Em decisão inédita, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) não tem legitimidade para aplicar e cobrar multas por eventual descumprimento de regras do mercado de comercialização de energia.

A CCEE é pessoa jurídica de direito privado e sua criação foi autorizada pela Lei 10.848/04. Ela tem como objetivo viabilizar a comercialização de energia elétrica entre concessionários, permissionários e autorizatários de serviços e instalações de energia elétrica, assim como seus consumidores.

Ao dispor sobre as normas aplicáveis à comercialização, a Convenção de Comercialização de Energia Elétrica – instituída pela Resolução Normativa Aneel 957/21, da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) – determinou cabível a aplicação de penalidades pela CCEE em caso de descumprimento das normas que governam o ambiente de comercialização de energia elétrica.

De acordo com os limites estabelecidos na Convenção de Comercialização de Energia Elétrica, a CCEE tem aplicado diretamente, no exercício de suas atribuições, penalidades aos agentes do setor elétrico, ajuizando, inclusive, ações de cobrança para recolher esses valores.

Após o tema ter gerado grande discussão, o STJ fixou entendimento de que a aplicação de penalidades no cenário mencionado é função típica do poder público.

No julgamento do Recurso Especial 1.950.332/RJ, os ministros entenderam que não há previsão legal que delegue à CCEE competência para exercer atividades de polícia administrativa. Por isso, deram provimento ao recurso de agente de geração termelétrica e julgaram improcedente ação de cobrança ajuizada pela CCEE para exigir o pagamento de multas pelo não cumprimento de obrigações assumidas no contrato de geração de energia elétrica no âmbito do mercado regulado de energia – principalmente o “não aporte de garantias, penalidades por insuficiência de lastro e contribuições associativas”.

Segundo o relator do caso, ministro Gurgel de Faria, a Lei 10.848/04 não autoriza expressamente a CCEE a aplicar multas a particulares e proceder à cobrança por conta própria.

Essa atribuição só estaria prevista em norma infralegal – Decreto 5.177/04 e Resolução Normativa Aneel 109/04, que instituiu a Convenção de Comercialização de Energia Elétrica, posteriormente revogada pela Resolução Normativa Aneel 957/21. Essas normas não seriam suficientes, do ponto de vista constitucional e legal, para autorizar a CCEE a desempenhar serviço tipicamente público.

 

Para STJ, entendimento do STF não se aplica ao caso

O ministro destacou ainda que não se aplicaria à CCEE o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a possibilidade de delegar às entidades privadas o poder de aplicar sanções no exercício de poder de polícia (Tema 532/RE 633.782).

Ao dispor sobre o tema, o STF determinou que seria possível fazer a delegação a pessoas jurídicas de direito privado integrantes da Administração Pública, cujo capital social seja majoritariamente público e que prestem exclusivamente serviço público, em regime de não concorrência.

No acórdão, o STF estabeleceu algumas premissas, como a exigência de que a entidade integre a Administração Pública direta ou indireta e seus empregados gozem de alguma estabilidade, ainda que sejam regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

O STJ entendeu que a CCEE não se enquadraria na permissão dada pelo STF. Primeiro porque a CCEE não integra a Administração Pública (direta ou indireta) e está submetida às regras privadas. Segundo porque, apesar de ser uma associação civil, a CCEE é integradapor titulares de concessão, permissão ou autorização” e “por outros agentes vinculados aos serviços e às instalações de energia elétrica(art. 4º, §1º, da Lei 10.848/2004).

Ou seja, é essencialmente composta por pessoas jurídicas que têm o lucro como objetivo principal.

Embora ainda exista a possibilidade de ser encaminhada ao STF, a decisão representa um precedente que pode trazer grandes riscos para o setor elétrico. Isso porque, apesar de ser uma associação privada, a CCEE age por delegação do poder concedente, conforme art. 4º, caput, da Lei 10.848/2004, para viabilizar a comercialização de energia elétrica.

Dessa forma, a aplicação de penalidade por falta de lastro e de apresentação de garantias no ambiente de comercialização de energia elétrica, como no caso em questão, é atividade inerente ao papel da CCEE.

Ao exercer essa atividade, a CCEE não age por capricho ou simples discricionariedade, mas em cumprimento ao seu dever legal de viabilizar a comercialização de energia elétrica no país.

Além disso, o argumento de que a CCEE é uma entidade privada não parece suficiente para afastar a competência de aplicar penalidades relacionadas aos contratos de comercialização de energia.

Apesar de ser uma entidade privada, a CCEE conta com a participação de agentes do setor elétrico por meio de adesão, situação em que conhecem e se comprometem a observar todos os termos e condições da Convenção de Comercialização da CCEE.

O afastamento da competência da CCEE para aplicar esse tipo de penalidade parece uma involução no setor de energia elétrica, sobretudo porque o objetivo de criação da CCEE foi justamente garantir mais eficiência na relação entre os agentes e o poder concedente, assim como viabilizar e dar mais dinamismo aos negócios do livre mercado de energia elétrica.

A discussão se agrava ainda mais quando se analisa a decisão que indeferiu a manifestação da Aneel nos autos do recurso especial como amicus curiae.

Na decisão, o ministro limitou-se a indeferir o pedido com base na ausência de necessidade de terceiro para a resolução da lide. A Aneel, porém, tem papel indispensável na discussão, principalmente devido a sua competência para fiscalizar a comercialização de energia elétrica e a execução dos contratos correlatos, nos termos da Lei 9.427/96, que criou a agência.

O indeferimento, portanto, representa um retrocesso da promoção da horizontalidade nas discussões do setor de energia.

Apesar de não se tratar de decisão submetida ao rito dos recursos repetitivos, o precedente é importante para os demais casos que abordem questão análoga. Caso não haja revisão, o setor poderá enfrentar momentos de tensão e dificuldades nos negócios, sobretudo em relação à eficiência e segurança trazidas pela CCEE ao viabilizar as operações de comercialização de energia elétrica.