O ano de 2023 foi marcado pelo embate entre as decisões proferidas pela Justiça do Trabalho e o Supremo Tribunal Federal (STF), em especial no que se refere à aceitação da validade de outras modalidades de relação de trabalho, para além do vínculo empregatício previsto na CLT.

Apesar das decisões proferidas pelo STF em ações de controle concentrado de constitucionalidade (ADPF 324, ADC 48, ADIs 3.961 e 5.625) e da tese firmada em repercussão geral no julgamento do RE 958252 (Tema 725), a Justiça do Trabalho segue reconhecendo a ilicitude de outras modalidades de contratação.

Esse entendimento se amparou, por vezes, em ideais doutrinários utilizados como fundamento para que relações jurídicas reguladas por instrumentos diversos fossem consideradas fraudulentas e acabassem tendo o vínculo empregatício reconhecido como o estabelecido na CLT.

Como resultado, houve uma enxurrada de reclamações constitucionais que culminaram em centenas de decisões do STF anulando as decisões proferidas pela Justiça do Trabalho, devido à inobservância dos precedentes da Suprema Corte. Essas decisões do STF, por vezes, vêm acompanhadas de críticas severas sobre a forma de prestação jurisdicional da Justiça do Trabalho.

A Justiça do Trabalho, por sua vez, sente-se cada vez mais atacada, diante das ameaças de esvaziamento de sua competência e constante cassação pelo STF de entendimentos até então consolidados na justiça laboral.

Os embates entre o STF e a Justiça do Trabalho demonstram que ainda estamos longe de alcançar os objetivos do legislador relacionados à redução da litigiosidade repetitiva, à garantia da isonomia aos jurisdicionados e ao aumento da segurança jurídica da atividade jurisdicional. Não é de hoje que o ordenamento jurídico brasileiro se estrutura para alcançar esses objetivos, o que se deu com as reformas no antigo Código de Processo Civil, a Emenda Constitucional 45, a promulgação do Código de Processo Civil em 2015, a Reforma Trabalhista em 2017, dentre outros.

Com a promulgação da Emenda Constitucional 45 (EC 45/03), o constituinte introduziu em nosso ordenamento jurídico a figura da súmula vinculante. Tomadas as devidas proporções, essa iniciativa é uma aproximação da ideia do dever de observância do precedente judicial presente no commom law. O objetivo é justamente impor um mecanismo normativo que auxilie na uniformização da jurisprudência e conceda maior segurança jurídica aos jurisdicionados.

No mesmo sentido, o Código de Processo Civil de 2015 impõe aos magistrados a observância não só das súmulas vinculantes, mas também de todas as decisões proferidas pelo STF em controle concentrado de constitucionalidade, em acórdãos de incidentes de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinários e especial repetitivos, das súmulas proferidas pelo STF e STJ. O mesmo se aplica às orientações do plenário ou do órgão especial dos tribunais a que estão vinculados.

Apesar dos esforços do legislador em impor mecanismos de pacificação social da atividade jurisdicional, passados 20 anos da EC 45/03 e quase uma década da vigência do “Novo” CPC, poucos foram os avanços para reduzir a litigiosidade repetitiva. Ainda há muitas decisões conflitantes sobre o mesmo tema, o que gera inegável insegurança jurídica aos jurisdicionados trabalhistas.

Muito se diz sobre as divergências políticas existentes entre os dois órgãos jurisdicionais como causa desses posicionamentos conflitantes. No entanto, nos parece que a dificuldade em conferir maior segurança jurídica nas decisões está, na verdade, intrinsecamente relacionada ao uso indevido da discricionariedade na atividade jurisdicional, que deve ser reprovada em qualquer instância.

No âmbito da Justiça do Trabalho, apesar de a Constituição conferir a competência para que esse órgão jurisdicional processe e julgue toda e qualquer controvérsia sobre relações de trabalho, de forma geral, o que se observava era um quase enquadramento automático da relação jurídica existente entre as partes à CLT.

Muitas vezes essa prática era feita de maneira discricionária, como forma de proteger uma das partes do que se entendia como precarização do trabalho, ignorando por completo as circunstâncias que permeavam outras modalidades de contratação. Isso levou a discussão ao STF para que o tema pudesse ser pacificado.

Atualmente, mesmo diante das decisões vinculantes do STF, permanece agindo de forma discricionária ao sequer ponderar os precedentes do STF quando se depara com discussões sobre invalidação de relações jurídicas sem vínculo empregatício.

Por força legal e constitucional, as decisões proferidas pelo STF em ações de controle concentrado de constitucionalidade – como é o caso das proferidas na ADPF 324, ADC 48, ADIs 3.961 e 5.625, assim como no acórdão do RE 958252, que ocasionou a tese de repercussão geral prevista no enunciado do Tema 725 – consistem em fontes formais do direito do trabalho.

Essas decisões não podem, como vem fazendo parte dos magistrados trabalhistas, ser ignoradas na entrega da prestação jurisdicional. É legítima, portanto, a intenção do STF de frear as decisões que, amparadas em atos discricionários, ignoram a existência de decisões vinculantes.

Por outro lado, a existência de decisões vinculantes mencionadas acima não pode ter o poder de afastar a competência funcional da Justiça do Trabalho, prevista na Constituição, de processar e julgar conflitos relacionados às relações de trabalho. Aos magistrados trabalhistas cabe a prerrogativa de proceder com a interpretação hermenêutica do direito do trabalho, em todas as suas fontes, o que inclui as decisões vinculantes, com a autonomia para deixar de aplicá-las, desde que devidamente utilizadas as técnicas para a superação de precedentes, com destaque para o distinguishing e o overruling.

Nesse sentido, nos parece que a solução de impasses desse tipo somente ocorrerá quando os órgãos jurisdicionais superarem ideologias totalitárias e abolirem de modo definitivo a adoção de critérios discricionários na prestação jurisdicional, utilizando-se de técnicas para a formação e interpretação de precedentes. Trata-se de uma atitude necessária para que se possa assegurar maior segurança jurídica e acesso à Justiça de forma célere e eficiente a todos os jurisdicionados.

Certamente, são esses os votos de todos os operadores do direito para 2024, especialmente aqueles que militam na Justiça do Trabalho.