A Lei de Arbitragem foi promulgada há mais de duas décadas e teve sua constitucionalidade declarada incidentalmente pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no âmbito do recurso interposto nos autos do pedido de homologação de sentença estrangeira (Processo nº 5.206, julgado em 2001). A análise da constitucionalidade perpassou pela garantia constitucional de inafastabilidade do Poder Judiciário. A conclusão foi que a Constituição Federal veda que o cidadão seja impedido de optar pelo Judiciário, mas o deixa livre para compor seus litígios por outros mecanismos.

A despeito de qualquer discussão quanto à constitucionalidade da Lei de Arbitragem já estar plenamente superada, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, no fim de 2020, decidiu rever a questão da inafastabilidade da jurisdição para negar a incidência de cláusula compromissória em razão da superveniência da falência de um dos contratantes.

Em linhas gerais, o julgado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro tem por base ação de revisão contratual com pedido indenizatório ajuizada em litisconsórcio pela Stiebler Arquitetura e Incorporações Ltda. e duas sociedades de propósito específico. Considerando que o contrato continha cláusula compromissória, os requeridos levantaram tal ponto em preliminar de contestação. O juízo de origem acolheu a preliminar e julgou a ação extinta.

Contudo, após a decretação de falência da Stiebler, o administrador judicial solicitou o reconhecimento do juízo universal da falência com o declínio de competência. A Stiebler, por sua vez, também se utilizou da falência em suas razões de apelação para sustentar que empresas em regimes sujeitos à Lei nº 11.101/05, a Lei de Recuperações e Falências, não podem ser parte em procedimentos arbitrais e reiterou seu argumento quanto à inafastabilidade do Poder Judiciário.

Além de analisar outras questões que fogem ao escopo deste artigo, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, mais especificamente a 3ª Câmara Cível, considerou que a cláusula arbitral não pode ter aplicação irrestrita e que sua análise deve levar em consideração os altos custos que podem ser causados à massa falida e aos credores.

Assim, considerando que a massa falida poderia não ter recursos para arcar com a arbitragem, a corte entendeu que o acesso à Justiça deve ser resguardado e autorizou a permanência do litígio no âmbito do Poder Judiciário. A decisão ainda não transitou em julgado e poderá ser objeto de sucessivos recursos até que seja decidida em definitivo pelos tribunais superiores. Contudo, representa um retrocesso a todo o entendimento jurisprudencial já firmado quanto ao ponto.

De fato, o próprio Superior Tribunal de Justiça já proferiu decisões estratégicas relativas ao uso da arbitragem no país, abrangendo também a arbitrabilidade de controvérsias envolvendo empresas em crise. Um exemplo é o voto proferido pela ministra Nancy Andrighi, em 2008, no âmbito da Medida Cautelar nº 14.295/SP, que versou sobre a arbitrabilidade e empresa em liquidação extrajudicial. Nesse caso, que envolvia a Saúde ABC Serviços Médicos Hospitalares e Interclínicas Plano de Saúde S.A., a ministra relatora considerou que a cláusula compromissória permanece válida, pois celebrada antes da decretação da liquidação.

Ainda a título exemplificativo, no caso Targa vs. Cremer, também julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em julho de 2014, e autuado sob o nº 0016509-16.2014.8.19.0000, a Targa voltou-se ao Judiciário para pleitear a suspensão do processo arbitral invocando a indisponibilidade do direito envolvido por estar em regime recuperacional. O tribunal decidiu que, sendo as questões eminentemente contratuais, não há que se falar em inarbitrabilidade.

Tais casos não são isolados e estão em consonância com a evolução legislativa sobre o assunto. O próprio julgado ora discutido menciona o teor do enunciado 75 da II Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal (CJF), realizada em 2015: “havendo convenção de arbitragem, caso uma das partes tenha a falência decretada: (...) o administrador judicial não pode recusar a eficácia da cláusula compromissória, dada a autonomia desta em relação ao contrato”.

Tanto esse era o entendimento predominante que, sobrevinda a reforma da Lei de Recuperações e Falências, com a promulgação da Lei nº 14.112/20, o texto foi parcialmente incorporado ao texto legal, para que esteja expressamente previsto na Lei de Recuperações e Falências que “o processamento da recuperação judicial ou a decretação da falência não autoriza o administrador judicial a recusar a eficácia da convenção de arbitragem, não impedindo ou suspendendo a instauração do procedimento arbitral” (art. 6, § 9º).

Assim, o que se verifica é que o julgado recente da 3ª Câmara do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro desconsidera toda a evolução jurisprudencial recente e até mesmo as alterações legislativas para rejeitar o cumprimento da cláusula compromissória.

Não se ignora que ainda existem problemas de compatibilização entre os institutos da arbitragem e da insolvência, porém, desde que respeitadas as competências específicas, as jurisdições estatal e arbitral podem e devem conviver harmonicamente.

Assim, caso o precedente da 3ª Câmara do TJRJ não venha a ser reformado – hipótese aparentemente remota −, tal interpretação trará insegurança jurídica à convenção de arbitragem e implicará verdadeiro retrocesso em relação ao instituto.