Historicamente, o intervencionismo estatal se mostrou um mecanismo de estímulo ao desenvolvimento do agronegócio brasileiro, setor responsável por 27,4% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2021.

O crédito rural – um dos pilares da política agrícola brasileira –, concedido por programas governamentais próprios para subsidiar o agronegócio ou disponibilizado pelas instituições financeiras privadas para financiar o setor, é inquestionavelmente um dos meios mais eficazes para o desenvolvimento e custeio do agronegócio nacional.

A Lei 4.829/65 institucionalizou o sistema de crédito rural, dispondo sobre os seus propósitos legais e, especialmente, firmando sua dinâmica operacional. Foi estabelecida a competência do Conselho Monetário Nacional (CMN), dentro de suas atribuições legais,[1] para regulamentar a operação do crédito rural, por meio de normativas. Essas normativas são publicadas em resoluções do Banco Central (Bacen) e consolidadas no Manual de Crédito Rural (MCR).[2]

Os termos e condições para concessão dos recursos vinculados à política agrícola de crédito rural estão dispostos no MCR 6, segundo o qual esses recursos serão:

  • controlados (ou recursos não livres), quando subsidiados pelo governo federal e, portanto, com suas condições de contratação, como valores, taxas de juros, garantias e vencimentos, estipulados pelo poder público por meio de programas voltados ao desenvolvimento do agronegócio; e
  • não controlados (ou recursos livres), aqueles livremente negociados entre instituições financeiras e tomadores de empréstimos – produtores rurais (pessoas físicas ou jurídicas), cooperativas e/ou associações.

Apesar de os termos e condições para acesso aos recursos controlados estarem consolidados pelos programas governamentais no MCR e na legislação pertinente, verificam-se omissões, obscuridades e, por vezes, contradições em relação às transações envolvendo os recursos livres, propostos para dinamizar e facilitar o acesso ao crédito para o setor agropecuário em geral.

Isso porque o Decreto-Lei 167/67, que dispôs sobre as modalidades de cédulas de crédito rural, prevê que a remuneração em operações envolvendo os recursos não controlados serão limitadas pelo CMN e, portanto, ficarão dispostas no MCR.

Em 2013, após aprovação pelo CMN, foi publicada a Resolução Bacen 4.234/13, que, além de fazer ajustes gerais na regulamentação dos recursos do crédito rural, alterou a MCR 6-3, ou seja, redesenhou a subseção relativa às operações realizadas com recursos livres.

Apesar dos ajustes feitos pela Resolução Bacen 4.234/13, ainda persistem discussões sobre a omissão do CMN sobre a suposta obrigatoriedade, nos termos do art. 5º do Decreto-Lei 167/67, de fixar um percentual máximo, a título de juros remuneratórios, sobre transações originadas de recursos não controlados.

Embora o dispositivo legal mencionado assegure que “[a]s importâncias fornecidas pelo financiador vencerão juros as taxas que o Conselho Monetário Nacional fixar [...]”, ele não dispõe sobre a obrigatoriedade do CMN de estipular um patamar máximo para esse fim. Essa foi, inclusive, a interpretação da jurisprudência majoritária sobre o tema, encabeçada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao apreciar a matéria.

Recentemente, sem observar o propósito elementar do crédito rural realizado com a utilização de recursos livres – ou seja, a capilarização e desburocratização de recursos para o financiamento do agronegócio –, o STJ, ao julgar o REsp 1.940.292/PR,[3] ratificou seu posicionamento em relação à omissão do CMN na regulamentação da taxa de juros incidente sobre os recursos livres e, por conseguinte, à aplicação da limitação imposta pelo Decreto 22.626/33[4] (Lei de Usura).

Segundo o voto da relatora, ministra Nancy Andrighi, “[...] o CMN não fixou limite algum para as taxas de juros, enquanto o art. 5º do Decreto-Lei nº 167/1967 prevê expressamente que os juros vencerão às taxas fixadas pelo CMN”. Dispôs ainda que “[...] o CMN autorizou que as partes, em cédulas de crédito rural com recursos não controlados, pactuem livremente as taxas de juros, mas permaneceu omisso quanto à fixação de um limite, como determina o art. 5º do Decreto-Lei nº 167/1967 [...]”.

Vale esclarecer que, ao contrário do disposto no voto mencionado acima, não há determinação alguma no art. 5º do Decreto-Lei 167/67 sobre a obrigatoriedade de o CMN fixar um limite para a taxa de juros em transações dessa natureza.

O dispositivo normativo em questão não foi omisso e, sendo assim, não cabe a interpretação extensiva da norma.

Ainda que fosse o caso, diante do princípio da eventualidade, é vedada a interpretação extensiva da norma em prejuízo da parte ré. Esse seria o caso do REsp 940.292/PR, recurso interposto pelo Banco Bradesco S.A. ante a limitação dos juros remuneratórios – segundo premissas da Lei de Usura – em operação de cédula de crédito rural pignoratícia.

Pela leitura do dispositivo, percebe-se que a finalidade do legislador foi, além de dispor sobre a exigibilidade do crédito, atribuir ao CMN a responsabilidade de fixar as taxas de juros incidentes sobre os recursos disponibilizados – controlados ou não.

Não se verifica determinação legislativa específica para o CMN impor limites sobre o percentual máximo aplicado a título de remuneração do crédito livremente transacionado entre as instituições financeiras privadas e o tomador do crédito.

Por isso, não haveria que se falar, em princípio, em omissão do CMN, já que foi fixada a taxa de juros sobre recursos não controlados, ou seja, livremente acordada entre os envolvidos na operação. Priorizou-se, o princípio da autonomia de vontades das partes em operações não submetidas às regras econômicas e sociais dos subsídios governamentais.

Nesse sentido, e divergindo da relatora do REsp 1.940.292/PR, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva firmou seu entendimento em voto-vista. Segundo o ministro, os ajustes impostos pela Resolução Bacen 4.234/13 “[...] não deixam dúvidas de que, nas operações de crédito rural com recursos livres, ou não controlados, as condições contratuais são aquelas disciplinadas no Capítulo 6, Seção 3, do Manual de Crédito Rural, que, expressamente, deixa a definição das taxas de juros sob o livre arbítrio das partes”.

Como destacado pelo ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, “[o] simples fato de não poder contar com a subvenção advinda do sistema governamental de equalização de taxas de juros já é um aspecto que justifica conferir tratamento diferenciado para as operações de crédito rural com recursos livres ou não controlados”.

Outro ponto que merece atenção, mas não será objeto de abordagem neste artigo, é a disposição firmada na Súmula 596, do Supremo Tribunal Federal (STF), segundo a qual as disposições da Lei de Usura “[...] não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o Sistema Financeiro Nacional”.

Assim sendo, e considerando que os recursos livres são disponibilizados pelas instituições financeiras privadas – todas integrantes do Sistema Financeiro Nacional (SFN) – essas transações não estão sujeitas às limitações impostas pelo STJ. Como firmado pelo próprio STF,[5] “[a] estipulação de juros remuneratórios superiores a 12% ao ano, por si só, não indica abusividade”.

Para análise processual sobre eventuais casos sub judice, e em respeito ao contraditório e à ampla defesa, será necessário fazer avaliações individualizadas, com análise pericial das transações, não bastando mera imposição jurisdicional de limitação nos termos da Lei de Usura.

A questão sobre os juros remuneratórios incidentes em operações com recursos não controlados, portanto, embora considerada consolidada pela jurisprudência dominante, quando interpretada sistemicamente e submetida a sua complexidade e suas implicações econômicas, ainda encontra divergências tecnicamente embasadas.

Tudo isso pode levar a temática a nova discussão, especialmente se considerarmos que não se trata de matéria firmada no âmbito de recursos repetitivos.

 


[1]A Lei 4.595, de 1964, em seu art. 4º, dispõe sobre as competências do CMN. Entre essas, está a limitação, sempre que necessário, das taxas de juros, descontos, comissões e qualquer outra forma de remuneração de operações e serviços bancários ou financeiros (art. 4º, inc. IX).

[2] MCR – Instruções de Consulta 1: o Manual de Crédito Rural (MCR) codifica as normas aprovadas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) e aquelas divulgadas pelo Banco Central do Brasil relativas ao crédito rural, às quais os beneficiários e as instituições financeiras que operam no Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR) devem se subordinar, sem deixar de observar a regulamentação e a legislação aplicáveis.

[3] STJ. Recurso Especial 1.940.292/PR. Relatora ministra Nancy Andrighi. Terceira Turma. Julgado em 3 de maio de 2022. Publicado no DJ-e de 27 de maio de 2022.

[4] A limitação a 12% ao ano, imposta pela Lei de Usura decorre, na realidade, da interpretação conjunta do art. 1º do referido diploma normativo com o art. 406 do Código Civil, que por sua vez está em linha com o art. 161, §1º, do Código Tributário Nacional.

[5] STF. RE 1344201/PR. Relator Ministro Alexandre de Moraes. Julgado em 16 de setembro de 2021. Publicado em DJ-e de 20 de setembro 2021.