo.[9]

Assim, o administrador passa a concentrar, de forma segura e legítima, em seu nome, os ativos e passivos emergentes do complexo de obrigações necessários à satisfação do fim social, gozando de todos os atributos inerentes à propriedade.

Reconhecendo o administrador como proprietário fiduciário, é certo que a própria lei, nesse quesito, além de não gerar óbices à assunção da posição de empreendedor imobiliário pelo administrador, expressamente a estimula e a determina, conforme previsão contida no parágrafo primeiro do art. 45 da IN CVM 472 (mencionada acima), com o intuito de assegurar o sucesso do fundo, conferindo a segurança necessária para que os FIIs se mantenham atrativos para o investidor.

Ausência de compatibilidade entre os objetos sociais do administrador e do desenvolvedor imobiliário e ausência de vedação legal na legislação ao desenvolvimento de empreendimentos imobiliários

A possibilidade de desenvolver empreendimentos deve contar com autorização em dois níveis: legal e contratual.

Do ponto de vista legal, o art. 5º da Lei dos FIIs dispõe que os FIIs serão administrados por banco múltiplo com carteira de investimento ou com carteira de crédito imobiliário, banco de investimento, sociedade de crédito imobiliário, sociedade corretora ou sociedade distribuidora de títulos e valores mobiliários, ou outras entidades legalmente equiparadas, desde que tenham a devida autorização da CVM para o exercício de tal atividade.

A Lei de Incorporações Imobiliárias (Lei Federal nº 4.591/64), por sua vez, dispõe que se considera incorporador “a pessoa física ou jurídica, comerciante ou não, que embora não efetuando a construção, compromisse ou efetive a venda de frações ideais de terreno [...] coordenando e levando a termo a incorporação e responsabilizando-se, conforme o caso, pela entrega, a certo prazo, preço e determinadas condições, das obras concluídas”. Ele pode ser o proprietário ou promissário comprador do imóvel em que será desenvolvido o empreendimento imobiliário. Por sua vez, a Lei de Parcelamento do Solo Urbano (Lei Federal nº  6.766/79), entende que o loteador precisa ser proprietário do imóvel para tal fim, ressalvadas as hipóteses de parcelamento popular em que essa comprovação de propriedade é dispensada.

Como se extrai da análise da legislação aplicável ao desenvolvimento de empreendimentos imobiliários, não há, de fato, seja via incorporação imobiliária ou parcelamento do solo urbano, uma vedação para que o FII figure como incorporador ou loteador. Uma vez que o FII pode adquirir diretamente a propriedade do imóvel em que se pretende desenvolver o empreendimento via negócio fiduciário, no qual o administrador do FII lhe empresta a sua personalidade jurídica, estaria respeitada a exigência da Lei de Incorporações e da Lei de Parcelamento do Solo para tanto.

Além disso, não vislumbramos incompatibilidade entre o objeto social do administrador do FII e a atividade de empreendedor imobiliário. Isso porque o objeto que deve ser analisado é o previsto no regulamento do FII e na sua política de investimentos. Nesse sentido, vale destacar mais uma vez que a lei reconhece a licitude de gestão de FIIs por diversos agentes, cabendo à administradora o dever de assumir a consecução direta do empreendimento a ser desenvolvido pelo FII.

Considerações finais

 Diante do exposto, a construção legal parece-nos coerente e coesa em um mesmo sentido: o de garantir segurança aos investidores e aos adquirentes dos produtos imobiliários.

A Lei de FIIs e a IN CVM 472, ao expressamente estimularem e determinarem a consecução direta do objeto do FII pelo administrador, imputam a ele não só a faculdade, mas o dever, de praticar os atos de desenvolvimento do objeto de forma direta, garantindo maior previsibilidade de investimentos aos investidores. Os adquirentes de produtos dos FIIs, especialmente de unidades autônomas, contarão, por sua vez, com garantia legal de segregação do patrimônio – em geral ausente de outros formatos de empreendimentos – e garantia de desenvolvimento do empreendimento por entidades com expertise e reputação consolidadas, que serão submetidas a rigoroso controle por órgão regulador, o que mitiga o risco social associado ao insucesso do empreendimento.

No entanto, poucas instituições têm prestado serviços de administração de FIIs que tenham por objeto atividades que envolvam a incorporação ou o loteamento imobiliário. Além da incerteza mencionada acima com relação à possibilidade de implementar os registros aplicáveis nos Registros de Imóveis, a experiência nos mostra que o risco para os investidores e o administrador do FII atrelado à atividade, especialmente em uma estrutura que não conta com a responsabilidade limitada de obrigações conferida por estrutura que conta com SPE, tem diminuído o apetite das instituições para tal tipo de produto.[10]

Para os interlocutores que desejem explorar a possibilidade de desenvolvimento direto que se evidencia, é recomendável levar em consideração as especificidades do caso concreto e analisar os aspectos fiscais e regulatórios para ter certeza de que o formato de desenvolvimento do empreendimento imobiliário direto pelo FII é o mais adequado. É preciso avaliar também os riscos inerentes à atividade de incorporador e de loteador imobiliário que seriam assumidos diretamente pelos FIIs e não pelo veículo (SPE) no qual o FII detenha participação societária.


[1] Em março de 2015, o número de FIIs registrados na CVM era de 249, passando para 540 em março de 2020. Fonte: Boletim do Mercado Imobiliário, B3, nº 89, de 19 de março de 2020. Disponível em: http://www.b3.com.br/data/files/2B/92/A2/B0/B5991710CF51CE07AC094EA8/Boletim%2 0Mercado%20Imobiliario%20-%202020%2003.pdf.

[2] A construção histórica da natureza jurídica dos FIIs, em âmbito nacional e internacional se deu sob debate de diversas teorias, defendidas por eméritos juristas, concebendo os FIIs ora como condomínios, ora como sociedades não personificadas. A Lei nº 8.668/93, em sua literalidade, alinhou-se à chamada “teoria da propriedade fiduciária” e positivou entendimento segundo o qual os FIIs se constituem em comunhão de recursos sob propriedade fiduciária do administrador. Considerando que os Registros de Imóveis se inclinam a essa última teoria, nós a adotamos para alcançar o objetivo proposto. Tal controvérsia sobre a natureza jurídica dos fundos de investimento encontra-se atualmente ultrapassada em razão da edição da Lei nº 13.874/19, que, ao incluir o novo artigo 1.386-C no Código Civil, estabelece que “o fundo de investimento é uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio de natureza especial, destinado à aplicação em ativos financeiros, bens e direitos de qualquer natureza.”

[3] Lei nº 8.668/93. Art. 1º Ficam instituídos Fundos de Investimento Imobiliário, sem personalidade jurídica, caracterizados pela comunhão de recursos captados por meio do Sistema de Distribuição de Valores Mobiliários, na forma da Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976, destinados a aplicação em empreendimentos imobiliários. (grifos nossos)

[4] IN CVM 472. Art. 45. A participação do fundo em empreendimentos imobiliários poderá se dar por meio da aquisição dos seguintes ativos: I – quaisquer direitos reais sobre bens imóveis; [...] § 1º Quando o investimento do FII se der em projetos de construção, caberá ao administrador, independentemente da contratação de terceiros especializados, exercer controle efetivo sobre o desenvolvimento do projeto.

[5] IN CVM 472. Art. 30. Compete ao administrador, observado o disposto no regulamento: [...] I – realizar todas as operações e praticar todos os atos que se relacionem com o objeto do fundo. e IN CVM 472. Art. 32. O administrador do fundo deve: [...] IV – celebrar os negócios jurídicos e realizar todas as operações necessárias à execução da política de investimentos do fundo, exercendo, ou diligenciando para que sejam exercidos, todos os direitos relacionados ao patrimônio e às atividades do fundo. (grifos nossos)

[6] Consulta protocolada sob o nº 9.441, de 28/08/2012.

[7] O art. 5º da Lei nº 8.668/93 dispõe que os FIIs serão administrados por banco múltiplo com carteira de investimento ou com carteira de crédito imobiliário, banco de investimento, sociedade de crédito imobiliário, sociedade corretora ou sociedade distribuidora de títulos e valores mobiliários, ou outras entidades legalmente equiparadas.

[8] Tal restrição não se aplica a outros tipos de ativos, tais como valores mobiliários.

[9] Art. 7º: “Os bens e direitos integrantes do patrimônio do Fundo de Investimento Imobiliário, em especial os bens imóveis mantidos sob a propriedade fiduciária da instituição administradora, bem como seus frutos e rendimentos, não se comunicam com o patrimônio desta [...].”

[10] Por não ter personalidade jurídica, fundos de investimento atualmente não conferem responsabilidade limitada ao investimento realizado por seus cotistas. A Lei nº 13.874/19 estabeleceu que o regulamento de fundos de investimento pode estabelecer: (a) a limitação da responsabilidade de cada investidor ao valor de suas cotas; e (b) a limitação da responsabilidade, bem como parâmetros de sua aferição, dos prestadores de serviços do fundo de investimento, perante o condomínio e entre si, ao cumprimento dos deveres particulares de cada um, sem solidariedade. Todavia, tal limitação de responsabilidade ainda está pendente de regulamentação por parte da CVM. Depois que a CVM editar normas nesse sentido, é possível que as instituições passem a ter mais conforto em administrar FIIs que tenham por objeto atividades que envolvam a incorporação ou o loteamento imobiliário, em razão da possível limitação de responsabilidade ao investidor e ao próprio administrador como prestador de serviços.