Em acórdão recentemente publicado, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) firmou o entendimento de que o término da personalidade jurídica da sociedade empresarial a partir da sua incorporação se assemelha ao falecimento da pessoa física. In casu, considerou-se que o término da personalidade jurídica extingue a punibilidade por crime ambiental, assim como ocorre quando morre pessoa física.

O caso se refere a uma denúncia oferecida contra empresa agrícola acusada de causar poluição por meio do lançamento de resíduos sólidos (artigo 54, § 2º, inciso V, da Lei 9.605/98). A defesa arguiu que a denúncia carecia de justa causa pois a ré havia sido incorporada por outra empresa e, portanto, a punibilidade da empresa ré teria sido extinta por analogia ao caso de morte de pessoa física. A nova empresa, por outro lado, não poderia se tornar ré na ação penal por absoluta ilegitimidade de partes, já que ela não havia cometido a suposta conduta criminosa.

O juízo de primeiro grau rejeitou os argumentos da defesa e determinou a continuação da persecução penal. Assim, a defesa – por meio da incorporadora – interpôs mandado de segurança no Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR), argumentando que a decisão de primeiro grau teria violado direito à ampla defesa e ao devido processo legal, já que não foram sequer analisadas na decisão as teses apresentadas sobre ilegitimidade de parte e extinção da punibilidade pela incorporação.

O TJPR[1] acolheu os argumentos da defesa e concedeu o mandado de segurança, reconhecendo que houve violação aos direitos em questão. A corte decretou a nulidade do despacho, mas não apreciou a tese de ilegitimidade de parte ou extinção da punibilidade, sob alegação de que essa análise caracterizaria supressão de instância.

Os autos voltaram à primeira instância, onde as teses preliminares de extinção da punibilidade e ilegitimidade ativa foram expressamente rejeitadas. De acordo com a decisão judicial, a incorporação empresarial implica o recebimento tanto do passivo quanto do ativo da empresa incorporada de modo que a responsabilidade por atos praticados subsiste. Do contrário, se poderia abrir espaço para impunidades.

Foi impetrado um novo mandado de segurança, reforçando as teses da defesa e pleiteando a extinção da punibilidade nos termos do artigo 107, inciso I, do Código Penal.

O TJPR[2] concedeu o mandado de segurança por entender que houve extinção da punibilidade pela incorporação, pois o crime narrado na denúncia correspondia a atividades realizadas dez anos antes da incorporação, e a extinção da pessoa jurídica se equipararia à morte da pessoa física, que extingue a punibilidade por força de lei.

A corte ressalvou, entretanto, que a extinção da responsabilidade se restringe ao âmbito penal, subsistindo as obrigações de caráter cível para a incorporadora.

O Ministério Público então interpôs recurso especial no STJ, alegando que a extinção de punibilidade por morte e o princípio da pessoalidade[3] da pena seriam exclusivos para pessoas físicas.

Ao julgar o recurso especial[4], o relator do caso no STJ arguiu os seguintes pontos:

  • A não equiparação por analogia do princípio da intransferência da punibilidade para a sociedade incorporadora resultaria em situação de responsabilidade objetiva da incorporadora.
  • Pela própria lógica do direito, seria impraticável processar e punir juridicamente um agente que não existe mais para fins do direito brasileiro.
  • Deve haver a interpretação analógica do artigo 107, inciso I, do Código Penal, que elenca a morte do agente como causa de extinção da punibilidade, ao caso em questão, já que haveria a interrupção da existência – em termos jurídicos – do sujeito ativo da conduta averiguada.
  • O fato de o direito penal permitir que sociedades empresariais sejam imputáveis por crimes ambientais implica que, mesmo havendo especificidades para a sua punição, esses réus devem ter todas as garantias fundamentais asseguradas no âmbito do devido processo penal.
  • Seria uma falha da isonomia da legislação penal se os institutos protetivos direcionados aos réus fossem negados às pessoas jurídicas, uma vez que elas também se configuram como sujeitos passivos da persecução penal nessa situação.
  • O princípio da pessoalidade da sanção penal deve ser mantido mesmo que existam particularidades relacionadas ao réu, não sendo afastado pelo seu caráter societário. Ainda que se entenda que o intuito original do instituto estava direcionado a pessoas físicas, isso se dá pela impossibilidade histórica de haver referência aos entes morais, devendo haver analogia em favor do réu nessa lacuna. Além disso, não seria razoável o preenchimento dessa omissão em matéria penal pela transmissibilidade do direito civil prevista nos arts. 1.116 do CC e 227 da Lei 6.404/76.
  • A responsabilidade penal não se equipara à constituição da obrigação patrimonial, que seria transmitida para a sociedade incorporadora. Essa diferenciação necessária se dá pela natureza e finalidade dos institutos. Enquanto a constituição de obrigações advém da vontade humana em relação ao ordenamento jurídico e pode ser concluída por meio do pagamento, a sanção se dá por uma imposição de obrigação e responsabilidade pelo poder público, sendo necessária a mediação desse para a sua aplicação. As consequências jurídicas também divergem, pois, ao passo que a obrigação afeta o patrimônio pelo adimplemento (espontâneo ou forçado) ou gera a resolução em perdas e danos, a pretensão punitiva implica a aplicação de pena, que pode atingir a liberdade, direitos individuais e a vida do sentenciado, para além de seus bens.

O relator votou então pela manutenção da decisão do TJPR e pelo reconhecimento da incorporação como causa de extinção da punibilidade. Ele foi seguido pela maioria dos ministros que fixaram a extinção da punibilidade pela incorporação, desde que ausentes indícios de fraude na realização da incorporação.

O reconhecimento da extinção da punibilidade, contudo, não foi consenso entre os ministros. Houve também votos divergentes para reformar a decisão do TJPR, com os seguintes argumentos:

  • Os tipos penais previstos na Lei 9.605/98, aplicáveis a pessoas jurídicas, institui a responsabilização por meio de obrigações de dar e fazer, que poderiam muito bem ser transmitidas para a incorporadora nas determinações da lei civil.
  • A incorporação é apenas uma morte fictícia, já que a incorporada continua viva na empresa subsequente por meio de suas atividades e funções econômicas. A equiparação a uma analogia de “morte” deveria ser reservada aos casos em que há a dissolução e liquidação da empresa, já que haveria a cessação completa de suas atividades.
  • A incorporação não pode ser equiparada à morte tanto por uma falta de previsão legislativa quanto pelo fato de que não se trata de uma questão irreversível e definitiva.
  • A incorporadora possui meios particulares para a averiguação de procedimentos penais ou administrativos envolvendo a incorporada, não podendo ser extinta a punibilidade em razão do fato de que a operação se deu com ausência de due diligence efetivo ou por cegueira deliberada.
  • A extinção da punibilidade por morte não seria cabível nos casos de incorporação em razão de uma divergência de finalidade dos institutos. Enquanto o primeiro se dá pelo impeditivo lógico da punição, o segundo é um ato particular, não podendo isso extinguir a pretensão punitiva.
  • A extinção da punibilidade nesses casos esvaziaria a eficácia dos dispositivos penais ambientais, já que, havendo uma possível punição, poderá ser cessada a existência da pessoa jurídica, impedindo sua responsabilização.
  • Ainda que se entenda que as pessoas jurídicas têm garantias processuais quando submetidas à persecução penal, devem ser aplicadas apenas aquelas possíveis e o amoldamento do princípio da pessoalidade não é possível.
  • Apenas haveria substancial ofensa ao princípio da pessoalidade se um sócio ou diretor dissidentes na decisão que deu ensejo à conduta criminosa também fossem punidos, o que não ocorreu in casu.
  • Por comparação com o direito penal espanhol, constata-se que a punição da incorporadora não seria uma transferência da punição de uma pessoa para outra, mas sim a perpetuação da responsabilidade de um ilícito previamente constituído.

Com a fixação do entendimento do STJ pela extinção da punibilidade da pessoa jurídica pela incorporação, estabelece-se uma barreira muito bem delimitada do alcance da punição penal, que fica circunscrita ao agente das condutas imputadas. Com isso, institui-se um freio no expansionismo persecutório que caracteriza o direito penal empresarial.

É necessário salientar, porém, que essa decisão se aplica à responsabilização penal das pessoas jurídicas. Ocorre que eventuais danos ou violações da legislação ambiental podem repercutir em três esferas distintas e independentes: administrativa, cível e penal. Como a tese do STJ se restringe às repercussões penais, é possível que a responsabilização das empresas incorporadas subsista em outras esferas.

O STJ apontou não haver indícios de que a incorporação tivesse ocorrido de forma fraudulenta para isentar a incorporada de responsabilidades penais, mas não detalhou os critérios a serem observados para se identificar uma incorporação fraudulenta.

O tema ainda pode ser analisado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) sob o aspecto de conformidade constitucional, mas, no curto prazo, a tese do STJ poderá influenciar eventuais ações penais em andamento e, inclusive, condenações ainda não transitadas em julgado.

 


[1] Decisão proferida em mandado de segurança em 15 de agosto de 2019.

[2] Decisão proferida em mandado de segurança em 10 de outubro de 2020.

[3] Trata-se da norma principiológica que dispõe que a pena não pode transcender para além da pessoa a quem foi imputada a conduta tipificada. Encontra-se positivada no artigo 5º, inciso XLV, da Constituição da República.

[4] STJ, Recurso Especial 1.977.172/PR, 3ª Seção, Rel. Min. Ribeiro Dantas.