As empresas foram surpreendidas, em setembro do ano passado, com a edição do Convênio ICMS 106, que visa disciplinar os procedimentos de cobrança do ICMS incidente nas operações com bens e mercadorias digitais, comercializadas por meio de transferência eletrônica de dados, e concede isenção nas saídas anteriores à saída destinada a consumidor final.

Antes de tratar da constitucionalidade do convênio, é importante destacar que a discussão acerca da possibilidade de cobrança do ICMS sobre o software disponibilizado de forma eletrônica é tema há muito discutido pelas fazendas estaduais.

De fato, os estados adotam o posicionamento de que todos os softwares, programas, jogos eletrônicos, aplicativos, arquivos eletrônicos e congêneres que sejam padronizados, ainda que tenham sido ou possam ser adaptados, enquadram-se no conceito de mercadoria. Essa é inclusive a lógica por trás do próprio Convênio nº 106/2017.

Nesse sentido, uma vez enquadradas como mercadoria, a comercialização e a disponibilização de software devem seguir a regra geral de tributação da legislação de regência do ICMS.

Considerando essa lógica, fica fácil compreender por que os estados entenderam que o Convênio nº 106/2017 não teria inovado o ordenamento jurídico com relação à tributação da comercialização e disponibilização de software (considerando sua equiparação a mercadoria). A única exceção teria sido o estabelecimento de isenção nas operações que antecedem a chegada da mercadoria ao consumidor final, nos termos da cláusula segunda do convênio.

Ocorre, entretanto, que o tema comporta muito mais discussões, em nossa opinião, especialmente em razão: (i) do estabelecimento da presunção de que todas as operações com software seriam internas; (ii) do estabelecimento do contribuinte; e (ii) da responsabilização de terceiros sem relação com o fato gerador do ICMS pelo recolhimento do ICMS devido na operação.

Especificamente no que concerne aos itens “i” e “ii”, as cláusulas terceira e quarta do Convênio nº 106/2017 dispõem que:

  • Cláusula terceira O imposto será recolhido nas saídas internas e nas importações realizadas por meio de site ou de plataforma eletrônica que efetue a venda ou a disponibilização, ainda que por intermédio de pagamento periódico, de bens e mercadorias digitais mediante transferência eletrônica de dados, na unidade federada onde é domiciliado ou estabelecido o adquirente do bem ou mercadoria digital.

  • Cláusula quarta A pessoa jurídica detentora de site ou de plataforma eletrônica que realize a venda ou a disponibilização, ainda que por intermédio de pagamento periódico, de bens e mercadorias digitais mediante transferência eletrônica de dados, é o contribuinte da operação e deverá inscrever-se nas unidades federadas em que praticar as saídas internas ou de importação destinadas a consumidor final, sendo facultada, a critério de cada unidade federada: (...)

Da análise do trecho transcrito acima, entendemos possível defender que o Convênio nº 106/2017 invade a competência da lei complementar para fixar não apenas o local das operações relativas à circulação de mercadorias para efeito de cobrança, mas também o sujeito passivo – no caso o contribuinte, violando o art. 155, § 2º, inciso XII, “d”, da Constituição Federal.

Nesse sentido, vale lembrar que, nos termos do art. 155, § 2º, inciso XII, “g”, da Constituição Federal, e do art. 1º da Lei Complementar nº 24/1975, cabe aos convênios disporem apenas sobre a concessão ou revogação de isenções, incentivos e benefícios fiscais, não sendo defeso a esse tipo de normativo disciplinar a forma de cobrança do ICMS ou determinar o contribuinte.

Em nosso modo de ver, o convênio visa instituir uma tributação do imposto estadual com base no consumo da mercadoria (tributação do destino). Entretanto, em razão de políticas econômicas-fiscais, essas tributações estão restritas às operações com petróleo – inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados – e energia elétrica, conforme art. 155, X, ‘b’ da Carta Magna.

Entendemos, portanto, que existem argumentos para alegar a inconstitucionalidade do Convênio nº 106/2017 por pretender transformar uma suposta “operação interestadual” em “operação interna” sem base em lei complementar. Até porque tal medida também violaria de forma indireta a competência do Senado Federal para definir as alíquotas de ICMS incidentes nas operações interestaduais com mercadorias (nos termos do art. 155, § 2º, IV, da Constituição Federal).

Já quanto à responsabilização de terceiros sem relação com o fato gerador do ICMS pelo recolhimento do ICMS devido na operação, a Constituição Federal atribui à lei complementar a competência para definir componentes da regra matriz dos tributos, como contribuinte, fato gerador, obrigação, entre outros.

Quanto ao ICMS, a Constituição Federal, visando garantir maior segurança jurídica, atribui à lei complementar diversos aspectos da regra matriz de incidência do imposto estadual, entre eles, o contribuinte, conforme já exposto.

Sobre esse ponto, o Código Tributário Nacional define, em seu artigo 128, que a lei poderá atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa vinculada ao fato gerador.

Assim, dois são os requisitos para atribuição da responsabilidade tributária, quais sejam: (i) obrigatoriedade de edição de lei; e (ii) o responsável deve estar relacionado ao fato gerador.

Da análise do Convênio nº 106/2017, verificamos em sua cláusula quinta, a atribuição expressa de responsabilidade pelo recolhimento do ICMS a terceiros. Entretanto, a nosso ver, há argumentos para sustentar a ilegalidade do convênio, tendo em vista a ausência de lei outorgando tal responsabilidade.

Além disso, da análise dos responsáveis elencados pela cláusula quinta, quer no parecer questionável sua vinculação com fato gerador do imposto estadual, uma vez que, em alguns casos, trata-se apenas de pessoas jurídicas responsáveis pelo mero repasse monetário.

Considerando o acima exposto, e a despeito do nosso entendimento sobre a correta tributação da comercialização e disponibilização de software (ISS vs ICMS), entendemos que existem argumentos para sustentar que a forma de cobrança imposta pelo Convênio nº 106/2017 é inconstitucional.

Essa conclusão é corroborada pela decisão liminar recentemente deferida no mandado de segurança coletivo apresentado pela Brasscom – Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação, em face do Convênio nº 106/2017.