Diante da sobrecarga e congestionamento[1] do Judiciário brasileiro – que tornam lenta a obtenção da tutela jurisdicional e dificulta o acesso à Justiça – é urgente buscar e usar outros métodos adequados para resolução de conflito – como negociação, conciliação, mediação, arbitragem e dispute board.

Em algumas situações, inclusive, é também necessário avaliar a possibilidade de customização e implementação de um sistema exclusivo para prevenir, gerir e/ou solucionar uma gama de disputas, estabelecendo procedimento(s) específico(s). É o caso do Design de Sistema de Disputas (DSD).[2] Essa solução lida com sistemas criados para atender a situações e necessidades específicas e, por esse motivo, costuma apresentar resultados satisfatórios, eficientes e céleres.

Um dos casos mais emblemáticos e conhecidos[3] de DSD é o September 11th Victim Compensation Fund (VCF). Trata-se do programa de compensação financeira criado para atender as vítimas e familiares das vítimas do ataque terrorista que atingiu as torres gêmeas em Nova York em 2001.

Por meio do programa, mais de US$ 7 bilhões foram pagos às vítimas sobreviventes e aos representantes das vítimas falecidas no atentado.[4] O VCF foi considerado um grande sucesso, já que os beneficiários foram tratados de forma justa, com respeito, dignidade e compaixão, além de a taxa de adesão ter sido muito alta.[5]

Mudança de mindset

Antes de abordar as etapas do design de um sistema de disputa e apresentar exemplos de casos brasileiros e dos benefícios da solução, é preciso frisar que a adoção desse método exige uma mudança de mindset.

A sobrecarga do Poder Judiciário é causada sobretudo pela mentalidade litigante da nossa sociedade e de boa parte dos advogados, para os quais a melhor forma de solucionar um conflito é por meio da adjudicação estatal, com a definição de uma sentença por um magistrado. Algo que nas palavras do ilustre doutrinador Kazuo Watanabe pode ser definido como a “cultura da sentença”.

Admitir a possibilidade e a utilização de sistemas novos, alternativos, customizados e, inclusive, mais céleres, não raras vezes enfrenta resistência dos agentes envolvidos. Isso se dá, muito provavelmente, porque “Narciso acha feio o que não é espelho (...)”, nas palavras do poeta Caetano Veloso.

Não há dúvidas de que um dos pontos de partida para desobstruir o Judiciário é utilizar métodos adequados de solução de disputa. Desenvolver essa alternativa exige dos profissionais do direito menos formalidades e beligerância e mais sensibilidade, criatividade e flexibilidade. Essa é a mudança de mindset a que nos referimos.

Em vez de estimular o litígio, os advogados precisam atuar como negociadores, utilizando uma comunicação propositiva, com o objetivo de obter empatia e confiança. Devem também estimular as partes a utilizar métodos adequados para resolução de conflito e, quando cabível, atuar como designers de um sistema exclusivo para prevenir, gerir ou solucionar uma série de conflitos.

As etapas de desenho de um sistema de disputa

De acordo com a doutrina de Diego Faleck, as etapas de desenho de um sistema de disputa são:[6]

  • análise do conflito e das partes interessadas e afetadas;
  • definição dos objetivos e prioridades do sistema;
  • criação de consenso e desenvolvimento do sistema;
  • disseminação, treinamento e implementação do sistema; e
  • avaliação constante do sistema.

Na primeira fase do processo, será analisado o cabimento do DSD. Para tanto, é necessário verificar quem são as partes afetadas e quais os interesses de cada uma delas. Em seguida, é preciso entender o que as incentivaria a buscar uma composição em vez de litigar.

É importante ainda identificar quais os danos envolvidos nessa disputa e qual a extensão deles. Também cabe analisar os meios ou sistemas possíveis para prevenção e/ou gestão e/ou resolução da disputa e quais os prós e contras de cada um deles. Com base nessas informações, avalia-se a necessidade e a viabilidade de se criar um sistema específico para o conflito e se esse sistema é, de fato, o mais adequado.

Na segunda fase, define-se quais seriam os principais objetivos do sistema e os princípios norteadores para atingir esses objetivos. Considerando que o sistema criado será uma alternativa não vinculante para os envolvidos (já que a via judicial, constitucionalmente assegurada, sempre estará disponível), é preciso que todos optem pelo sistema e, portanto, confiem nele.

De acordo com Diego Faleck,[7] para que as partes confiem no sistema, há seis fatores-chaves:

  • transparência;
  • isonomia;
  • apoio em critérios objetivos;
  • eficiência;
  • tratamento digno das partes, definindo valores dignos; e
  • participação governamental.

No caso específico de programa de indenizações, devem ainda ser analisados nessa etapa:

  • critérios de admissão;
  • rol de documentos que serão exigidos aos beneficiários;
  • precificação das indenizações;
  • segurança jurídica no sistema; e
  • medidas que podem ser tomadas para mitigar e evitar fraudes, entre outros.

Na terceira etapa, é necessário construir uma relação de consenso com todos as partes interessadas e afetadas, inclusive com as autoridades públicas envolvidas, como o Ministério Público e a Defensoria Pública. É de extrema importância que todos participem do processo de criação e o aprovem.

Além disso, nessa etapa também é desenvolvido o sistema. Para isso, é necessário que o designer selecione, sequencie e/ou combine os métodos adequados para resolução de conflito que serão utilizados.

De acordo com Ury, Brett e Goldberg, há uma “escada de resolução de disputas”, em que diferentes métodos podem ser selecionados e sequenciados como degraus (o mecanismo de menor custo deve ser priorizado):

  • mecanismos de prevenção (consultas e incorporação do aprendizado com o conflito);
  • negociação baseada em interesses (manifestada em diferentes formas);
  • mediação, por pares, por um expert, nas diferentes modalidades conforme o caso;
  • mecanismos de retorno aos procedimentos baseados em interesses (fontes de informação e mecanismos que envolvam opiniões não vinculantes);
  • mecanismos para apoiar o menor custo (baseados em direitos – variações da arbitragem – e baseados em poder – votação, greves limitadas, simbólicas e regras de prudência).[8]

Depois de desenvolvido o sistema, inicia-se a quarta etapa. Nessa fase, o sistema é, de fato, colocado em prática, com a disseminação de informações para todos os envolvidos. Explica-se como ele funcionará e quem poderá ingressar, entre outras informações relevantes.

Em seguida, o sistema é implementado e todos que tiverem interesse em participar ingressam nele. Depois, executa-se o procedimento criado.

No caso dos programas de indenização, após o ingresso, ocorrerá a análise jurídica. Se elegível, será apresentada uma proposta de acordo, que poderá ser aceita ou não pelo interessado.

A última e quinta fase é a avaliação contínua do sistema, que permite fazer melhorias a partir da experiência com diversas situações que podem surgir durante o procedimento.

ETAPAS DO DESIGN DE SISTEMA DE DISPUTA
1ª Etapa Análise do conflito e das partes interessadas e afetadas
2ª Etapa Definição dos objetivos e prioridades do sistema
3ª Etapa Criação de consenso e desenvolvimento do sistema
4ª Etapa  Disseminação, treinamento e implementação do sistema
5ª Etapa  Avaliação constante do sistema


Casos no Brasil

Após essa introdução teórica com o passo a passo para o desenho de um sistema de disputa, apresentamos os casos brasileiros de DSD. Todos ilustram de forma extremamente satisfatória os muitos benefícios de um sistema de resolução e/ou de gestão e/ou de prevenção de disputa para os envolvidos – seja no aspecto de acesso à Justiça, de economia de tempo ou de eficiência.

Os principais casos de sucesso de DSD do Brasil – todos programas de indenização extrajudiciais – podem ser divididos com base no acontecimento que gerou sua criação:

  • acidentes aéreos;
  • rompimento de barragem;
  • desocupação involuntária; e
  • ilhamento socioeconômico.

1) ACIDENTES AÉREOS

Caso TAM: Câmara de Indenização 3054 (CI 3054)

  • Contexto: acidente aéreo ocorrido em 17 de julho de 2007 (Voo 3054, que fazia o trajeto Porto Alegre – São Paulo).
  • Natureza dos danos: dano moral e dano material.
  • Órgãos públicos envolvidos: Ministério Público do Estado de São Paulo, Defensoria Pública do Estado de São Paulo, Fundação Procon/SP e Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça.
  • Aceitação dos acordos: 92% de aceitação (55 propostas aceitas, 3 desistências e 1 proposta recusada).
  • Destaque: Primeira Câmara de Indenização Extrajudicial implementada no país.

Caso Air France: Programa de Indenização 447 (PI 447)

  • Contexto: acidente aéreo ocorrido em 31 de maio de 2009 (Voo 447, que fazia o trajeto Rio de Janeiro – Paris).
  • Natureza dos danos: dano moral e dano material.
  • Órgãos públicos envolvidos: Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, Ministério da Justiça e Fundação Procon/SP.
  • Aceitação dos acordos: 95% de aceitação (19 propostas aceitas e 1 desistência).
  • Destaque: complexidade por envolver diretamente empresa estrangeira e relevância por ter a participação do Ministério da Justiça.

2) ROMPIMENTO DE BARRAGEM

Caso Vale: Câmara de Indenização de Brumadinho (CIB)

  • Contexto: rompimento da barragem de Fundão em Mariana (MG), ocorrido em 5 de novembro de 2015.
  • Natureza dos danos: dano moral, dano material e dano econômico.
  • Órgãos públicos envolvidos: Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais.
  • Aceitação dos acordos: 93% de aceitação (12.136 propostas apresentadas e 11.497 propostas aceitas).[9]
  • Destaque: relevância nacional do acidente devido à quantidade de atingidos afetados pelo desastre.

3) DESOCUPAÇÃO INVOLUNTÁRIA

Subsidência Maceió (AL): Programa de Compensação Financeira e Apoio à Realocação (PCF)

  • Contexto: desocupação ocorrida em cinco bairros de Maceió (Pinheiro, Mutange, Bebedouro, Bom Parto e Farol), devido ao fenômeno geológico que gerou a subsidência do solo e a rachadura nos imóveis da região.
  • Natureza dos danos: dano moral, dano material e dano econômico.
  • Órgãos públicos envolvidos: Ministério Público Federal, Ministério Público do Estado de Alagoas, Defensoria Pública da União e Defensoria Pública do Estado de Alagoas.
  • Aceitação dos acordos: 94% de aceitação (19.501 propostas apresentadas e 18.356 aceitas).[10]
  • Destaque: primeiro programa de indenização extrajudicial preventivo do país, com reconhecimento do Conselho Nacional de Justiça.

Caso Madre de Deus (BA): Programa de Desocupação para Tratamento Ambiental (PDTA)

  • Contexto: desocupação ocorrida em Madre de Deus/BA, devido à necessidade de remediação ambiental de terreno da empresa Companhia de Carbonos Coloidais (CCC)
  • Natureza dos danos: dano material e dano econômico.
  • Órgãos públicos envolvidos: Prefeitura de Madre de Deus, Ministério Público do Estado da Bahia e Companhia de Carbonos Coloidais (CCC).
  • Aceitação dos acordos: 100% de aceitação (240 propostas apresentadas e aceitas).[11]
  • Destaque: primeiro programa de indenização extrajudicial do país que obteve 100% de aceitação.

4) ILHAMENTO SOCIOECONÔMICO MACEIÓ (AL)

Caso Flexais: Projeto Integração Urbana e Desenvolvimento dos Flexais

  • Contexto: a desocupação involuntária dos bairros afetados pelo fenômeno geológico (que originou o PCF), acarretou o ilhamento socioeconômico do bairro de Flexais.
  • Natureza dos danos: dano moral, dano material e dano econômico.
  • Órgãos públicos envolvidos: Município de Maceió, Ministério Público Federal, Ministério Público do Estado de Alagoas, Defensoria Pública da União. 
  • Aceitação dos acordos: 97% de aceitação (1.578 propostas apresentadas e 1.533 propostas aceitas).[12]
  • Destaque: além de indenizar os atingidos que sofreram com o ilhamento socioeconômico, o programa também tem como objetivo revitalizar a área, com o desenvolvimento de ações para promover o acesso a serviços públicos e estimular a economia da região e, assim, reverter o ilhamento socioeconômico.

Ao analisar esses casos, fica evidente o sucesso do Design de Sistema de Disputa no Brasil, principalmente quando observamos os seguintes pontos:

  • a taxa de aceitação dos acordos é acima de 90%, o que demonstra satisfação dos envolvidos e a eficiência dos sistemas;
  • a celeridade é outro destaque, especialmente se comparada ao tempo de tramitação dos processos no Poder Judiciário;[13]
  • os danos reputacionais das empresas envolvidas ao utilizar DSD são mitigados, pois a empresa, em geral, assume a responsabilidade objetiva que lhe cabe por força de lei (independentemente da real causa dos eventos). Isso demonstra atitude, proatividade e boa-fé, que se somam à atuação rápida na solução extrajudicial do conflito – sempre considerando parâmetros consolidados na jurisprudência dos tribunais brasileiros;
  • quitação irrevogável e irretratável, bem como reparação integral do dano sofrido – trata-se, portanto, de uma solução definitiva;
  • previsibilidade do valor passivo envolvido, já que as métricas e valores a serem compensados são baseados em parâmetros objetivos e pré-definidos.

Os instrumentos de acordo celebrados nos DSDs mencionados acima já foram testados e referendados também pelo Poder Judiciário. Embora tenham sido registradas ações anulatórias de alguns poucos acordos celebrados, nenhuma dessas ações teve êxito no Poder Judiciário – que, ao verificar a seriedade dos programas de indenização e correção dos valores e parâmetros utilizados, aceitou a solução adotada e ratificou a validade das composições extrajudiciais.

Diante de todo o exposto, apesar da utilização do Design de Sistema de Disputas no Brasil ainda estar em um estágio incipiente, os resultados dos programas existentes são extremamente satisfatórios e demonstram a eficiência, a celeridade e diversos outros benefícios para todos os envolvidos.

Por entendermos que Justiça morosa não é Justiça, não nos conformamos com as estatísticas: elas apontam que, em média,  os processos tramitam por cerca de cinco anos. Esse prognóstico nos motivou a aprofundar os estudos em métodos alternativos e adequados para resolução de conflitos e em Design de Sistema de Disputas e, consequentemente, nos tornamos entusiastas da aplicação destes,  , recomendando-os sempre que cabíveis.

 


[1] De acordo com o Relatório Justiça em números 2022 elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça, a taxa de congestionamento (percentual de processos não baixados em relação ao total em tramitação, menos casos novos, mais os casos pendentes) no Poder Judiciário é de 74,2%. O tempo médio de tramitação dos processos pendentes é de quatro anos e sete meses. (Aqui tem um typo. Favor verificarem)

[2] Assim define as professoras de Stanford, Stephanie Smith e Janet Martinez, no artigo An Analytic Framework for Dispute Systems Design: A dispute system encompasses one or more internal processes that have been adopted to prevent, manage or resolve a stream of disputes connected to an organization or institution.”

[3] O filme “Quanto vale?”, no Netflix, aborda o assunto. Trailer disponível no YouTube.

[4] Informações retiradas do livro Dispute system design: preventing, managing, and resolving conflict, escrito por Lisa Blomgren Amsler, Janet K. Martinez, and Stephanie E. Smith, conforme trecho a seguir: “The VCF was closed in 2004, having paid over $7.049 billion to surviving personal representatives of 2,880 people who died in the attacks and to 2,680 claimants who were injured in the attacks or the rescue efforts . . . thereafter.”

[5] Informações retiradas do livro Dispute system design: preventing, managing, and resolving conflict, escrito por Lisa Blomgren Amsler, Janet K. Martinez, and Stephanie E. Smith, conforme trecho a seguir: “In retrospect, Feinberg concluded that the VCF was very successful under the circumstances but that he would not hold it out as a standard model for no-fault public compensation. The several success factors he highlighted seem relevant to other circumstances. Claimants were treated fairly and with respect, dignity, and compassion. Participation was very high.

[6] Revista Brasileira de Arbitragem -v1, n. (jul/out 2003) – Porto Alegre: Síntese; Curitiba: Comitê Brasileiro de Arbitragem, 04 -v.6, n.23. Introdução ao Design de Sistemas de Disputas: Câmera de Indenização 3054.

[7] Revista Brasileira de Arbitragem -v1, n. (jul/out 2003) – Porto Alegre: Síntese; Curitiba: Comitê Brasileiro de Arbitragem, 04 -v.6, n.23. Introdução ao Design de Sistemas de Disputas: Câmera de Indenização 3054.

[8] URY, Wiliam L Brett, Jeanne M; Goldberg, Stephen B. Getting Disputes Resolved: Designing Systems to cut the Costs of Conflict. Cambridge: PON Books, 1993, p.41.

[9] Números atualizados em 1º de agosto. O programa ainda está em andamento, os números, portanto, estão sujeitos a alteração.

[10] Números oficiais em notícia veiculada pela Braskem em 10 de agosto. O programa ainda está em andamento, os números mencionados, portanto, estão sujeitos a alteração.

[11] Números atualizados em 21 de agosto. O programa já foi finalizado, o resultado, portanto, é definitivo.

[12] Números atualizados em 21 de agosto. O programa ainda está em andamento, os números, portanto, estão sujeitos a alteração.

[13] De acordo com o Relatório Justiça em números 2022 elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça, o tempo médio de tramitação dos processos pendentes é de quatro anos e sete meses.