Um tema vem provocando debates na esfera administrativa tributária do Estado de São Paulo: a lavratura de autos de infração e imposição de multa (AIIM), com fundamento no artigo 84-A da Lei nº 6.374/89, para desconsiderar os atos e negócios jurídicos praticados por contribuintes.

Esse dispositivo legal dispõe sobre a possibilidade de a autoridade fiscal “desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária”.

Sustentam as autoridades fiscais do Estado de São Paulo que o artigo 84-A da Lei nº 6.374/89 encontraria seu fundamento de validade nas disposições contidas no artigo 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional (CTN), também conhecido como norma geral antielisiva.

O artigo 116 do CTN foi introduzido pela Lei Complementar nº 104, de 10 de janeiro de 2001 (LC 104/01). Seu objetivo é reiterar, no âmbito do direito tributário, a ilicitude dos negócios jurídicos simulados, nos seguintes termos:

Art. 116 – Salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido o fato gerador e existente seus efeitos:(...)  Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.

O parágrafo único do artigo 116 do CTN é alvo de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI nº 2446) pela Confederação Nacional do Comércio. Em breve síntese, sustenta-se que: (i) o dispositivo fere o princípio da legalidade e segurança jurídica, na medida em que possibilita à autoridade administrativa desconsiderar negócios jurídicos ainda que praticados nos termos da lei; (ii) há violação ao princípio da separação dos poderes na medida em que se autoriza a autoridade administrativa a instituir e cobrar tributo no lugar do legislador; (iii) o assunto que se pretende legislar é da seara do direito privado (art. 109 do CTN), não podendo o legislador tributário alterá-lo; e (v) no limite, a regra prevista no dispositivo instituiria a tributação com base na intenção finalística da operação, o que levaria a exigência do tributo por analogia, o que é vedado pelo artigo 108 do Código Tributário Nacional. Essa ADI aguarda julgamento no Supremo Tribunal Federal desde 2001, estando atualmente sob a relatoria da ministra Cármen Lúcia.

Fora a discussão da constitucionalidade desse dispositivo, ao analisar literalmente a norma veiculada pelo artigo 116 do CTN, verifica-se que ela não é autoaplicável, pois outorga à lei ordinária a competência para estabelecer os procedimentos que deverão ser observados pelas autoridades fiscais na desconsideração de atos ou negócios jurídicos praticados pelos contribuintes, lei esta que inexiste até o presente momento.

Essa inaplicabilidade automática do referido artigo é reforçada pelo Parecer n° 1.257/2000 da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal, que, ao aprovar o Projeto de Lei Complementar n° 77 (convertido na LC 104/01), expressamente afirmou que o dispositivo inserido no artigo 116 do CTN não é autoaplicável: “Importante assinalar que o dispositivo ora em deliberação não será autoaplicável, pois dependerá de lei integrativa para que se fixem os limites da prerrogativa conferida à Administração Fiscal”. A corroborar esse entendimento, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do REsp n° 1.107.518/SC, concluiu pela impossibilidade de requalificação dos atos e negócios jurídicos, “já que o art. 116, parágrafo único, do CTN é norma de eficácia limitada, carente de lei para produzir efeitos”.

Em decorrência desse cenário, foram inúmeras as tentativas do Poder Executivo de introduzir no ordenamento a regulamentação, via Medida Provisória (como a MP 66/02), das condições e limites de “requalificação”, para fins tributários, de negócios jurídicos lícitos. A reação do Congresso Nacional foi imediata e resultou na não conversão em lei dos artigos da MP 66/02 que tratavam da matéria. Ainda assim, as autoridades fiscais vêm se esforçando para ver aplicados princípios assemelhados aos da MP 66/02, independentemente de eles estarem ou não previstos no ordenamento jurídico tributário.


"Até que seja editada lei ordinária sobre o tema, não há que se falar em norma antielisiva e, por consequência, em desconsideração de atos ou negócios jurídicos praticados por contribuintes sob o fundamento de dissimulação por qualquer ente federativo"

Assim sendo, até que seja editada lei ordinária sobre o tema, não há que se falar em norma antielisiva e, por consequência, em desconsideração de atos ou negócios jurídicos praticados por contribuintes sob o fundamento de dissimulação por qualquer ente federativo.

Para tumultuar toda essa discussão e trazer mais insegurança jurídica aos contribuintes, alguns entes tributantes, como o Estado de São Paulo, entenderam-se competentes para tratar da matéria delegada pelo parágrafo único do artigo 116 do CTN, provavelmente sob o manto do artigo 24 da CF/88.

De fato, esse dispositivo constitucional traz competência concorrente entre União e estados para legislar sobre direito tributário. No entanto, o parágrafo primeiro do mesmo dispositivo diz claramente que, no âmbito dessa competência, é a União que estabelecerá normas gerais. Ainda, nos parágrafos segundo e terceiro do mesmo dispositivo constitucional, os estados têm competência suplementar para esse assunto, podendo exercer competência legislativa plena no caso de omissão por parte da União.

A regra do parágrafo único do artigo 116 claramente se configura como norma geral, estando inserida dentro do Título II – “Obrigação Tributária”, Capítulo II – “Fato Gerador”, do Código Tributário Nacional. O próprio artigo 146, III, “b” da CF diz que cabe à lei complementar dispor sobre “obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários”.

Em tese, seria até possível sustentar a competência suplementar dos estados para regulamentar o parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional (até eventual superveniência de lei federal sobre normas gerais, onde se suspenderia a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário, nos termos do parágrafo quarto do artigo 24 da CF/88). Exclusivamente sob essa óptica, o artigo 84-A da Lei nº 6.374/89 poderia, frise-se, em tese, encontrar algum fundamento de constitucionalidade.

No entanto, quando se analisa o teor do referido dispositivo legal, verifica-se que o legislador ordinário foi bem além da competência que teoricamente lhe teria sido atribuída:

“Art. 84-A. A autoridade fiscal pode desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária. (Artigo acrescentado pela Lei nº 11.001, de 21.12.2001, DOE SP de 22.12.2001)”

Tal artigo permite que a autoridade administrativa desconsidere atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador. Ou seja, é atribuída uma competência absoluta, e com base em critérios totalmente subjetivos, para a desconsideração do negócio jurídico, o que diverge do mandamento contido no parágrafo único do art. 116 do CTN.

Isso porque, mesmo se utilizando da competência suplementar, a direção do parágrafo único do artigo 116 do CTN foi no sentido de que ao legislador ordinário caberia instituir e regulamentar procedimentos que fossem seguidos pela autoridade administrativa para desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária.

Não é, todavia, esse o conteúdo do artigo 84-A da lei paulista. Não há qualquer procedimento previsto na lei a ser seguido pela autoridade administrativa para essa situação. A lei estadual simplesmente confere à autoridade administrativa competência plena para desconsiderar negócios jurídicos, quando a ela caberia instituir procedimentos.

A nosso ver, se nem o CTN, que é lei complementar por natureza e tem autorização exclusiva da CF/88 para tratar de normas gerais sobre lançamento tributário, conferiu competência à autoridade administrativa para desconsiderar negócios jurídicos sem lei que estabeleça procedimentos para tanto, não poderia a lei estadual fazê-lo. Isto é, ao legislador ordinário é conferida apenas e tão somente a competência para definir os procedimentos de realização do ato de lançamento que poderá desconsiderar ato ou negócio jurídico. Tal afirmação é ainda mais robusta se considerada como aceitável a competência suplementar do legislador estadual para essa finalidade.

Embora o dispositivo legal objeto da presente discussão exista na legislação paulista desde 2001, pouco se via, na prática, as autoridades administrativas se utilizarem dele para realizar autuações fiscais. Entretanto, mais recentemente, verificamos a lavratura de autos de infração com base no art. 84-A para desconsiderar ato ou negócio jurídico validamente implementado e exigir ICMS sobre a operação entendida como a efetivamente realizada.

A nosso ver, autuações pelo fisco paulista com base no art. 84-A da Lei nº 6.374/89 são claramente ilegais e, mais cedo ou mais tarde, serão definitivamente canceladas por se basearem em um dispositivo sem qualquer validade, colocando em risco os pilares do direito tributário, como a observância do princípio da estrita legalidade e a garantia da segurança jurídica e da certeza do direito.