Contratos[1] de diversas naturezas têm sido descumpridos no Brasil em razão da pandemia de covid-19. Os inadimplementos, quando não solucionáveis amigavelmente – por concessão de ambas as partes –, têm sido levados ao Judiciário (ou ao tribunal arbitral quando aplicável) para lá serem discutidos e resolvidos.

No início de fevereiro de 2020, a Lei Federal nº 13.979/20 estabeleceu medidas para o enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do surto do coronavírus. Da mesma forma, os governos estaduais e municipais editaram decretos com vistas a reduzir a transmissão do novo coronavírus, chancelados por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF)[2] em que se corroborou a competência deles sobre saúde pública.

O governo do estado de São Paulo, por exemplo, editou o Decreto nº 64.881/20, que determinou a suspensão do atendimento presencial ao público em estabelecimentos comerciais e prestadores de serviços, especialmente em casas noturnas, shopping centers, galerias e estabelecimentos congêneres, academias e centros de ginástica, além do consumo local em bares, restaurantes, padarias e supermercados (artigo 2º). As proibições seguiram o mesmo caminho no estado do Rio de Janeiro. Com o Decreto nº 46.973/20, o governo do estado impôs a suspensão de diversas atividades, entre elas o funcionamento de shopping centers, centros comerciais e estabelecimentos congêneres (artigo 4º, XIV).

Outras normas também foram editadas nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro disciplinando medidas de prevenção à covid-19 e postergando os prazos originariamente arbitrados para suspensão de atividades empresariais não essenciais.[3] A decretação desses atos normativos, embora essenciais à preservação da saúde humana, causou – e tem causado – efeitos deletérios na economia. Empresários de atividades consideradas não essenciais se viram impedidos de exercer suas atividades e auferir receitas. E tal aspecto, como num efeito cascata, levou ao inadimplemento de uma série de obrigações trabalhistas, fiscais e contratuais, entre outras.

No que se refere às obrigações contratuais, nos casos em que houve a mútua vontade das partes e o desejo recíproco de preservação da relação contratual entabulada (atributo da função social do contrato),[4] aditivos contratuais foram celebrados visando a repactuar e/ou flexibilizar obrigações específicas cujo cumprimento se mostrou inviável, em um primeiro momento, diante da grave crise econômica causada pela pandemia.

Todavia, houve situações em que a repactuação das obrigações não foi possível. Nesses casos, o impacto econômico acabou por levar, muitas vezes, ao encerramento de atividades comerciais. Como consequência, o inadimplemento contratual e as penalidades correlatas estão sendo objeto de judicialização.

Ocorreram também situações em que as partes se valeram do Judiciário para buscar tutela jurisdicional que lhes permitisse reduzir ou repactuar certas obrigações, ao menos enquanto estivessem presentes as políticas de isolamento social e, sobretudo, o fechamento do comércio determinado pelo Poder Público. Essa prática se deu em considerável escala nas relações locatícias.

Visando manter a relação contratual com significativas alterações das obrigações estabelecidas, locatários de estabelecimentos empresariais ingressaram no Judiciário postulando a suspensão e/ou a repactuação dos aluguéis. As ações com essa pretensão, fiando-se no que elucida a boa-fé contratual objetiva (CC, artigo 422) e a função social do contrato, abordam, em comum, que a suspensão ou, no limite, a redução dos aluguéis se faz pertinente para readequar o equilíbrio econômico-financeiro (CC, artigos 478 a 480).

A jurisprudência tem enfrentado, casuisticamente, a intervenção estatal e a gradação em que ela deve se dar, quando e se aplicável, para a readequação do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de locação. De acordo com a jurisprudência, é preciso, entre outros fatores, analisar se resta demonstrada inequivocamente a dificuldade financeira do locatário de arcar com as suas obrigações, isto é, se a covid-19 (e os atos administrativos dela decorrentes) causou, de fato, significativos abalos na situação econômica. Esse, aliás, é o fator de análise sem o qual não há de subsistir qualquer pretensão de revisão dos aluguéis. Afinal, as cláusulas contratuais devem ser cumpridas (princípio da pacta sunt servanda).

Ao se deparar com uma dessas hipóteses, o Tribunal de Justiça de São Paulo determinou a redução temporária da verba locatícia, em 50% do valor original, no período compreendido entre março a dezembro de 2020.[5] No mesmo sentido, também já entendeu o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, ao destacar que o “desconto no valor dos alugueres durante a paralisação das atividades está sendo dado para garantir a viabilidade do empreendimento nesse interregno específico, e não para criar uma nova dívida exigível no conturbado cenário de flexibilização que se inicia ou no futuro período de pós-pandemia”.[6]

O e. TJSP[7][8], em situações específicas, tem entendido que poderá até haver a isenção temporária do pagamento de aluguéis, como nos casos de locação de estabelecimentos comerciais situados em shoppings centers, durante o período em que o comércio teve de permanecer fechado e suportando despesas mensais (fundo de promoção e propaganda, funcionários, condomínio, segurança, franqueadores, tributos, fornecedores etc.) por força de determinação do Poder Público.

Nesses casos, contudo, dada a particularidade dos contratos de locação em shoppings centers, que detêm “uma intrínseca e muito intensa necessidade de cooperação intersubjetiva”,[9] embora se tenha admitido, até mesmo, a suspensão temporária dos aluguéis, a jurisprudência do e. TJSP tem preservado a obrigação do locatário quanto ao pagamento das despesas condominiais, já que, “além de se tratarem de despesas comuns a todos os lojistas do shopping, destinam-se à manutenção do local e ao pagamento de empregados”.[10]

O advento da pandemia e dos atos administrativos dela decorrentes – os que determinaram o fechamento de estabelecimentos comerciais considerados “serviços não essenciais” – acarretaram o significativo aumento de ações judiciais em que os locatários buscam a isenção ou a repactuação dos aluguéis, ainda que por prazo temporário.

O Judiciário, por sua vez, tem enfrentado específica e casuisticamente as situações que lhe são postas. Até o momento, inexiste um consenso quanto às hipóteses em que a isenção ou a redução da locação deverá se dar e em qual percentual. Denota-se, porém, da análise casuística a consolidação do entendimento de que, em determinadas situações, a pandemia justifica a intervenção estatal para a garantia do equilíbrio financeiro nas locações comerciais.

 


[1] Nas exatas palavras de Maria Helena Diniz, o “contrato constitui uma espécie de negócio jurídico, de natureza bilateral ou plurilateral, dependendo, para a sua formação, do encontro da vontade das partes, por ser ato regulamentador de interesses particulares, reconhecida pela ordem jurídica, que lhe dá força criativa” (in Curso de Direito Civil Brasileiro, Volume 3: Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 23).

[2] STF, ADI nº 6.341/DF, Plenário, min. rel. Marco Aurélio.

[3] Os decretos, de modo geral, estipularam como atividades essenciais: supermercados, farmácias e serviços de saúde (hospital, clínica, laboratório e estabelecimentos congêneres).

[4] Nas palavras de Carlos Roberto Gonçalves, “o atendimento à função social pode ser enfocado sob dois aspectos: um individual, relativo aos contratantes, que se valem do contrato para satisfazer seus interesses próprios, e outro, público, que é o interesse da coletividade sobre o contrato. Nesta medida, a função social do contrato somente estará cumprida quando a sua finalidade – distribuição de riquezas – for atingida de forma justa, ou seja, quando o contrato representar uma fonte de equilíbrio social” (in Direito Civil Brasileiro, Volume 3: Contratos e Atos Unilaterais. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 26).

[5] TJSP; Agravo Interno Cível 2191227-50.2020.8.26.0000; rel. des. Walter Exner; 36ª Câmara de Direito Privado; DJ: 29/10/2020

[6] TJRJ; Agravo de Instrumento nº 0053875-79.2020.8.19.0000; rel. des. Nilza Bitar; 24ª Câmara Cível; DJ: 16.09.2020

[7] TJSP; AI nº 2118168-29.2020.8.26.0000, 32ª Câmara de Direito Privado, rel. des. Luis Fernando Nishi, j. 15.07.2020, DJe 15.07.2020.

[8] TJSP; AI nº 2104141-41.2020.8.26.0000, 32ª Câmara de Direito Privado, rel. des. Kioitsi Chicuta, j. 25.06.2020, DJe 25.06.2020.

[9] MARTINS-COSTA, Judith. “A relação contratual de shopping center”. Revista do Advogado, ano XXXII, vol. 116, jul. 2012, p. 110. Disponível em: https://aplicacao.aasp.org.br/aasp/servicos/revista_advogado/paginaveis/116/2/index.html

[10] TJSP – AI nº 2125636-44.2020.8.26.0000, 33ª Câmara de Direito Privado, rel. des. Mario A. Silveira, DJ 01.07.2020.