Publicada em 2 de setembro deste ano, a Medida Provisória nº 998/20 busca fortalecer a abertura do mercado livre de comercialização de energia elétrica e, entre outras medidas, introduz melhorias no âmbito dos esforços de modernização do setor elétrico liderados pelo governo federal.

O texto determina que até 70% dos recursos para investimento em pesquisa e desenvolvimento e eficiência energética ainda não comprometidos com projetos sejam destinados, entre 1º de setembro de 2020 e 31 de dezembro de 2025, para a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE). A transferência ainda está sujeita à regulamentação da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). O objetivo é promover a modicidade tarifária e reduzir parte do impacto nas tarifas de energia elétrica dos custos referentes à Conta-Covid, mecanismo de alívio dos efeitos da pandemia para as distribuidoras de energia elétrica que foi recentemente contratado pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) com instituições financeiras domésticas.

Buscando racionalizar a política de subsídios setoriais e ainda no contexto dos esforços para evitar futuros aumentos tarifários em razão da covid-19, a MP 998 prevê a extinção gradual dos descontos nas Tarifas de Uso do Sistema de Distribuição (TUSD) e Tarifas de Uso do Sistema de Transmissão (TUST), comumente denominados “descontos na tarifa fio”, que atualmente beneficiam os projetos de energias renováveis.

Com essa medida, novos projetos de geração renovável apenas farão jus a esse benefício se tiverem solicitado outorga ou alteração de capacidade instalada até 1º de setembro de 2021 e tiverem previsão de entrada em operação comercial em até quatro anos após a data de emissão da outorga.

Como contrapartida da extinção do subsídio gradual da tarifa fio, a MP prevê que o Poder Executivo federal definirá diretrizes, até 1º de setembro de 2021, para a implantação de mecanismos que contemplem os benefícios ambientais relacionados à baixa emissão de gases causadores do efeito estufa trazidos pelos projetos de geração de fontes renováveis.

A MP também traz medidas preparatórias para possíveis processos de desestatização de concessionárias de serviço público de energia, como a extensão para 30 de junho de 2021 do prazo para a realização de licitação por empresas estatais controladas por estados, Distrito Federal e municípios, visando à transferência de controle e outorga de novas concessões de energia. Outro exemplo é a previsão de processo competitivo simplificado, na hipótese de insucesso da licitação, para garantir a prestação de serviço de distribuição de energia elétrica em caráter emergencial e precário, até que a prestação seja assumida por concessionário sob o regime oficial de serviço público. Outras disposições buscam trazer mais eficiência na alocação de custos setoriais suportados por empresas estatais que detêm concessões de serviços públicos de energia, como a utilização de recursos da Reserva Global de Reversão (RGR) para indenizar parte dos ativos das distribuidoras que já estavam em operação na época da privatização e que não tinham sido contabilizados.

Também relevante é a alteração que envolve a atuação do comercializador varejista no ambiente de contratação livre, em linha com os objetivos de política energética do governo federal de abertura do mercado livre. Foram definidas, por exemplo, algumas diretrizes de atuação do comercializador varejista na representação de consumidores, ainda sujeitas à regulamentação da Aneel. Além disso, a MP 998 prevê a possibilidade de suspensão do fornecimento de energia elétrica para as unidades consumidoras modeladas sob um gerador ou comercializador varejista na hipótese de encerramento de sua representação por um gerador ou distribuidor varejista na Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), caso o consumidor não diligencie pela continuidade de seu atendimento.

A MP 998 também estabelece medidas para promover o desenvolvimento da indústria nuclear brasileira, como a previsão de leilão de reserva de capacidade de geração para a Usina Termonuclear Angra 3, detida pela Eletrobras Termonuclear S.A. (Eletronuclear), que poderá receber outorga de geração de 50 anos, com possibilidade de renovação por mais 20 anos e beneficiar-se de contrato de comercialização de energia elétrica de 40 anos.

Para tanto, prevê-se que o BNDES desenvolva estudo de viabilidade econômico-financeira de Angra 3 e seu financiamento, que servirá de base para a definição do preço do contrato de venda de energia de Angra 3.

Ainda em relação ao setor nuclear, a MP prevê a transferência da totalidade das ações de titularidade da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) no capital social das Indústrias Nucleares do Brasil S.A. (INB) e da Nuclebrás Equipamentos Pesados S.A. (Nuclep) à União. A INB e a Nuclep serão transformadas em empresas públicas vinculadas ao Ministério de Minas e Energia (MME) por meio do resgate da totalidade das ações de titularidade de acionistas privados.

Entre os dias 2 e 5 de setembro de 2020, o texto recebeu 205 propostas de emenda de parlamentares. Muitas delas são proposições que o setor elétrico tenta inserir no texto principal, enquanto outras pretendem modificar ou suprimir trechos da MP.

A seção que trata sobre energia nuclear encontra forte resistência de deputados de diferentes partidos, especialmente da oposição. Há propostas para suprimir o artigo que atribui ao Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) a prerrogativa de autorizar a exploração de Angra 3 por 50 anos, prorrogáveis por mais 20. Também há forte resistência sobre a transformação da INB e da Nuclep em empresas públicas vinculadas ao MME.

Várias outras emendas tentam alterar a porcentagem de uso dos recursos dos programas de Pesquisa e Desenvolvimento e Eficiência Energética. Algumas propostas tentam manter os descontos nas tarifas de uso dos sistemas de transmissão e de distribuição concedidos a empreendimentos de fonte renovável, e há até uma emenda que estende por mais tempo a concessão de subsídios às usinas a carvão.

Além disso, foram apresentadas proposições no sentido de estender a isenção da tarifa social durante toda a vigência do estado de calamidade pública, previsto para terminar em dezembro de 2020, a fim de proibir o corte no fornecimento de energia elétrica por inadimplência de residências, serviços essenciais, de consumidores que dependam de equipamentos elétricos de suporte à vida e daqueles que tiveram dificultado o pagamento de suas faturas.

Existem ainda emendas relacionadas especificamente à contratação da operação de crédito da Conta-Covid. Uma delas proíbe as distribuidoras de pagar juros sobre o capital próprio e distribuir dividendos aos acionistas até a quitação integral do empréstimo. Outra estabelece que as distribuidoras não poderão solicitar Revisão Tarifária Extraordinária alegando desequilíbrio econômico-financeiro decorrente da pandemia do coronavírus até 31 de dezembro de 2025, prazo final para amortização do financiamento.

Em vista da multiplicidade de temas abrangidos pela MP 998 e da grande quantidade de emendas apresentadas – em especial quando já estão em discussão outros projetos de lei relevantes envolvendo o setor elétrico, como o PLS 232 – espera-se que a tramitação do texto no Congresso Nacional enfrente desafios. Não se descarta o risco de eventual caducidade da medida-provisória por impossibilidade de deliberação segundo os trâmites e prazos constitucionais previstos para a conversão em lei. É certo, entretanto, que alguns dos temas contemplados na MP 998 estão na ordem do dia e harmonizam-se com os esforços de modernização do setor elétrico e fortalecimento do mercado livre de comercialização de energia.