Entre tantas áreas do direito já profundamente afetadas pela crise, parece que agora é o regramento das finanças públicas, ou seja, o direito financeiro, objeto das mais intensas transformações. Isso porque, no Brasil, como no resto do mundo, o orçamento público é convocado a girar o moinho das políticas anticíclicas contra a impetuosa correnteza de sucessivas quedas na arrecadação tributária – típicas de uma economia mundial combalida, na qual, inclusive, pela primeira vez na história, a cotação do petróleo desceu a valor negativo.

Diante deste quadro, passa a vigorar o regime jurídico voltado à luta contra a pandemia, iniciado pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020 – a declaração de calamidade pública para fins do cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Foi a primeira vez que o país fez uso da previsão do art. 65 do diploma. Com a declaração, o governo fica dispensado de atingir os resultados fiscais estabelecidos e cumprir as limitações de empenho previstas na LRF, podendo, até o fim do ano, alocar recursos para o combate ao coronavírus com maior facilidade.

Seguiu-se à decretação da calamidade pública fiscal a decisão cautelar proferida pelo ministro do STF Alexandre de Moraes no âmbito da ADI nº 6357-DF, que afastou excepcionalmente a incidência dos artigos 14, 16, 17 e 24 da LRF e 114, caput, e parágrafo 14, da Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2020 (LDO 2020). Com a liminar, está dispensada a exigência de estimativas de impacto orçamentário-financeiro e de compatibilidade com a LDO. Cai também a exigência de demonstração da origem dos recursos e de ponderação dos efeitos financeiros do aumento de gastos tributários indiretos e despesas obrigatórias de caráter continuado.

No contexto da formação desse direito financeiro de exceção, destacam-se ainda algumas reticências do Tribunal de Contas da União (TCU) em relação ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), pago a idosos e pessoas de baixa renda. Em 13 de março, o ministro Bruno Dantas havia determinado cautelarmente a suspensão da ampliação do BPC, estabelecida pelo Congresso dias antes. Em seu despacho, o ministro apontou a necessidade de se vincular a majoração de um gasto obrigatório à respectiva fonte de recursos (pelo aumento de tributos ou pelo remanejamento de outras despesas). Contudo, em 18 de março, o Plenário do TCU revogou a medida, tendo o próprio ministro Bruno Dantas reconhecido que o “quadro de emergência e imprevisibilidade apresentado a partir da crise do coronavírus poderá ensejar algum tipo de flexibilização dos parâmetros da LRF”. Assim, para melhor exame da questão, o TCU requisitou detalhamento das informações por parte do Executivo – reforçando que o tribunal seguirá exercendo seu papel de fiscalização dos gastos anunciados para combater os efeitos da pandemia.

Mesmo com todas as flexibilizações no regime ordinário do direito financeiro brasileiro, algumas travas à administração da política fiscal permaneciam intransponíveis, como (i) aquelas previstas no art. 164 e (ii) o disposto no artigo 167, III, ambos da Constituição Federal. O caput do artigo 164 assegura a exclusividade do Banco Central (Bacen) para a emissão de moeda no território nacional, sendo que o parágrafo primeiro veda que a entidade realize operações de crédito com o Tesouro Nacional (TN) – ainda que o parágrafo segundo possibilite a aquisição e alienação de títulos de emissão do TN para a regulação do nível de liquidez do mercado e calibragem da taxa de juros. Além disso, o artigo 167, III, cristaliza a chamada “regra de ouro”, que veda a realização de operações de crédito em montante superior às despesas previstas de capital, isto é, a utilização de recursos provenientes de dívida pública para o pagamento de despesas correntes – muito embora tal impedimento possa ser excepcionado, mesmo em tempos de normalidade, por meio dos créditos suplementares, especiais ou extraordinários, de que tratam os art. 167, III e parágrafo terceiro.

Para eliminar a última das paredes do brete de contenção do touro da dívida pública brasileira, destaca-se a proposta do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia: a PEC 10/2020. Ela busca inserir dispositivos no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) que instituem um “regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para enfrentamento da calamidade pública nacional decorrente de pandemia internacional”. Conhecida como “PEC do Orçamento de Guerra”, a proposta, entre outras disposições, visa criar uma peça orçamentária paralela, a correr durante a vigência do atual estado de calamidade. Segundo a proposta, o governo fica autorizado, por exemplo, a violar a “regra de ouro” para utilizar recursos (obtidos com a emissão de títulos) originalmente destinados à rolagem da dívida pública (refinanciamento do principal) no pagamento de seus juros e encargos.

A PEC do Orçamento de Guerra também traz para o Brasil a prática já consagrada por autoridades monetárias estrangeiras de quantitative easing (ou afrouxamento quantitativo, em tradução livre). Trata-se de instrumento que permite a um banco central expandir a oferta monetária na economia para além dos limites conhecidos pela política monetária tradicional. Com o afrouxamento quantitativo (facultado pela PEC 10/2020), o Bacen fica autorizado a comprar e vender, diretamente nos mercados secundários, direitos creditórios e títulos privados com classificação de risco igual ou superior a BB-. Isso permitirá, por exemplo, que a autoridade adquira: (i) debêntures não conversíveis em ações; (ii) cédulas de crédito imobiliário; (iii) certificados de recebíveis imobiliários; (iv) certificados de recebíveis do agronegócio; (v) notas comerciais; e (vi) cédulas de crédito bancário. O objetivo é garantir maior liquidez para essas instituições e aumentar a oferta de crédito nos mercados.

Tais operações, evidentemente, não são isentas de riscos. Muito embora o Fed americano já tenha noticiado centenas de bilhões de dólares em lucros derivados dos títulos adquiridos durante o afrouxamento quantitativo que se seguiu à crise de 2008 (decorrente tanto das rendas provenientes dos títulos quanto da elevação de seu valor de mercado), o Bacen passa a se expor ao risco de inadimplência e desvalorização dos papéis que venham a integrar sua carteira.

Para evitar alguns dos riscos advindos da PEC do Orçamento de Guerra, o Senado, após a aprovação da Câmara, promoveu algumas alterações no texto da proposta, vedando, por exemplo, (i) a aquisição de títulos diretamente de empresas não financeiras, sem o intermédio de bancos; ou (ii) que instituições financeiras envolvidas na venda de títulos para o Bacen, por exemplo, aumentem a remuneração e os bônus de seus administradores, ficando também impedidas de pagar dividendos acima do mínimo obrigatório estabelecido em lei. A proibição espelha as disposições da recente Resolução nº 4.797/20 do Conselho Monetário Nacional (CMN), que, no uso de sua capacidade normativa de conjuntura – e buscando “evitar o consumo de recursos importantes para a manutenção do crédito e para a eventual absorção de perdas” –, estabelece requisitos prudenciais transitórios para o sistema financeiro nacional, impedindo que as instituições financeiras autorizadas: (i) paguem juros sobre o capital próprio e dividendos acima do mínimo obrigatório; (ii) realizem operações de recompra de ações; (iii) reduzam o capital social; (iv) aumentem a remuneração de seus executivos; e (iv) antecipem quaisquer desses pagamentos. Com as mudanças na PEC 10/2020 promovidas pelo Senado, o texto agora retorna à Câmara.

Essa metamorfose do direito financeiro brasileiro evidencia sua peculiaridade em relação às demais disciplinas jurídicas – ele se situa em um ponto de intersecção entre a estabilidade estrutural e os imperativos que emergem de conjunturas específicas. À rigidez tipicamente esperada dos demais campos do direito, necessária à garantia da segurança jurídica e da previsibilidade para a condução dos negócios, contrapõe-se a fluidez do regramento das finanças públicas, que deve enquadrar os instrumentos necessários à atuação em situações conjunturais.

A abertura institucional para a expansão vertiginosa do uso do crédito público não é isoladamente boa nem ruim, visto não ser um fim em si mesma. A dívida pública pode ser uma verdadeira benção, como anotado pioneiramente pelo founding father americano Alexander Hamilton, ou uma espada de Dâmocles. Tudo dependerá da qualidade das intervenções que serão por ela financiadas.