Depois de mais de duas décadas de tramitação, o Brasil tem finalmente uma nova lei de licitações. Publicada em 1º de abril de 2021, a Lei nº 14.133 incorpora uma série de experiências de sucesso e de insucesso verificadas durante as quase três décadas de vigência da Lei nº 8.666/1993, além de demandas de gestores públicos e daqueles que fazem contratos com a Administração Pública.

Embora não se possa afirmar que a nova lei abandonou por completo o maximalismo que marca a Lei nº 8.666/1993, é certo que tentou criar mecanismos que possibilitem ao gestor público realizar não apenas contratações simples, como a prestação de serviços de zeladoria, mas também de serviços mais complexos, como os de telecomunicações, de informática etc.

Uma das inovações mais festejadas é o diálogo competitivo, modalidade de licitação para contratação de obras, serviços e compras, aplicável em contratações que envolvem cumulativamente:

  • inovação técnica ou tecnológica;
  • falta de soluções disponíveis no mercado;
  • impossibilidade de a Administração definir com precisão as especificações técnicas do objeto a ser contratado; ou
  • necessidade de definir meios e alternativas técnicas às soluções já definidas e à estrutura jurídica e financeira do contrato.

Inspirado na legislação europeia, o diálogo competitivo se desenvolve em duas fases:

  • o diálogo entre os licitantes que atendam a critérios mínimos determinados pela Administração e
  • competição a partir da especificação da solução que atenda às necessidades da Administração, observados os critérios objetivos publicados no edital e que serão utilizados para a seleção da proposta.

Caberá à Administração definir a proposta vencedora de acordo com critérios divulgados no início da fase competitiva, assegurada a contratação mais vantajosa como resultado.

A nova modalidade licitatória inova ao promover uma maior interação entre a Administração e os licitantes na definição do objeto a ser contratado e visa romper o paradigma tradicional até então vigente.

A antiga lei de licitações, aprovada em 1993, trouxe procedimentos rígidos de contratações para atender aos princípios da legalidade e da impessoalidade. Assim, atribuiu aos licitantes um papel passivo ao longo do procedimento, visto que deveriam se manifestar e apresentar propostas estritamente nos termos da lei e do edital de licitação.

A legislação posterior introduziu tentativas de flexibilizar o procedimento licitatório. A introdução do procedimento de manifestação de interesse (PMI) por meio da Lei das Concessões de Serviços Públicos (Lei nº 8.987/1995) e a possibilidade de parcerias estratégicas entre empresas estatais e empresas privadas introduzida pela Lei das Estatais (Lei nº 13.303/2016) já haviam ampliado a possibilidade de diálogo e cooperação entre a Administração e as empresas privadas.

Seja como for, a ruptura dos paradigmas tradicionais das contratações públicas por estes instrumentos e pela introdução da modalidade de diálogo competitivo traz importantes pontos de reflexão acerca de sua operacionalização. A aplicação de procedimento semelhante ao diálogo competitivo nos países integrantes da União Europeia aponta um acúmulo de experiências e diagnósticos que merecem ser analisados com cuidado pelo gestor público brasileiro.

Uma pesquisa realizada com membros do Centro Europeu de Especialistas em Parcerias Púbico-Privadas (European PPP Expertise Centre)[1] aponta o uso significativo do diálogo competitivo em contratações públicas complexas, como as parcerias público-privadas. Cientes dos limites deste primeiro ensaio sobre o tema, trazemos de forma resumida os principais elementos positivos e negativos apontados por essa pesquisa.

Os entrevistados indicam como aspectos positivos do diálogo competitivo a melhor comunicação entre a Administração e os proponentes, o que permite definir com mais precisão as necessidades da Administração e apresentar uma concepção mais adequada e soluções inovadoras. Também mencionam maior tensão competitiva durante o período de diálogo, o que possibilita à Administração obter uma melhor relação custo-benefício e chegar a acordo sobre todas as questões comerciais vitais enquanto houver concorrência entre os licitantes. Além disso, parece haver uma percepção geral de que o diálogo concorrencial não expõe a Administração a um risco maior de contestações jurídicas do que os procedimentos de contratação alternativos.

Por outro lado, a maioria dos entrevistados expressou preocupações. O diálogo competitivo é percebido como um procedimento complexo, com impacto negativo no custo e no tempo de aquisição. O processo é considerado dispendioso em termos de recursos e tempo, e a maioria dos gestores entrevistados admite que o seu pessoal não está bem preparado para conduzir processos tão complexos, por isso dependeriam excessivamente de consultores externos. Além disso, segundo os gestores entrevistados, a modalidade não apresenta flexibilidade e/ou clareza nem consegue se ajustar a diferentes circunstâncias.

A experiência europeia mostra que a adoção de um instrumento inovador no âmbito das contratações públicas demanda um período experimental pelos gestores públicos brasileiros e, principalmente, a fiscalização pelos órgãos de controle interno e externo, que comumente baseiam suas auditorias nos critérios mais tradicionais das contratações públicas (menor preço ou melhor técnica e preço).

Neste ponto, interessante assinalar que o próprio estudo destaca que o procedimento do diálogo competitivo não é largamente utilizado pela comunidade europeia, sendo que apenas o Reino Unido, a França e a Irlanda utilizam o procedimento em escala suficiente para realização de um estudo confiável.

O estudo também identificou que, por vezes, os competidores retinham a maioria das soluções competitivas e inovadoras até o último estágio do procedimento para evitar riscos e vazamento dessas soluções aos seus competidores. Isso tende a tornar o procedimento mais moroso e menos efetivo, ao não incentivar o diálogo e construção cooperativa da melhor solução para a Administração Pública.

Além das questões práticas ligadas à experiência europeia, algumas problematizações teóricas também foram trazidas em ensaios brasileiros sobre o tema.

Em texto recente publicado no site Jota, Edcarlos Alves Lima[2] aponta a ausência de capacidade do gestor público em realizar a escolha da melhor solução apresentada pelos participantes do diálogo de forma isenta e, principalmente, técnica.

Se o diálogo competitivo é utilizado em contratações em que a Administração Pública não tem capacidade de indicar com exatidão as especificações técnicas ou conhecimento acerca das soluções ofertadas no mercado, como garantir que o gestor público fará a melhor escolha entre as ofertadas pelos competidores? O desafio está não apenas na escolha da melhor solução proposta, mas também na escolha dos próprios competidores que participarão do certame, quando a própria Administração não possui conhecimento suficiente sobre o mercado.

O diálogo competitivo, mais do que qualquer outra modalidade de competição para contratação pública, pressupõe uma disparidade de informações e conhecimentos entre o poder público e os particulares. A própria Lei nº 14.133/2021 direciona esse problema ao prever a possibilidade de contratação de profissionais de assessoramento técnico (inciso XI, do art. 32).

Ainda que o assessoramento técnico possa solucionar a questão da falta de conhecimento sobre o tema, acaba gerando nova contratação pública, demandando mais tempo e recursos da Administração.

Para além de todas as questões pontuadas acima, há uma evidente discrepância entre a robustez do regramento europeu em comparação com a falta de dispositivos suficientes para regular a questão na nova legislação brasileira. Enquanto a Diretiva 2014/24 da União Europeia traz amplas disposições sobre o tema, a Lei nº 14.133/2021 resumiu-se a abarcar a questão de forma específica em apenas um de seus dispositivos (art. 32).

A falta de regramento robusto ou rígido pode traduzir uma tentativa do legislador de introduzir maior flexibilidade nas futuras contratações públicas, o que constitui um dos objetivos propostos pela nova lei. Foi atribuído ao gestor público liberdade para definir seus critérios de seleção, exigências e escolha da proposta vencedora, estabelecendo apenas que deveria ser assegurada a contratação mais vantajosa, sem definir se a vantagem seria em termos econômicos, técnicos ou de inovação. Ou seja, houve evidente margem para o gestor público definir os critérios desse procedimento, o que, embora possa ser visto como uma flexibilização vantajosa, não deixa de constituir uma falta de regulação específica, algo que já foi objeto de críticas em estudos realizados sobre o tema[3].

Do ponto de vista prático, a experiência tem mostrado que a falta de regulação e o excesso de discricionariedade do gestor público têm levado os tribunais de contas a suprimir a falta de regulação ou a penalizar o excesso de discricionaridade, levando a questão a ser posteriormente regulamentada ou sancionada pelos órgãos de controle. Isso gera insegurança jurídica quanto à regulamentação que será dada e às possíveis sanções que serão aplicadas ao gestor público.

Como a Lei nº 14.133/2021 foi bem comedida ao tratar sobre regramento dessa nova modalidade competitiva, os gestores públicos terão que definir a questão, estando sujeitos à fiscalização e eventual sanção por parte dos órgãos de controle, o que poderá dificultar ou mesmo impedir o uso dessa modalidade, dependendo da cautela do gestor que irá avaliar seu cabimento. Lembremos que a falta de clareza nos termos utilizados pela norma também foi objeto de críticas ao uso dessa modalidade de competição na Europa.

As questões apontadas acima não se prestam a desestimular e tirar crédito da inovação trazida pela lei. Elas levantam pontos que ainda podem ser objeto de aprimoramento legislativo. A diversidade de práticas deve ocorrer em um ambiente seguro que permita ao gestor público se “arriscar” em um procedimento mais flexível sem ter que se preocupar com eventual responsabilização posterior.

Nesse sentido, entendemos que o título deste ensaio traz uma questão retórica, na medida em que apenas a coragem de inovação dos gestores públicos, o preparo técnico dos advogados públicos e privados e a flexibilidade dos órgãos de controle poderão viabilizar a implantação e o aprimoramento do instrumento do diálogo competitivo no país.

 


[1] European PPP Expertise Centre. Procurement of PPP and the use of Competitive Dialogue in Europe: A review of public sector practices across the EU. Disponível em: https://www.eib.org/attachments/epec/epec_procurement_ppp_competitive_dialogue_en.pdf. Acesso em 20 de maio de 2021.

[2] LIMA, Edcarlos Alves. “O diálogo competitivo e os desafios práticos de sua operacionalização – Uma modalidade licitatória inovadora, mas que exige cuidados à sua correta utilização pelo gestor público.” Matéria publicada em 11/05/2021.

[3] Questão pontuada por Celso de Almeida Afonso Neto em “Diálogo competitivo: um natimorto no direito brasileiro”, texto incluso na obra Limites do controle da administração pública no Estado de Direito / coordenação de Fabrício Motta, Emerson Gabardo – Curitiba: Íthala, 2019.