Durante anos, discutiu-se qual deveria ser o comportamento da Fazenda Pública ao tomar ciência da falência de pessoa jurídica que figura como ré em execução(ões) fiscal(is) pendente(s) de julgamento.

Diversas controvérsias jurídicas surgiram sobre a possibilidade de submeter créditos fiscais ao concurso formal instaurado com a decretação da falência, diante do disposto nos artigos 186 e 187 do Código Tributário Nacional (CTN) e no artigo 29 da Lei nº 6.830/80 (Lei de Execução Fiscal). Também houve debate sobre o desfecho ideal para a execução fiscal – extinção ou suspensão –, na hipótese de a Fazenda Pública optar pela habilitação de seu crédito perante o juízo falimentar.

Em maio de 2020, ao julgar o Recurso Especial (REsp) no 1.857.055 envolvendo a falida empresa aérea Vasp, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que o fato de a Fazenda Pública ajuizar a execução fiscal antes da decretação de falência não a impediria de optar pela habilitação de seu crédito na ação falimentar. Nesse julgamento, ficou estabelecido que o artigo 187 do CTN não representa um impedimento à habilitação, mas sim uma prerrogativa do ente público, que pode optar entre a execução fiscal e a habilitação na falência. No entanto, uma vez optando pela habilitação de crédito, seria necessário suspender a ação fiscal.

A 4ª Turma do STJ possui entendimento similar, consolidando assim o entendimento da 2ª Seção do STJ sobre a questão.

O Grupo de Câmaras Reservadas de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo, adotando o entendimento da 2ª Seção do STJ, publicou em 16 de janeiro de 2020 o Enunciado XI, determinando que “a opção da Fazenda Pública pela habilitação do crédito tributário na falência não exige extinção do processo de execução fiscal, desde que comprovada a suspensão em face da falida”. O enunciado está atualmente sob revisão, conforme recentemente divulgado pela corte estadual.

Embora tenha admitido a possibilidade de a Fazenda Pública habilitar seu crédito na falência mesmo com a existência de execução fiscal anterior, a 1ª Turma do STJ entendeu que não seria necessária a suspensão ou extinção da execução fiscal. Ambas as medidas judiciais poderiam correr de forma concomitante, desde que não houvesse qualquer ato de constrição na ação fiscal. De acordo com essa decisão, a mera existência da execução fiscal não seria garantia de recebimento do crédito devido ao erário, de modo que não haveria bis in idem, ou seja, as duas opções não estariam sendo admitidas simultaneamente.

 Pouco se falava sobre quais seriam as matérias a serem processadas e julgadas pelo juízo falimentar, caso a Fazenda Pública decidisse habilitar seu crédito e suspender a execução fiscal. Em outras palavras, teria o juízo falimentar competência – ou, até mesmo, a expertise necessária – para apreciar questões que, até então, seriam apreciadas pelo juízo da execução fiscal, tais como a existência, a legitimidade e a exigibilidade do crédito fiscal?

Com base na redação original da Lei nº 11.101/2005 (Lei de Recuperação e Falência), a jurisprudência e a doutrina pouco abordavam esse tema. Marcelo Barbosa Sacramone, no entanto, tinha um entendimento sobre o assunto. Para ele, caso a Fazenda Nacional renunciasse ao privilégio de prosseguir com suas execuções fiscais e optasse por habilitar o valor perante o juízo falimentar a fim de obter seu crédito mais rapidamente, o juízo falimentar se tornava competente para processar e julgar toda e qualquer matéria – incluindo a análise de mérito – que envolvesse o referido crédito.[1]

A redação do novo artigo 7º-A da Lei de Recuperação e Falência, incluído pela Lei nº 14.112/2020, parece esclarecer a questão, ao criar um mecanismo próprio de habilitação do crédito fiscal.

Além disso, o §.4º, incisos I e II do artigo 7º-A, delimita quais temas relacionados aos créditos fiscais seriam de competência do juízo falimentar e quais seriam do juízo da execução fiscal[2]

Em consonância com o CTN e a Lei de Execução Fiscal – cujo artigo 5º determina que a competência para processar e julgar a execução de dívida ativa da Fazenda Pública exclui a de qualquer outro juízo, incluindo o falimentar –, a competência para julgar a existência, a exigibilidade e o valor de crédito será do juízo da execução fiscal. Ou seja, a análise do mérito da execução fiscal não será apreciada pelo juízo falimentar, mas sim pelo juízo da execução fiscal.[3]

Compete ao juízo falimentar julgar temas como cálculo e classificação dos créditos, além daqueles relativos à arrecadação dos bens, realização do ativo e pagamento aos credores.[4]

Já o inciso V do § 4º do artigo 7º-A – observada a competência do juízo da execução fiscal para apreciar a matéria mencionada acima – estabelece que “as execuções fiscais permanecerão suspensas até o encerramento da falência, sem prejuízo da possibilidade de prosseguimento contra os corresponsáveis.

A despeito das alterações introduzidas pela Lei nº 14.112/2020, que entrou em vigor em 23 de janeiro de 2021, a 1ª Seção do STJ, em maio deste ano, por unanimidade, encaminhou para julgamento sob o rito dos recursos repetitivos o REsp 1.891.836/SP, tema 1.092, com a seguinte tese controvertida: “Possibilidade de a Fazenda Pública habilitar em processo de falência crédito tributário objeto de execução fiscal em curso”.[5] 

Embora a Fazenda Nacional tenha sugerido que fosse feita a ressalva de que a tese não é controvertida em relação aos pedidos de habilitação realizados após a entrada em vigor da Lei nº 14.112/2020 – considerando que incluiu expressamente a possibilidade da apresentação da habilitação do fisco mesmo que já exista uma execução fiscal em curso –, o ministro Gurgel de Faria (relator do recurso) entendeu que esta questão deveria ser tratada quando for examinado o mérito da questão jurídica controvertida. Assim, atualmente, aguarda-se o desfecho do assunto.

 


[1] “Caso renuncie a esse privilégio e promova a habilitação de seu crédito, o juízo falimentar passa a ser competente para a apreciação de todas as questões que envolvam o referido crédito. A justificativa a tanto é que é garantido tratamento privilegiado ao crédito fiscal para que prossiga com a execução fiscal, de modo que apenas esse juízo pode apreciar as diversas questões que envolvam o referido crédito, como o prévio pagamento, a inexistência da obrigação ou eventual compensação.

Entretanto, de modo a acelerar sua satisfação, a Fazenda poderia renunciar ao privilégio e se submeter ao procedimento de habilitação. Com a renúncia, permitiria que todas as questões fossem apreciadas pelo próprio juízo falimentar, de modo que este possa definir se e por qual montante o crédito deveria ser habilitado. O que não poderá ocorrer, entretanto, é o bis in idem, ou seja, serem escolhidas as duas vias para a satisfação do seu crédito. A habilitação do crédito ou impugnação judicial, caso apresentadas após o ajuizamento da execução fiscal, deve ser extinta, por falta de interesse de agir da habilitante ou impugnante. Isso porque não poderá ocorrer sobreposição de formas de satisfação.”

SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 83.

[2] Necessário esclarecer que ainda não há julgados enfrentando o tema, devido ao fato de a Lei nº 14.112/2020 ser recente e ter entrado em vigor somente no final de janeiro de 2021.

[3] SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 121.

[4] A questão da constrição de bens foi, inclusive, objeto do Tema 987 do STJ – “Possibilidade da prática de atos constritivos, em face de empresa em recuperação judicial, em sede de execução fiscal de dívida tributária e não tributária” – o qual, no entanto, perdeu objeto diante das novas disposições da Lei de Recuperação e Falência trazidas pela Lei nº 14.112/2020.

[5] Igualmente por unanimidade, determinou-se a suspensão dos recursos especiais ou agravos em recursos especiais em segunda instância e/ou no STJ que versem sobre o referido tema.