O plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou, no fim de junho, a ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) apresentada em 2021 pelo Partido dos Trabalhadores (PT) contra modificações promovidas pelo Decreto 10.833/21 em dispositivos do Decreto 4.074/02 – que regulamenta a Lei de Agrotóxicos (Lei 7.802/89).

O partido alegou que as alterações mencionadas flexibilizaram as normas que tratam da liberação e/ou reclassificação de agrotóxicos, o que violaria diversos direitos fundamentais, como o direito à dignidade da pessoa humana, à vida, ao meio ambiente e à saúde.

O julgamento foi relatado pela ministra Cármen Lúcia e decidido por maioria, com voto dissidente do ministro André Mendonça.

Para facilitar a compreensão do voto, segue abaixo tabela com a indicação do dispositivo impugnado, o resultado do julgamento e os respectivos fundamentos:

Dispositivo Resultado julgamento Fundamentos da decisão
Art. 2º, inciso III, do Decreto 4.074/02, revogado pelo art. 6º, inciso I, do Decreto 10.833/21 Declarado inconstitucional.

O dispositivo estabelecia ser atribuição dos ministérios da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), da Saúde e do Meio Ambiente determinar os limites máximos de resíduos (LMR) e intervalos de segurança de aplicação de agrotóxicos e afins.

A revogação do dispositivo representa nítido retrocesso socioambiental, já que é despropositado manter somente com o Ministério da Saúde a determinação de definir os LMRs e intervalos de segurança.

A atuação conjunta, o diálogo institucional e a cooperação técnica e multidisciplinar são fundamentais para o aperfeiçoamento das políticas públicas estatais, ao garantir maior eficácia ao princípio constitucional da eficiência e aos princípios da prevenção e precaução.

Inciso X do art. 2º e §§ 2º e 3º do art. 69 do Decreto 4.074/02, alterados pelo Decreto 10.833/21 Declarado inconstitucional. A alteração afastou o dever de apresentar laudos de análise de teor de impurezas. Além disso, com a modificação, o Mapa, o Ministério da Saúde e o Ministério do Meio Ambiente deixaram de controlar a qualidade dos agrotóxicos e passaram apenas a monitorar e fiscalizar o que foi feito pelos produtores. Segundo o voto da ministra Cármen Lúcia, as alterações violam os princípios da prevenção, da precaução e da vedação do retrocesso, pois afrouxa o dever da Administração Pública de fazer o controle de agrotóxicos.
Art. 3º do Decreto 4.074/02, alterado pelo Decreto  10.833/21 A arguição não demonstrou problema que comprometesse a validade constitucional da norma. A validade constitucional do dispositivo não é comprometida ao incluir o Mapa na atuação conjunta com o Ministério da Saúde na fiscalização de resíduos de agrotóxicos em produtos de origem animal, o que só otimiza a eficácia do direito fundamental à saúde.
Inciso I do § 14º do art. 10 do Decreto 4.074/02, alterado pelo Decreto 10.883/21 Interpretação do dispositivo conforme a Constituição, para que a expressão “mesmo ingrediente ativo” seja compreendida como a totalidade dos ingredientes ativos dos produtos técnicos, pré-misturas, agrotóxicos ou afins que busque se registrar. Para que não haja vício de inconstitucionalidade na norma do dispositivo, a dispensa dos estudos de eficiência e praticabilidade somente poderá  ser válida nos casos em que a formulação do produto que se pretende registrar tenha os mesmos ingredientes ativos especificados no produto já registrado.
Art. 12-C do Decreto 4.074/02, incluído pelo Decreto 10.883/21 A arguição não demonstrou problema que comprometesse a validade constitucional da norma.

A alegação do arguente de que a alteração permitiria ao Mapa estabelecer, por regulamento específico, prioridade de registro de agrotóxicos, o que violaria direitos fundamentais, não prospera.

O arguente não provou que essa medida configuraria inobservância, pelos ministérios da Saúde e Meio Ambiente, dos requisitos previstos nas normas aplicáveis aos procedimentos específicos de controle de agrotóxicos nesses órgãos.

Além disso, a Portaria Mapa 163/15 estabelece os critérios para priorização de análises de processos de registro de produtos e tecnologias para uso na agricultura, com o objetivo de manter a sanidade dos vegetais. Para confirmar o alegado pelo arguente, a análise dessa portaria seria necessária, o que é incabível no  controle abstrato de constitucionalidade.

Art. 15 do Decreto 4.074/02, alterado pelo Decreto 10.833/21 A arguição não demonstrou problema que comprometesse a validade constitucional da norma.

Ao contrário do que alega o arguente, não ficou demonstrado prejuízo na alteração dos prazos por meio da norma vigente. A alteração normativa questionada ampliou os prazos máximos para conclusão das avaliações de registro, até mesmo para a categoria prioritária.

Pela norma atual, os produtos considerados de maior prioridade e, portanto, com tramitação mais célere, devem ter a avaliação de registro concluída no prazo máximo de seis meses. Antes, vigorava prazo geral de até 120 dias, aplicável tanto aos procedimentos de avaliação quanto aos de reavaliação. Os prazos estipulados pelo Decreto 10.833/21 referem-se apenas à decisão final nos procedimentos de avaliação de registro.

A alegação de insuficiência dos prazos estabelecidos pelo regime atual para decisão final no procedimento de registro não justifica o retorno à disposição anterior, menos rigorosa que a vigente.

Inc. XV do art. 2° do Decreto Presidencial 4.074/02, alterado pelo Decreto  10.833/21 Interpretação do dispositivo conforme a Constituição, para que a publicidade aos resumos de pedidos e concessões de registro seja dada por meio de livre acesso, sem exigência de cadastro para consulta dessas informações. A nova norma não especifica o meio de dar publicidade aos resumos de pedidos e concessões de registro. O conhecimento da concessão de registro de agrotóxicos e afins com finalidades agrícolas é de interesse público.
Art. 10-E do Decreto 4.074/02, acrescentado pelo Decreto 10.833/21 Reconhecida a sua constitucionalidade. A adoção das diretrizes do Sistema Globalmente Harmonizado de Classificação e Rotulagem de Produtos Químicos para a classificação toxicológica e comunicação de perigo à saúde na rotulagem de agrotóxicos, pré-misturas e afins não desobedece às normas da Constituição. As mencionadas diretrizes foram impostas no exercício legítimo do poder regulador da Administração Pública em matéria de controle e fiscalização de agrotóxicos e proteção dos direitos fundamentais da saúde e do meio ambiente.
§ 2° do art. 31 do Decreto 4.074/02, alterado pelo Decreto 10.833/21 Interpretação do dispositivo conforme a Constituição, para que os critérios referentes aos procedimentos, aos estudos e às evidências suficientes sejam aqueles aceitos por instituições técnico-científicas nacionais ou internacionais reconhecidas.

O Ministério da Saúde ficou responsável por elaborar os critérios referentes aos procedimentos, aos estudos e às evidências suficientes para classificação de agrotóxicos como teratogênicos, carcinogênicos, mutagênicos, causadores de distúrbios hormonais, danosos ao aparelho reprodutor ou mais perigosos à espécie humana que os testes em laboratórios ou estudos científicos foram capazes de demonstrar.

Antes, os critérios eram elaborados por instituição científica nacional ou estrangeira reconhecida.

Esses critérios devem obedecer aos padrões científicos de segurança mais rigorosos disponíveis, sob pena de ofensa aos princípios da proteção suficiente. Assim, a aplicação de critérios aceitos por instituições técnico-científicas reconhecidas nacionalmente ou internacionalmente é especialmente relevante para garantir credibilidade, segurança e confiança aos estudos e procedimentos previstos nos incisos III a VIII do § 2° do art. 31 do Decreto 4.074/02.

§ 8° do art. 86 do Decreto 4.074/02, alterado pelo Decreto 10.833/21 Declarado inconstitucional.

A afirmação de que os produtos alimentícios descartados por descumprimento das normas sanitárias aplicáveis não representariam perigo ao consumidor seria contraditória, já que esses produtos seriam destruídos ou inutilizados devido à identificação de “resíduos acima dos níveis permitidos ou aplicação de agrotóxicos e afins de uso não autorizado”.

Permitir o consumo de alimentos com resíduos acima dos níveis permitidos ou aplicação de agrotóxico e afins de uso não autorizado descumpre os princípios da vedação ao retrocesso social, da precaução e da proteção insuficiente a direitos fundamentais.

Em seu voto, o ministro André Mendonça declarou não conhecer a arguição, devido ao acolhimento das preliminares de:

  • ofensa reflexa ao texto constitucional;
  • ausência de impugnação do complexo normativo, já que a possibilidade de publicação dos resumos dos pedidos e das concessões de registro no Sistema de Informações sobre Agrotóxicos (SIA) – prevista no artigo 2º, inciso XV, do Decreto 10.833/21 – está presente em outros diplomas legais que não foram impugnados na ação; e
  • ausência de impugnação específica do artigo 6º, inciso VI, e do artigo 41, do Decreto 4.074/22, com a redação dada pelo Decreto 10.833/21.

No mérito, o ministro André Mendonça divergiu da relatora e julgou improcedentes todos os pedidos da ação. O voto dissidente, em resumo, afirma que a incerteza científica em relação às consequências práticas da nova regulação não a macula por vício de inconstitucionalidade.

Usando como exemplo normas em matéria de políticas públicas, o ministro afirma que o Poder Judiciário deveria se autoconter e se submeter às escolhas do Poder Legislativo, sob o risco de usurpar o papel tanto do constituinte, quanto do legislador.  

A íntegra dos votos proferidos está disponível no site do STF.