O controle de constitucionalidade de todas as normas introduzidas no sistema do direito positivo brasileiro é conferido, em última instância, ao Supremo Tribunal Federal (STF).[1] A compatibilidade das normas com a interpretação mais adequada da Constituição Federal é importante meio para aferir a validade delas perante o ordenamento brasileiro, daí a relevância do papel da Corte.

A Constituição está no ápice do ordenamento jurídico, de modo que todas as normas introduzidas no sistema, para que possam ser consideradas válidas e, consequentemente, produzir efeitos, devem guardar estrita conformidade com o texto constitucional. Isso é relevante porque, em certas ocasiões, pode haver confronto entre princípios e/ou regras inseridas na Constituição Federal. Nesses casos, deverão ser perquiridos todos os valores envolvidos e o objeto jurídico protegido para que se alcance uma solução conforme a Constituição, ou seja, se dê prevalência ao valor hierarquicamente superior.

O respeito estrito aos comandos da Constituição constitui medida de segurança jurídica, já que ela prescreve as normas essenciais do ordenamento e qualquer violação às suas determinações caracteriza grave ofensa às suas bases fundamentais. Não é por outro motivo que as normas que apresentam vícios perante a Constituição são inválidas. A declaração de inconstitucionalidade de uma lei tem efeito retroativo, em regra, o que, ao menos em tese, implica na retirada do mundo jurídico de todas as consequências decorrentes de sua aplicação. Na prática, após a declaração de inconstitucionalidade da norma, deve-se restaurar a situação anterior.

Muito embora o reconhecimento da inconstitucionalidade da lei ou norma afaste os efeitos das condutas nela pautadas (efeito retroativo da declaração de inconstitucionalidade), esses efeitos têm a presunção de constitucionalidade, desde que emanados do órgão competente e consoante o rito previsto. Isso quer dizer que, enquanto não for declarada a inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo pelo órgão competente, seus efeitos devem ser observados.

Pode-se afirmar que o controle de constitucionalidade das leis e normas é, de fato, a investigação da sua compatibilidade e validade perante o sistema no qual foi inserida. O referencial para essa avaliação é o texto constitucional e a interpretação conferida pelo STF vigentes quando uma nova norma é introduzida no sistema.

Não se admite no ordenamento brasileiro a chamada constitucionalidade superveniente. Isso ocorreria se uma norma introduzida não encontrasse fundamento de validade no texto constitucional vigente no instante da sua introdução no sistema, mas, em virtude de uma modificação da Constituição Federal ou mesmo de uma lei de hierarquia superior (lei complementar, por exemplo), tivesse sua compatibilidade atestada posteriormente, como se o vício inerente ao diploma legislativo no momento da sua edição pudesse ser corrigido.

O STF já teve oportunidade de enfrentar o tema em algumas oportunidades e daremos especial atenção a alguns casos envolvendo matéria tributária.

No julgamento do Recurso Extraordinário 390.840,[2] o STF analisou a constitucionalidade do artigo 3º, § 1º, da Lei 9.718/98, que alterou a base de cálculo das Contribuições ao PIS e à Cofins.

A Lei 9.718 foi publicada no dia 28 de novembro de 1998, momento no qual o artigo 195, inciso I, da Constituição Federal, autorizava a criação de contribuição social incidente sobre o faturamento da pessoa jurídica. Naquela época, entendia-se que faturamento compreendia as receitas auferidas pela pessoa jurídica em decorrência da venda de mercadorias ou prestação de serviços.

Contudo, a alteração promovida pelo artigo 3º, §1º, da Lei 9.718/98, estabelecia que, para fins de apuração do PIS e da Cofins, o faturamento compreenderia a receita bruta da pessoa jurídica, entendida como a totalidade das receitas auferidas. Com isso, houve o alargamento da base de cálculo do PIS e da Cofins, sem que o texto constitucional tivesse autorizado a criação de contribuição sobre receita.

Antes que os efeitos do artigo 3º, §1º, da Lei 9.718/98 tivessem início, em fevereiro de 1999 foi promulgada a Emenda Constitucional 20, de 15 de dezembro de 1998, que modificou a redação do inciso I do artigo 195 da Constituição Federal, acrescentando que poderia ser instituída contribuição social também sobre a receita da pessoa jurídica.

Ao apreciar o Recurso Extraordinário 390.840, o STF entendeu pela inconstitucionalidade do artigo 3º, §1º, da Lei 9.718/98, visto que, no instante da sua publicação, que marca a sua introdução no sistema, a Constituição Federal não autorizava a incidência de contribuição social sobre a receita da pessoa jurídica. Além disso, o fato de a Emenda Constitucional 20/98 ter sido promulgada antes do início da produção dos efeitos do dispositivo não afeta o exame da constitucionalidade, que se volta ao instante do ingresso da norma no sistema. Portanto, o STF foi preciso ao afirmar que “o sistema jurídico brasileiro não contempla a figura da constitucionalidade superveniente”.

Acrescente-se que, no julgamento do Recurso Extraordinário 1.221.330,[3] foi debatida a constitucionalidade de lei estadual[4] editada após a promulgação da Emenda Constitucional 33, de 11 de dezembro de 2001. Essa emenda constitucional incluiu entre as hipóteses de incidência do ICMS a importação de bens por pessoa física ou jurídica não contribuinte do imposto.

Porém, antes da Lei Complementar 114, de dezembro de 2002, que alterou a Lei Complementar 87/96 e adicionou essa nova hipótese de incidência do ICMS, alguns estados modificaram sua legislação interna. Assim, o cerne da discussão era: a lei estadual editada com base na emenda constitucional, mas antes da modificação da lei complementar, é constitucional?

Prevaleceu no STF o entendimento de que as leis estaduais são constitucionais, visto que o texto constitucional, com as modificações da Emenda Constitucional 33/01, autorizou a incidência do ICMS sobre a importação de bens por não contribuinte. Entretanto, tendo em vista o artigo 155, § 2º, inciso XII, alínea ‘a’, da Constitucional Federal, que exige lei complementar para definir o contribuinte do imposto, somente após a entrada em vigor da Lei Complementar 114/02 as leis estaduais passariam a produzir efeitos.

Nesse caso, o STF adotou uma posição intermediária sobre a constitucionalidade superveniente com a qual não concordamos. Foi mantida a premissa de que a nova lei deve estar em consonância com as disposições da Constituição Federal do momento da sua introdução no sistema, na parte relativa à hipótese de incidência do ICMS. No entanto, foi flexibilizada a exigência de lei complementar para que os estados da federação pudessem modificar a sua legislação interna.

Em outras palavras, o STF decidiu que a condição do artigo 155, § 2º, inciso XII, alínea ‘a’, que prevê que a lei complementar definirá o contribuinte do ICMS, seria um requisito de eficácia (para permitir a produção de efeitos) das leis estaduais. Logo, conclui-se pela constitucionalidade das leis estaduais, que somente produziriam efeitos após a edição da Lei Complementar 114/02.

Nossa discordância diz respeito à flexibilização adotada pelo STF quanto ao cumprimento de todos os mandamentos constitucionais que tratam da matéria. Para que os estados instituam o ICMS em seus territórios, devem ser observadas as hipóteses previstas na Constituição Federal e, da mesma forma, a lei complementar que tratará dos tópicos elencados no próprio texto fundamental. Ou seja, para essa análise, a constitucionalidade de uma lei estadual está condicionada ao atendimento dos dois requisitos. Descumprido qualquer um, a lei estadual estará viciada e, portanto, deverá ser declarada inconstitucional.

São requisitos cumulativos para aferição da constitucionalidade da lei, sendo inapropriado considerar a exigência de lei complementar como condicionante para que as leis estaduais possam começar a produzir efeito.

O tema da possibilidade de constitucionalidade superveniente deverá ser novamente apreciado pelo STF no julgamento do Recurso Extraordinário 592.152.[5] A discussão, no caso, é quanto à constitucionalidade das leis estaduais que instituíram Fundos Estaduais de Combate à Pobreza, financiados com adicional da alíquota do ICMS, sem a observância do artigo 82 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, com a redação da Emenda Constitucional 31/00, mas que vieram a ser convalidados pelo artigo 4º da Emenda Constitucional 42/03.

É também oportuno tecer considerações sobre o tema levando em conta a recente Lei Complementar 190, publicada em 5 de janeiro de 2022.

No julgamento do Recurso Extraordinário 1.287.019,[6] tema 1.093 da repercussão geral, o STF decidiu pela inconstitucionalidade da exigência do diferencial de alíquota do ICMS nas vendas de mercadorias a consumidor final não contribuinte do imposto localizado em estado distinto do remetente, uma vez que, no momento do julgamento, ainda não tinha sido editada lei complementar. A Emenda Constitucional 87/15 modificou o artigo 155 da Constituição Federal e estabeleceu que, nas operações interestaduais com consumidor final não contribuinte do ICMS, o estado de destino poderia cobrar o diferencial de alíquota do imposto. Até então, o diferencial de alíquota poderia ser cobrado apenas em operação interestadual com contribuinte do imposto.

Contudo, antes da edição de lei complementar para alterar o texto da Lei Complementar 87/96, muitos estados introduziram leis estaduais dispondo sobre a cobrança do diferencial de alíquota do ICMS nas operações interestaduais com não contribuinte.

No acórdão proferido no Recurso Extraordinário 1.287.019, o STF reconheceu a inconstitucionalidade da cobrança do diferencial de alíquota enquanto não for criada uma lei complementar para dispor sobre essa exigência. Com finalidade de obstar o ajuizamento de inúmeras ações com pedido de repetição dos valores recolhidos até aquele momento, houve a modulação dos efeitos da decisão nessa parte, para que a orientação passasse a produzir efeitos a partir de 2022. A decisão foi proferida em 24 de fevereiro de 2021 e publicada em 25 de maio de 2021.

Na linha da decisão do STF, a expectativa era que uma lei complementar fosse editada e publicada em 2021, para que, a partir de 2022, o diferencial de alíquota nas operações interestaduais com não contribuinte do ICMS pudesse ser validamente exigido pelos estados, após a modificação das suas respectivas leis internas.

Não foi isso que ocorreu. Apenas em 5 de janeiro de 2022 foi publicada a Lei Complementar 190, que reproduziu a nova hipótese para cobrança do diferencial de alíquota do ICMS nas operações interestaduais com não contribuinte. Quanto à produção de efeitos, o artigo 3º da Lei Complementar 190/22 prevê que deve ser observado o artigo 150, inciso III, alínea ‘c’, da Constituição Federal (princípios da anterioridade geral e nonagesimal).

Todas essas circunstâncias levam à conclusão de que a Lei Complementar 190/22 produzirá efeitos a partir de 1º de janeiro de 2023. Além disso, as leis estaduais que preveem a exigência do diferencial de alíquota do ICMS nas operações interestaduais com não contribuinte editadas antes da publicação da lei complementar contêm o vício da inconstitucionalidade, razão pela qual, para que os estados possam cobrar o tributo, deverão criar novas normas, uma vez que, como demonstrado, não se admite a constitucionalidade superveniente no Brasil.

Conclui-se, portanto, que a chamada constitucionalidade superveniente não encontra respaldo no ordenamento brasileiro, e a jurisprudência do STF confirma essa posição. A aferição da constitucionalidade de uma nova lei deve ser feita com base no texto constitucional em vigor no momento da sua introdução, de modo que eventuais modificações posteriores não têm o poder de corrigir um vício existente na norma desde a sua criação.

 


[1] Essa função também é desempenhada por todos os integrantes do Poder Judiciário, mas neste texto vamos nos concentrar na atuação do STF.

[2] RE 390840, relator min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 09/11/2005, DJ 15/08/2006.

[3] RE 1.221.330, Relator Min. Luiz Fux, Relator para Acórdão Min. Alexandre De Moraes, Tribunal Pleno, julgado em 16/06/2020, DJ 17/08/2020.

[4] No caso, a discussão foi relativa à Lei do Estado de São Paulo, de número 11.001/2001. Porém, considerando o caráter nacional do ICMS e exigência por todos os Estados da Federação, o racional é aplicável para todos.

[5] O relator é o min. Ricardo Lewandowski.

[6] RE 1287019, relator min. Marco Aurélio, relator para acórdão min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 24/02/2021, DJ 25/05/2021.