Não é surpresa que, no Brasil, onde há cerca de 66,43 milhões de inadimplentes,[1] atos normativos que visam a combater o endividamento da população ganhem popularidade. Exemplo disso são as discussões que cercaram a Lei 14.181/21, a chamada Lei do Superendividamento, que foi recebida pelos operadores do direito e pelos consumidores com otimismo – mas também com dúvidas relevantes sobre seu alcance e aplicação prática.

A Lei 14.181/21 realizou acréscimos ao Código de Defesa do Consumidor (CDC) para introduzir um microssistema de crédito ao consumo,[2] com o objetivo de prevenir e tratar o fenômeno do superendividamento. Um dos pilares da lei é o resguardo do denominado “mínimo existencial” – ou seja, o valor que deve ser colocado a salvo dos credores para garantir o sustento do devedor. A Lei do Superendividamento, porém, não especificou o valor desse mínimo existencial, deixando a tarefa para regulamentação complementar.

Efetivamente, o mínimo existencial foi regulado via Decreto Presidencial 11.150/22, editado em 26 julho de 2022, nos seguintes termos:

“Art. 3º No âmbito da prevenção, do tratamento e da conciliação administrativa ou judicial das situações de superendividamento, considera-se mínimo existencial a renda mensal do consumidor pessoa natural equivalente a vinte e cinco por cento do salário-mínimo vigente na data de publicação deste Decreto.”

Essa definição atribuiu ao mínimo existencial o valor nominal de R$ 303 – equivalente a 25% do salário mínimo vigente à época. Esse valor é fixo, já que o próprio decreto estabeleceu que os reajustes do salário mínimo não impactarão o montante do mínimo existencial (artigo 3º, §2º). Caberá ao Conselho Monetário Nacional realizar eventuais alterações no valor (artigo 3º, §3º).

Por um lado, a definição de um valor fixo para o mínimo existencial proporciona previsibilidade tanto para os consumidores como para os fornecedores e define parâmetros objetivos para a aplicação da Lei do Superendividamento.

Por outro, o valor de R$ 303 foi alvo de severas críticas, por ser considerado irrisório e incapaz de fazer frente às necessidades básicas do cidadão brasileiro – além de criar possíveis distorções entre devedores que recebem um salário mínimo e aqueles que recebem valores muito superiores.

Outras críticas foram direcionadas às dívidas que não estariam protegidas pela reserva do mínimo existencial, como financiamento imobiliário e as dívidas relativas à atividade empreendedora.[3] Na visão de alguns doutrinadores, isso prejudicaria consumidores de menor renda.

A efervescência do tema, em parte, está ligada ao calor do ambiente político do país – e há sinais de que a alternância de poder ocorrida nas eleições de 2022 pode interferir nos limites do microssistema de crédito ao consumidor.

Novo panorama político e impactos no valor do mínimo existencial

Desde a promulgação do Decreto Presidencial 11.150/22, integrantes do Poder Legislativo já vinham se movimentando para alterar a disposição que estabeleceu o valor do mínimo existencial. O principal pivô desse movimento é o Projeto de Decreto Legislativo 306/22 (PDL 306/22), atualmente em trâmite na Câmara dos Deputados.

Esse projeto tem como objetivo sustar os efeitos do Decreto Presidencial 11.150/22, sob a justificativa de que os avanços da Lei de Superendividamento teriam sido comprometidos pelo ato normativo presidencial.

Argumenta-se que, apesar de preencher a lacuna deixada pelo legislador na Lei do Superendividamento, o decreto impacta principalmente a população mais carente do país, pois o valor garantido por lei como reserva para o consumidor é muito reduzido e não auxilia na redução do endividamento familiar – que teve um aumento de cerca de 6,54% em relação ao ano de 2021.

Além disso, o autor da proposta legislativa, deputado Gustavo Fruet, pondera que, em um contexto de aumento de juros, elevação da inflação, altas taxas de desemprego e aumento da extrema pobreza, a inadimplência tem subido constantemente no Brasil, atingindo cerca de 4 a cada 10 brasileiros em 2022.

Nas atuais circunstâncias econômicas, fixar o valor de R$ 303 para o mínimo existencial poderia comprometer a própria sobrevivência, ao diminuir a renda familiar, ampliar o endividamento e transferir recursos dos cidadãos para os credores. Por essas razões, a proposta solicita que a Câmara dos Deputados se manifeste pela anulação do instrumento presidencial, visto como “claramente danoso ao interesse público”.

O PDL 306/22 está em trâmite desde 1º de agosto de 2022. Atualmente, aguarda a designação de um relator para ser analisado pela Comissão de Defesa do Consumidor. Por se tratar de uma proposta de regime de tramitação ordinária, se aprovada pela comissão em questão, ela ainda será encaminhada à Comissão de Constituição e Justiça para análise de sua constitucionalidade.

Em seguida, o texto será colocado em pauta para votação no plenário da Câmara dos Deputados. Concluída a análise por essa casa legislativa, a proposta ainda terá que ser aprovada pelo Senado antes de poder entrar em vigor.

Durante seu percurso no Congresso, a proposta poderá ser alterada pelas comissões temáticas pertinentes. Não é possível, portanto, garantir que o decreto legislativo pretendido será promulgado nos termos atualmente propostos, nem mesmo se será promulgado.

O que se tem é que, conforme os termos da proposta, o novo ato legislativo restabeleceria o status quo anterior à promulgação do decreto, para reconstituir a lacuna jurídica sobre a definição do mínimo existencial – o que também não é o cenário ideal, já que cria insegurança jurídica sobre os parâmetros de aplicação da lei de cada um dos tribunais pátrios.

Além do questionamento feito pelo PDL 306/22 e da possibilidade de declaração de inconstitucionalidade ou violação de preceito fundamental pelo Supremo Tribunal Federal,[4] o decreto também poderá ser revogado, extinto ou alterado por novo ato normativo da mesma hierarquia, isto é, por um novo decreto presidencial.

O chefe do Poder Executivo federal poderá estabelecer novo valor para o mínimo existencial por meio de ato presidencial. O novo presidente poderá, ainda, simplesmente revogar o ato de seu predecessor, para restabelecer a lacuna jurídica anteriormente existente – a ser fechada por novo ato normativo.

notícia de que o atual governo estaria estudando a possibilidade de derrubar o decreto promulgado em 2022, como indicado pelo titular da Secretaria Nacional do Consumidor, Wadih Damous.[5] A possível alteração do mínimo existencial, se compatível com os objetivos do governo, faria parte do programa de diminuição do endividamento que o governo pretende lançar, intitulado Desenrola Brasil.

Existem, portanto, ao menos três vias distintas e plausíveis para revogação ou alteração do Decreto 11.150/22, cada uma delas sob a responsabilidade de um dos poderes da República.

À parte a discussão sobre a suficiência do valor do mínimo existencial atualmente vigente, a indeterminação sobre a sua permanência e sua forma de aplicação tem impacto direto na implementação das políticas públicas de proteção ao consumidor endividado – foco principal da Lei do Superendividamento – e impede que todos os agentes do mercado de consumo possam gozar plenamente os seus direitos.

A importância do tema justifica o engajamento de entidades representativas de fornecedores e consumidores, além do acompanhamento próximo e crítico dos operadores do direito, para que se alcance um equilíbrio capaz de garantir proteção aos consumidores, sem negligenciar os impactos das políticas implementadas na oferta de crédito, indispensável ao bom andamento da economia do país.

 


[1] Dados retirados do Mapa de Inadimplência e Renegociação de Dívidas disponibilizado pelo Serasa.

[2] BERTONCELLO, Káren Rick Danilevicz. “O processo judicial de repactuação das dívidas: modelo brasileiro de mínimo existencial instrumental”. Revista de Direito Consumidor, Vol.144/2022, pg.17-35.

[3] DUQUE, Marcelo Schenk. “Parecer sobre a inconstitucionalidade do Decreto 11.150, de julho de 2022”. Revista de Direito do Consumidor, Vol.143/2022, p. 407/416.

[4] Atualmente se encontram em conclusão a ADPF 1005 (min. rel. André Mendonça) e a ADPF 1006 (min. rel. André Mendonça).