Em tempos de reflexão sobre o novo mercado do gás, é necessário chamar a atenção para uma atividade que ganha cada vez mais espaço nas discussões da indústria por causa de seu grande potencial de desenvolvimento no Brasil: a estocagem subterrânea de gás natural (ESGN). Essa atividade consiste no armazenamento de gás natural em formações geológicas, assim como acontece nos campos depletados de petróleo e gás.

A principal vantagem da ESGN é que o gás estocado pode ser liberado sob demanda. Isso tem reflexos positivos no mercado como um todo, pois permite uma gestão mais eficiente das oscilações de demanda do gás (peak shaving), da intermitência da geração hidrelétrica e outras fontes renováveis e do preço do gás importado. As consequências vão desde a redução da sazonalidade tarifária até a utilização de contratos de fornecimento de gás mais flexíveis, com formulações alternativas às cláusulas de take-or-pay.

ESGN no Brasil: regulação e movimentos da indústria

A antiga Lei do Gás (Lei 11.909/09) já previa a estocagem de gás natural em campos devolvidos à União ou formações geológicas não produtoras de hidrocarbonetos sob o regime de concessão. Ainda durante a vigência dessa lei, foi regulamentada uma hipótese de autorização para a atividade de ESGN nos planos de desenvolvimento de campos, por meio da Resolução ANP 17/15.

Com a Nova Lei do Gás (Lei 14.134/20), extinguiu-se o regime de concessão para ESGN. Foi adotado apenas o regime de autorização para qualquer área onde a atividade seja desenvolvida (art. 20). Estabeleceu-se também o direito de acesso de terceiros às instalações de ESGN, a ser regulado pela Agência Nacional de Petróleo – ANP (art. 22).

Para além da atualização da norma, já é possível apontar avanços concretos nesse mercado nascente. Exemplo disso foi o anúncio feito pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE) de uma licitação para a contratação de consultoria especializada em ESGN, custeada por financiamento do Banco Mundial.

O estudo encomendado consistirá na entrega de relatórios sobre mapeamento de reservatórios brasileiros e análise de fatores técnicos, econômicos, ambientais e regulatórios, para a efetiva implementação da atividade no país.

E não é só: em maio deste ano, foi outorgada a primeira autorização de ESGN sob a vigência da Nova Lei do Gás. A companhia autorizada é uma empresa de integração energética, com atuação nos segmentos de upstream, midstream e geração de energia, vai implementar um projeto de estocagem no campo Pilar, em Alagoas, com base na Resolução ANP 17/15.

Trata-se de um marco para o setor. A autorização dada à empresa, porém, é somente o primeiro passo de uma longa caminhada repleta de desafios para o regulador.

Desafios regulatórios

As autorizações de que trata a Resolução ANP 17/15 são relativamente simples, pois são requeridas pelas próprias concessionárias no âmbito dos seus planos de desenvolvimento de campos. O projeto de ESGN da empresa autorizada , por exemplo, não abrange estocagem de gás feita por terceiros, já que a atividade de estocagem está incluída em sua própria concessão.

O grande desafio para o regulador, na realidade, reside no tratamento a ser dado às autorizações solicitadas por entidades que não exercerão a atividade em benefício próprio, mas sim como prestação de serviços a terceiros.

Nesses casos, o grau de complexidade é muito maior, já que os campos depletados onde potencialmente ocorre a estocagem do gás podem se encontrar em áreas cujos direitos de exploração e produção de hidrocarbonetos sejam detidos por terceiros. Isso pressupõe a sobreposição de duas atividades, estocagem e produção, realizadas por empresas distintas, em uma mesma área concedida e autorizada.

Em outras palavras, uma norma que venha a regulamentar a autorização para esses agentes deverá abordar a questão de como um terceiro poderá estocar gás natural em uma concessão alheia.

Essa é a razão por trás do art. 22 da Nova Lei do Gás. O dispositivo assegura o acesso de terceiros a instalações de estocagem subterrânea, precedido de um período de não obrigatoriedade, para que a concessionária possa amortizar seus investimentos. O artigo não foi regulamentado pela ANP, a quem cabe definir, entre outros pontos, os critérios aplicáveis, a modalidade do acesso e a extensão do período.

Há ainda outras lacunas difíceis de equacionar que a ANP precisará abordar:

  • o período de não obrigatoriedade do acesso de terceiros às instalações de estocagem subterrânea; e
  • o regime simplificado para a extração residual de hidrocarbonetos líquidos durante o exercício da atividade de estocagem, sem exigência de licitação, conforme previsão do art. 15 do Decreto 10.712/21, que regulamenta a Nova Lei do Gás, e do art. 23, §3º, da Lei do Petróleo.

Todas essas questões deixam claro que foi dada a largada para o desenvolvimento do mercado da estocagem subterrânea de gás natural no Brasil. Há muitos tópicos que precisam ser discutidos pela indústria e abordados pelo regulador para estabelecer o melhor contorno regulatório possível a uma atividade que tem papel central no aprimoramento do novo mercado do gás.